A Comissão da Verdade, instalada em maio pela presidente Dilma Rousseff, carrega expectativas e discussões proporcionais à gestação de 27 anos. Diferentemente de países como Argentina e Chile, que criaram mecanismos do gênero para elucidar violações dos direitos humanos cometidas durante regimes autoritários na segunda metade do século passado, o Brasil viveu um processo conciliatório que, embora associado à recomposição democrática, dificultou a investigação desses crimes, avalia o professor da PUC-Rio do Departamento de Direito e Relações Internacionais José María Gómez.
Ao cabo de dois anos de apurações, a Comissão da Verdade pretende reunir subsídios que ajudem a esclarecer tais ações criminosas, sem pender, como enfatizou a presidente Dilma Rousseff, para o revanchismo inaceitável no estágio democrático a que chegamos. ("Não há interesse revanchista, nem a intenção de prender", garantiu Dilma, em resposta a grupos contrários à iniciativa.)
A missão tende a ser, de acordo com María Gómez, facilitada pela pressão de órgãos como a Corte Interamericana de Direitos Humanos e da sociedade civil; pela recente Lei de Acesso à Informação, que reforça a transparência das informações apuradas; e pela possibilidade de uma interpretação "diferente" da Lei de Anistia, instituída pelo governo militar brasileiro em 1979. O professor afirma que tais fatores não só pavimentam o caminho do esclarecimento mas podem pôr o relatório da Comissão no rumo dos tribunais – embora este não seja seu propósito original.
– É claro que eles (agentes do Estado que cometeram crimes contra a humanidade) podem ser processados. Já existem processos em andamento por procuradores federais ao efeito de, justamente, impulsionar a justiça transicional em termos de justiça penal pelos crimes cometidos contra os direitos humanos no Brasil.
"Conciliação das elites torna o caminho mais difícil"
O que dificulta este rumo, ainda de acordo com o professor, é a "conciliação das elites" – militar, política, jurídica e empresarial – em torno da Lei de Anistia. Em maio de 2010, o Supremo Tribunal Federal rejeitou uma ação de familiares de desaparecidos durante a guerrilha do Araguaia (1972 e 1974), respaldado na Lei de Anistia. Em dezembro do mesmo ano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) condenou o Brasil "por graves abusos cometidos durante a ditadura militar" (1964-1985) e declarou "sem efeitos jurídicos" aquela lei. Além disso, o país ratificou, no fim de 2010, a Convenção Internacional contra o Desaparecimento Forçado, da Organização das Nações Unidas (ONU). Essas pressões internacionais, pondera María Gómez, podem forçar o Judiciário a modificar a interpretação sobre a lei de 1979:
– A sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, declarando nula lei de anistia decretada por governos militares ou democráticos, diante de abusos e crimes contra a humanidade, abre um enorme precedente para sentenças condenatórias do Estado em regimes democráticos liberais.
Na opinião do secretário nacional de Justiça e presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão Pires Jr., a decisão do Supremo, embora tecnicamente bem sustentada, foi precipitada. Ele considera essenciais os esforços para melhor apurar os crimes contra os direitos humanos, independentemente do grupo que os tenha cometido:
– Foi danoso o STF afirmar que a Lei de Anistia é o fundamento político da Constituição democrática de 1988. Significa dizer que nossa Constituinte não era livre e soberana, mas limitada por uma lei da ditadura – opina.
"Compatibilidade é possível"
Abrão Pires enxerga, contudo, uma saída relativamente simples para compatibilizar as decisões do STF e da Corte Interamericana de Direitos Humanos:
– A ideia seria a seguinte: todos os crimes estão perdoados (nos termos do STF), exceto os de lesa humanidade (nos termos da CIDH). Com isso, teríamos um espectro limitado para a dimensão da Justiça, porém muito simbólico: abertura de ações judiciais para investigar os desaparecimentos forçados, crimes permanentes e imprescritíveis. Seriam apenas 158 ações.
Na Argentina, onde a lei de anistia foi anulada em 2003, há mais de 800 processos em curso e 300 condenados. O Chile, onde lei semelhante passou uma "reinterpretação", condenou 300 agentes do Estado por "crimes de repressão". O país vizinho reúne 500 processos assim em andamento. Um mês depois de o Congresso brasileiro aprovar a lei que determinava a criação da Comissão da Verdade, o Congresso do Uruguai anulou a lei de anistia decretada pelos militares daquele país. Para José María Gómez, a "reinterpretação é apenas uma questão de vontade":
– Não é necessário mudar ou anular a nossa Lei de Anistia, basta mudar a interpretação para iniciar processos de julgamentos relativos a crimes contra a humanidade – propõe. – Há um entendimento de que, mesmo no próprio regime, não se podia pretender justificar e legalizar estupro, assassinato, sequestro e tortura.
Lei de Acesso contribui para a transparência
No Brasil, muitos processos estão em andamento com base em relatórios da Comissão de Anistia e da Comissão de Mortos e Desaparecidos, ressalta Abrão Pires. Na avaliação dele, os documentos produzidos pela Comissão da Verdade "não terão destino diferente" e a recente Lei de Acesso à Informação contribuirá para que "o relatório não caia no sigilo":
– O Ministério Publico Federal e os ex-perseguidos políticos já usam os relatórios da Comissão de Anistia e da Comissão de Mortos e Desaparecidos. Torna-se evidente que os relatórios da Comissão da Verdade também o sejam. A Comissão de Anistia já encaminhou alguns processos para apuração pelas instâncias da Justiça. Caso a Comissão da Verdade não tome iniciativas semelhantes, o MPF tem competência para requisitá-los. Até porque a Lei de Acesso obriga que todo documento que remeta a graves violações de direitos humanos seja disponibilizado para qualquer interessado.
"Comissão deve manter a autonomia"
Para a presidente do grupo Tortura Nunca Mais, Cecília Coimbra, transparência e justiça, sem revanchismo, devem nortear o trabalho da Comissão da Verdade. Ele sugere que as sessões sejam públicas:
– O Brasil é o mais atrasado, entre os países latino-americanos que passaram por ditaduras, no processo para reparar o que aconteceu. A Comissão da Verdade é um passo nesse sentido, mas deve ter autonomia. As seções devem ser públicas. Pois essa apuração remete à história do país, não deve ser secreta. Temos que saber o que aconteceu neste país – argumenta.
Cecília reitera que a "busca pela verdade e transparência" nada tem a ver com revanchismo:
– A gente sabe que a Comissão da Verdade não é para punir, e sim para levantar informações e fazer investigações, esclarecer. Eu não penso em punição. Sou contra prisão. Sou a favor é da responsabilização – esclarece.
"Descontentamentos não vão gerar instabilidade política"
José María Gómez reconhece que a responsabilização pode gerar descontentamentos, porém "insuficientes para gerar instabilidade política". O professor argumenta que o esclarecimento dos crimes cometidos durante o regime militar representa um legado para que "as futuras gerações possam aprender com o passado":
– Pensar que isso pode gerar turbulência é absolutamente fora de questão. Não há condição nacional e internacional que possibilite uma reação dessas. O problema maior é tentar romper o bloqueio que impede a responsabilização dos crimes contra a humanidade. Há uma cultura de se resolver debaixo dos panos os conflitos dessa índole. Não é hábito esclarecer – avalia.
Comissão da Verdade chega 27 anos depois do fim do regime militar: ° Em 1979, com o regime militar ainda em vigor, foi instalada a Comissão de Anistia, que perdoava os crimes cometidos por opositores do regime e seus agentes. José Sarney, primeiro presidente civil depois do período ditatorial, assumiu o governo em 1985 e manteve o assunto longe das discussões políticas por meio de um processo conciliatório político, militar e jurídico. º Em 1990, o presidente Fernando Collor abriu os arquivos do Departamento de Ordem Pública e Social (Dops) do Rio e de São Paulo. ° Na eleição presidencial de 1994, os candidatos Lula e Fernando Henrique, que haviam sido vítimas da repressão, se comprometeram a investigar os crimes cometidos, caso fossem eleitos. ° Fernando Henrique saiu vencedor da disputa e criou duas comissões: a Comissão dos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e a Comissão de Anistia. Os documentos produzidos por ambas podem ser utilizados pela Comissão da Verdade. º No governo Lula (2003-2010) a possibilidade de instalação da Comissão da Verdade ganha impulso com o apoio do ex-ministro da Justiça Tarso Genro e a criação da Secretaria de Direitos Humanos. Nos bastidores do governo, o assunto gera um conflito interno entre Tarso Genro e o então ministro da Defesa, Nelson Jobim. Mesmo com o impasse, o projeto da Comissão da Verdade é levado ao Congresso. ° Em novembro de 2011, a Comissão da Verdade é aprovada no governo de Dilma Rousseff, que foi presa e torturada durante a ditadura. Em maio de 2012, a Comissão foi oficialmente instalada pela presidente. A Comissão terá dois anos para levantar informações e produzir um relatório sobre os crimes cometidos. |
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