Projeto Comunicar
PUC-Rio

  • Facebook
  • Twitter
  • Instagram

Rio de Janeiro, 13 de outubro de 2024


País

Especialistas propõem mais rigor na liberação de presos

Tiago Coelho - Do Portal

15/03/2012

Jeferson Barcellos

Um dia após ter recebido o benefício da liberdade condicional, decorrente do "bom comportamento" na prisão, Paulo Roberto da Silva, 43 anos, voltaria a cometer mais um crime. No dia 16 de fevereiro, o ex-detento estuprou uma menina de 12 anos num ônibus. Nove dias depois, reconhecido por câmeras de segurança, ele foi capturado numa tentativa de assalto a duas jovens, mais uma vez em um ônibus. Acabou novamente preso e teve aquele recurso suspenso pela Justiça. O caso, que ganhou repercussão nacional, renova a discussão sobre mecanismos que reduzam a reincidência de transgressões cometidas por beneficiados com a liberdade condicional – cuja frequência desafia as autoridades. 

A história daquela violência sexual assemelha-se ao drama vivido pela empregada doméstica Erica Aparecida dos Santos Araujo, de 31 anos, cuja filha, B.S.S., de 11, foi estuprada pelo próprio pai em Guapimirim, Região Metropolitana do Rio, no dia 19 de fevereiro, data do aniversário da menina. A vítima seguia para a casa de amigos da mãe quando foi abordada por Antônio Marcolino Simão, de 45 anos, que a levou para tomar sorvete e, em seguida, a violentou. Na 67˚ DP (Guapimirim), a mãe, transtornada, soube pelos policiais que o ex-companheiro tinha passagens pela polícia de João Pessoa, na Paraíba, por ter estuprado duas pessoas e esfaqueado uma terceira. Aparecida considera "um absurdo" terem o libertado "antes de ele (Marcolino) pagar por tudo o que fez", e qualifica de "frouxa" não só a lei que prevê a condicional mesmo para crimes hediondos, mas também a fiscalização sobre a contrapartida desse benefício.

A opinião de Erica, descontada a angústia inerente à tragédia famíliar, confirma recente pesquisa promovida pela Secretaria de Pesquisa e Opinião do Senado (Sepop): 93,7% dos entrevistados condenam o recurso do "livramento condicional", que permite a liberação dos presos antes do cumprimento total da pena. Para eles, o benefício aumenta a sensação de insegurança e impunidade.

 Arte: Tiago Coelho 

Os casos de Paulo Roberto e Antônio Marcolino refletem os números apresentados pelo ministro Cezar Peluso, presidente do Superiro Tribunal Federal (STF), no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Ele afirmou que, no Brasil, "70% dos presos que são soltos voltam a reincidir na criminalidade" – um dos maiores índices do mundo, segundo o magistrado. Para reduzi-lo, grande parte das propostas mira um maior rigor na legislação penal. Especialistas em direito penal e sistema carcerário argumentam, no entanto, que "o problema não está na lei, e sim na falta de fiscalização do aparelho prisional". Assim, haveria brechas para a "soltura indiscriminada e pouco criteriosa" de detentos, que, somado a um monitoramento ineficiente, favoreceria a reincidência de transgressões.

O promotor Otávio Bravo, professor do Departamento de Direito da PUC-Rio, considera "desnecessária" a suspensão da liberdade condicionada. Recursos como livramento condicional, progressão de regime e visita periódica ao lar, por exemplo, são fundamentais, segundo o especialista, ao processo de recuperação dos detentos "que se comportam bem". Para ele, o que precisa ser aperfeiçoado, prioritariamente, é o sistema de verificação do grau de periculosidade do indivíduo – “um dos piores do mundo”, por se basear apenas em critérios objetivos, como o cumprimento de um terço da pena (ou dois terços, em caso de crime hediondo), como determina o artigo 83 do Código Penal, em vez de, ainda conforme o professor, se apoiar em fundamentos como entrevistas, laudos de adaptação e "tantos outros mecanismos previstos na Lei de Execução Penal" que verificam as condições de ressocialização.

– Parece mais fácil mudar a legislação do que atacar o problema, que é melhorar o sistema que concede a liberação do preso e a reintegração dele na sociedade. É preciso recuperar o criminoso e só permitir que volte ao convívio social se ele tiver condições. Para mim, esta é a grande lacuna a ser preenchida no sistema prisional brasileiro – avalia.

O promotor observa que o livramento condicional e a progressão da pena são recursos judiciais adotados na maioria dos países e penas extremas, como a prisão perpétua e a pena de morte, estão em declínio. Illinois, por exemplo, foi o 16º estado americano a abolir a pena capital. Os 47 integrantes da União Europeia também convergem para o fim da pena de morte. O único país do continente europeu em que ainda há sentença de morte é a Bielorrússia, que não faz parte do bloco. Manter um grande contingente de trancafiados, como os condenados a prisão perpétua, revela-se uma saída cara e ineficiente. Também por este motivo, acrescenta Bravo, a condicional se torna um recurso importante, desde que seja criterioso:

– Começam a perceber que prisão perpétua não funciona. Só serve para abarrotar o sistema carcerário. O sujeito condenado ficará eternamente dependendo do estado, sem que tenha possibilidade de recuperação. Pois, sabendo que não tem chance de sair, não fará nada para se ajustar. A progressão da pena deve visar à recuperação do sujeito.

Entre os obstáculos a esse recuperação, o também professor do Departamento de Direito da PUC-Rio Luiz Fernando Lessa aponta uma dupla falta de rigor: nas avaliações que concedem a liberação dos encarcerados e na fiscalização dos presos em condicional. Na avaliação de Lessa, a tecnologia pode ajudar, mas não dispensa outras formas de monitoramento das atividades fora da prisão. Refere-se, em especial, às tornozeleiras eletrônicas que vem sendo utilizado no Rio. 

– Não há uma fiscalização satisfatória. Nem a lei prevê uma forma eficiente de se fiscalizar essas pessoas que recebem o livramento condicional. Se não forem pegos em flagrante, ninguém vai saber que crimes estas pessoas poderão estar cometendo. Uma das medidas encontradas é o uso da tornozeleira eletrônica. Mas este sistema é falho. Há casos de bateria descarregada e pessoas que rompem aquela barreira e voltam a cometer crimes – alerta.  

Lessa reconhece que esta fiscalização ostensiva sairia caro para os cofres públicos. Mas, diante dos 70% de reincidência criminal, torna-se um "investimento necessário":

– Há falta de instrumentos eficazes para a fiscalização desses benefícios. O Brasil não tem porque é caro fazer isto. Mas se o sujeito tiver direito a liberdade condicional ou o direito a responder em liberdade, é necessário que se desenvolvam meios materiais, de pessoal e infraestrutura suficientes para se ter certeza de que o preso esteja respeitando a lei enquanto está gozando deste beneficio.

Bravo também admite que o investimento para monitorar o preso fora da cadeia é alto, 350 milhões por ano. E pondera que, "do ponto de vista eleitoral, é menos proveitoso aplicar recursos no sistema carcerário do que em escolas e hospitais, que atraem mais votos". O promotor acredita, assim, que investir no sistema de recuperação do preso e na avaliação da "real condição de ressocialização" mostra-se o caminho "mais eficiente e barato".

De acordo com a legislação nacional, até os condenados por crimes hediondos têm direito à liberdade condicional, desde que tenham cumprido mais de dois terços da pena e apresentem "bom comportamento". A socióloga Julita Lemgruber, ex-diretora do Sistema Penitenciário Brasileiro, observa que, na esteira dos casos que provocam a comoção pública – como o de Paulo Roberto – são deflagradas discussões sobre recursos considerados “inadequados e pouco rigorosos” e pressões por mudanças no Código Penal. Segundo a especialista, tais apelos levaria a uma “legislação do pânico”, para aplacar o medo e a insegurança da população. Ela pondera que se deve, por outro lado, pensar também nos casos dos que saem dos presídios, cumprem as determinações da "nova situação legal" e não voltam a cometer crimes. Na avaliação de Julita, as leis do país são suficientemente punitivas:

– Estes casos não devem nos afastar da perspectiva de que é uma possibilidade de ressocialização. Nossa legislação já é muito rigorosa. Não precisamos de mais rigor. Estas exceções, onde não houve um acompanhamento mais próximo, não nos deve levar ao raciocínio de que a estratégia do regime semiaberto e a liberdade condicional sejam equivocadas. Este é o perigo neste momento – ressalta.

Com a autoridade de quem conduziu nos anos 1980 uma extensa pesquisa na área de reincidência criminal nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, Julita afirma que a "falta de interesse da sociedade pelo que acontece dentro dos presídios contribui para que se difunda uma gestão violenta e corruptano ambiente carcerário". O preço disso, completa a especialista, "nos é cobrado quando os encarcerados são soltos":

– As pessoas esperam que, no momento em que os criminosos são presos, devem ser trancafiados, a chave jogada fora e está resolvido o problema. Porém, essas pessoas cumprem a pena e, mais cedo ou mais tarde, elas vão sair. E elas sairão melhores ou piores de acordo com o tratamento que receberem. Em geral, o preso sai pior do que entrou, pois vive num ambiente onde a lei não é respeitada, a corrupção e a violência estão muito presentes. Isto não estimula os presos a serem cidadãos cumpridores das leis.

A eficiência da ressocialização e a redução dos íncides de reincidência criminal dependem também da abertura de oportunidades no mercado de trabalho. Ao deixar a prisão, em 2008, Chinaider Pinheiro, ex-chefe do tráfico de drogas de Vigário Geral, na Zona Norte carioca, conseguiu um emprego com a ajuda do Afroreggae. Hoje ele cursa Direito numa universidade do Rio e dirige a ONG Empregabilidade, que já concedeu a chance de 1.300 egressos ma sistema penitenciário se integrarem ao mercado de trabalho. Chinaider diz que o preconceito contra o preso que tenta restabelecer o convívio social ainda é grande e reitera que, com as portas fechadas do emprego formal, é maior a chance de os ex-detentos abrirem janelas para a criminalidade:

– O preconceito contra o condenado solto que não consegue arrumar trabalho contribui para a reincidência criminal. Acreditamos que estas pessoas possam ter uma segunda chance, e virar motivo de orgulho para seus familiares. Dar apoio a eles é fundamental.