Miguel Pereira * - Do Portal
18/11/2011Documentário pessoal e ao mesmo tempo de alcance público, "Tancredo, a Travessia", de Silvio Tendler, narra várias histórias que se cruzam num mesmo tempo e espaço. Embora trate do passado, isto é, a passagem de Tancredo Neves pela vida nacional, o filme mistura as biografias e as vivências singulares de uma cidadania ativa. Os personagens dessa travessia partilham uma mesma ideia, ainda que alguns interpretem o papel de vilões, como é o caso de Paulo Maluf, nesse drama coletivo que ainda nos diz respeito. E é essa a novidade que Silvio Tendler nos propõe. Não é um olhar para o passado, numa espécie de ajuste de contas histórico, mas algo vivido e experimentado num ambiente novo e de reflexão sobre o aqui e agora.
O sentimento pessoal transforma-se em espaço coletivo, simbolizado nas sequências magistrais do início e do fim do filme. O rosto e o movimento dos corpos misturados, numa espécie de procissão de dor e sofrimento, embalados pelo hino nacional na abertura e pelo poema de Ferreira Gullar no fechamento, são a imagem viva de um processo em andamento, sem clausura, e a nós devolvido como proposta de mudança e ação coletiva. A vida da nação passa pela imaginação de todos nós espectadores como um sentido para a nossa história. O fim retoma o início do filme, completando um ciclo de esperanças abortadas da tragédia política brasileira. No entanto, desse mesmo solo nascem novas esperanças, simbolizadas nas montanhas de Minas Gerais e no talento expresso no canto da nacionalidade.
"Tancredo, a Travessia" é, assim, um documentário em que a morte de um não é o fim de tudo. Uma vida, como a de Tancredo, deixa sempre sementes de imaginação. Sem dúvida, ele foi uma vocação política visceral e fez o que pode para ajudar a nação a atravessar momentos difíceis e complexos. Ganhou a simpatia do povo e virou um ídolo, mesmo sem o carisma dos grandes comunicadores. Sua dedicação quase sacerdotal à política fez dele um estadista de coragem e de bastidores. Buscou soluções conciliatórias, sempre pelas vias pacíficas. Encarou o caráter nacional de modo exemplar e por isso mobilizou as forças da mudança de um estado ditatorial militar para um Brasil civil e republicano.
Esse mesmo ideal é conjugado por Silvio Tendler ao produzir a imagem de que um Brasil novo ainda é possível. Uma fé interior que se expressa na maneira de construir relatos, em parte conhecidos, mas com forte sopro de novidade que Silvio imprime ao seu cinema histórico, dando-lhe o caráter de uma história de todos nós. Repõe para o espectador um pouco da nossa identidade coletiva. Faz-nos participantes da história brasileira, como sujeitos e não apenas espectadores bestializados.
"Tancredo, a Travessia", de Silvio Tendler, deveria ser adotado nas escolas brasileiras como um testemunho da emoção e da razão que nos move. É uma lição de história de um autor que se expõe com coragem e sensibilidade.
* Miguel Pereira é professor da PUC-Rio e crítico de cinema.
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