Carina Bacelar - Do Portal
02/09/2011
Machado de Assis, Crônicas: A + B/ Gazeta de Holanda, Autor: Mauro Rosso
Por muito tempo, Machado de Assis recebeu o rótulo de “autor apolítico”. Toda a atenção do escritor se voltou, segundo a crença, para tipos humanos e o desenrolar de suas vidas, suas memórias póstumas e seus olhos de ressaca. Entretanto, o professor de literatura e pesquisador Mauro Rosso, depois de publicar um conto inédito de Machado, em 2008, voltou a se debruçar sobre a obra do escritor para provar o contrário. É essa a motivação por trás de Machado de Assis Crônicas: A+B/ Gazeta de Holanda (Editora PUC-Rio, 2011). Os textos selecionados são crônicas em forma de diálogos (A+B) e versos (Gazeta de Holanda), e subvertem a tradicional estrutura prosaica do gênero. Em entrevista ao Portal PUC-Rio, Mauro Rosso afirma que, quando assunto é Machado, “por mais que se investigue, há sempre coisas a descobrir”. Ao que parece, Machado consegue ser tão oblíquo e dissimulado quanto os olhos famosos de sua Capitu.
Portal PUC-Rio Digital: Machado de Assis é um dos autores mais conhecidos e estudados da cultura brasileira. O que ainda há para ser descoberto sobre ele?
Mauro Rosso: Muito. Por mais que se leia, por mais que se investigue, há sempre coisas a descobrir. Machado se diferencia de todos os escritores não só pelo talento literário e pelo significado de sua obra, mas porque trabalhou muito nas entrelinhas. Mais do que todos os outros, Machado usou muito a dissimulação, o disfarce, o mistério, o enigma. O título de “Rei dos pseudônimos” atesta o quanto ele usou esses recursos. Por isso, ele é um escritor a ser desvendado permanentemente.
Portal: O uso dos pseudônimos dificultou, de alguma forma, o resgate dessa produção machadiana que o senhor fez?
MR: Sim. Nesse próprio conjunto, A+B e Gazeta de Holanda, ele usa os pseudônimos João das Regras e Malvólio. Mesmo os estudiosos têm dificuldade em identificá-los. Até porque são crônicas com estilo de escrita diferenciado dos demais textos do Machado: A+B é em diálogos e Gazeta de Holanda, em forma de versos. Por isso, levou algum tempo até se atestar que eram obras de Machado de Assis. Havia pequenos indícios. O fato de terem sido publicados na Gazeta de Notícias, por exemplo, indicava que poderiam ser de Machado, porque era o jornal para o qual ele escrevia. Por isso, é um escritor que exige estudo permanente. Ou seja: existem ainda textos de Machado a serem descobertos.
Portal: O senhor chegou a um conto perdido de Machado em 2008. Como foi esse processo?
MR: A fase mais “detetivesca” das investigações durarou seis anos. Mas a atenção e a busca em relação àquele conto se estendeu por 12 anos. Só em 2002 saí em busca do escrito. Recebi uma série de indicações falsas, estive no interior de São Paulo, do Paraná, de Minas Gerais, da Bahia e de Goiás, até que descobri. O conto foi publicado em 10 capítulos na época [de Machado] e sete estavam perdidos. Encontrei quatro em uma fonte e três em outra.
Portal: A coleção reunida pelo senhor desmitifica um dos rótulos mais recorrentes de Machado, o de apolítico. Como é, afinal, a abordagem desse tema pelo escritor?
MR: Machado publicou em torno de 734 crônicas. Delas, 385 se referem à política. Nada passou despercebido por ele, muito menos os acontecimentos políticos. Evidentemente que ele não se aprofundava. Ele passou mais a fazer esse registro com mais ênfase a partir da década de 1880, considerada por muitos historiadores a mais importante de história do Brasil. O auge disso foram as série “Bons Dias” e “A semana”, esta última a mais longa de Machado. Mas o enfoque político ele já tinha iniciado no final da década de 1870. Em “Balas de estalo ele já se insinuava no assunto. Em A+B e Gazeta, o tom crítico é muito acentuado sob o rótulo do sarcasmo. Machado foi um dos grandes fotógrafos da política brasileira, do ambiente institucional e histórico do Brasil imperial. Com a abolição da escravatura e a república eminentes, a época exigia um olhar muito atento. E Machado revelou-se um grande observador.
Portal: Em A+B, Machado opta por diálogos entre dois personagens, que chama de A e B. Existe alguma razão específica para não usar nomes, ainda que fictícios?
MR: Não. Isso faz parte da tônica do disfarce, do enigma. Ele talvez tenha se inspirado em outros escritores. Diderot, por exemplo, foi uma das grandes influências de Machado. Havia um romance dele no qual duas pessoas discutiam questões filosóficas, e usava um recurso parecido. Mas o Machado, por si só, era muito criativo.
Portal: E o uso de versos estruturados em estrofes em Gazeta de Holanda? Era recorrente na época? Ou foram mais uma invenção de Machado?
MR: Foi uma invenção. Ele usou versos nessas 48 crônicas, e batizou esse formato de “versiprosa”, que depois foi retomado por Carlos Drummond de Andrade. Mas o Machado foi o antecipador. Não foi novidade para ele se valer de poemas. Era um poeta, apesar de sua obra nesse formato não ter um peso tão grande. Ele faz um relato do cotidiano e, embora Gazeta de Holanda tenha um tom político menos acentuado que A+B, passa pela política. O essencial desse conjunto é, além da forma de versos, o tom jocoso, hilário, do cotidiano. Como a queda do telhado de um sobrado na Rua do Ouvidor.
Portal: A ficção de Machado tem muito do lado cronista dele?
MR: Nada em Machado é separado. Ele fez do conto e da crônica terrenos de experimentações de estilo, de forma e de linguagem. Ambos ajudaram muito na ficção literária. Não só os romances da sua primeira fase, mas também os posteriores a “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, que o consagraram. As qualidades enaltecidas nos romances vieram de experimentações realizadas em contos e crônicas.
Portal: O processo de organização dessas crônicas trouxe alguma surpresa para o senhor?
MR: Não. Espero que traga surpresas boas para os leitores. A virtude dessas séries, cujo foco é a crítica política e comportamental, nunca apareceram juntas, editadas como nesse livro. Isso nos leva a conhecer mais uma das facetas de Machado.