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Rio de Janeiro, 27 de julho de 2024


Opinião do Professor

"MEC se arvora no papel de anti Higgins chapa-branca"

Cláudio Bojunga - Do Portal

02/08/2011

 Divulgação

Por Claudio Bojunga*

O estilo pedante de Jânio Quadros imortalizado no “fi-lo porque qui-lo” era o sintoma mais visível de sua impostura política. A frase é apócrifa. Jânio cansou de explicar que disse “porque o quis”. Mas o “qui-lo” grudou nele como maldição tardia pelo pernosticismo de palanque e a renúncia mal-explicada.

A gramática alambicada é arma clássica do político brasileiro, desejoso de impor sua erudição postiça ao povão ignaro. Faz parte da caprichada construção do que Antônio Callado chamou de “estilo conselheiral”. A pose retesada e o dó de peito, que levou Nelson Rodrigues a dizer que nossos governantes se comportam como se fossem estátuas deles mesmos.

Jânio foi a caricatura do professor de português que desconheceu Mário de Andrade. Décadas antes de sua entrada em cena, os modernistas haviam desconstruído a idolatria do castiço, o gosto do sublime, as mesóclises confeitos de bolo, a busca brega do inefável.  Não há poesia pré-fabricada, diziam, nem gramática que engesse nosso jeito de ser.

Eles derrubaram com verve nossa língua do pedestal, deixando o pobre Coelho Neto na estrada a bradar que continuava a ser o último grego. Cerca de noventa anos atrás, Mário antecipou “uma língua não diferente porém bastante diversa da portuguesa” – assim mesmo, sem gravata e sem vírgulas.

Naquele mundo do chapéu de palha e de polainas, Mário cunhou um neologismo transgressor: tínhamos de “des-carolina-michaelisar” as pessoas. Ou seja, exorcizar o fantasma da maior filóloga (1851-1925) portuguesa do superego do escritor brasileiro. No mesmo impulso guerrilheiro, Manuel Bandeira escreve em Evocação do Recife:

(...)

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros

Vinha da boca do povo na língua errada do povo

Língua certa do povo

Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil

O brasileirismo gostoso ainda era naquele tempo uma variante popular do academicismo mi-chae-li-nizado.  Agora ele flui despreocupado na corrente erudita do nosso sangue, suscitando a inveja de Mia Couto. O moçambicano me revelou ter anotado uma passagem de Bandeira (numa carta a Mário) na qual ele nos aconselha a não reagir a Portugal, basta esquecer Portugal. Mais fácil, dizia Mia Couto, para quem se livrou de Lisboa em 1822, do que em 1975. Talvez por isso, ele tenha sonhado, numa temporada no Rio, que o Zambeze encontrava o Amazonas.

Lembre-se que essas escaramuças, recuos estratégicos e desbordamentos táticos ocorreram no interior da norma culta. O Bandeira que saboreava a fala do povo era amigo do filólogo Souza da Silveira (1883-1967) e dominava a língua como poucos. O desaprender, reinventar, transpor, despojar e distorcer a língua foi uma empreitada de escritores. Depois da batalha de Mário/Oswald, veio a fala paralisada de Fabiano, o sertanejo-joyciano de Diadorim, o verso solto de Drummond e o geométrico de Cabral, as epifanias de Clarice e a cinematografia hiper-realista de Rubem Fonseca.

Nada a ver com questiúnculas gramaticais escolares. Estilo não se reduz a joguinhos de regência, a charadas sobre a crase, à arrumação/desarrumação das vírgulas e dos travessões ou ao esconderijo dos sujeitos ocultos, que minam nos colégios a música eterna dos Lusíadas.

Esse aí é o domínio lúgubre dos aplicados – que um renomado e maldoso escritor português chamou de “eunucos do serralho das letras”. O pessoal que zela pela castidade da língua, sem usufruir amorosamente o que ela tem a nos oferecer.

Um mito escolar prejudicial leva nossas crianças a crer que a língua pertence aos gramáticos. Coisa nenhuma: ela pertence aos poetas e escritores que a aperfeiçoam. Gramáticos são conservadores, ao passo que escritores são adeptos da evolução contínua da língua, absorvendo de maneira incessante os novos tempos e as novas falas, para manter-se viva.

Mesmo os frios dicionários sabem disso: tanto no Aulete quanto no Aurélio ou no Houaiss, são os escritores – Machado, Eça, Pessoa, Cecília – que abonam a correção ou a propriedade das expressões e construções. A língua é assunto sério demais para ficar entregue a gramáticos. O dinamarquês Louis Hjelmslev (1899-1965) a define majestosamente como o sistema de signos ou sinais “com o qual as pessoas modelam seus pensamentos, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, desejos e atos. O instrumento pelo qual elas influenciam e são influenciadas, a base mais profunda da sociedade humana”.

A dor de Fabiano – além da fome, da vida seca e da exploração - é a de ser banido do mundo das palavras, do mundo da imaginação, da base mais profunda da sociedade humana, da “cultura tecida no tear da linguagem – que separa radicalmente o humano do resto da natureza” (Richard Leakey).

Eduardo Galeano diz coisa parecida, com seu jeito inflamado: que as pessoas escrevem “a partir da necessidade de comunicação e de comunhão com os outros, para denunciar aquilo que machuca e compartilhar o que traz alegria. Escrevem contra sua solidão e a solidão dos demais, porque supõem que a literatura é uma forma de conhecimento. Ela age sobre a linguagem, as emoções e a conduta dos que a recebem, ela nos ajuda a nos conhecermos melhor, para nos salvarmos juntos.”

A perícia com as palavras, as conexões harmoniosas entre elas, tem a ver menos com etiqueta gramatical, do que com a capacidade de pensar com justeza e precisão. “Ninguém é capaz de escrever bem, se não sabe bem o que vai escrever”, dizia o mestre Mattoso Câmara Jr. Na mesma linha vai o certeiro silogismo de G.K Chesterton, o romancista adorado por Borges:

“Todo pensamento que não se torna palavra é um mau pensamento; toda palavra que não se transforma em ato é uma má palavra, todo ato que não dá frutos é uma má ação”. Antes de ser  certinha e empertigada, a língua tem de ser consequente. Aliás, Goethe dizia: “só é verdadeiro o que frutifica”.

A lógica da estilística difere da lógica da gramática, assim como a física quântica é diferente da física euclidiana. O mestre português Rodrigues Lapa ensina que, ao contrário do que ocorre na gramática, em estilística não há o conceito do erro: para os desvios, é sempre encontrada uma determinante psicológica/sociológica natural. Uma boa analogia para ilustrar isso é o curioso trajeto de Picasso. Ele diz que pintava na juventude como os renascentistas, para depois passar a vida inteira tentando pintar como as crianças.

Está claro que, nem por isso, se deve ensinar às crianças a pintar como crianças. Muito menos aplaudir na escola os pequenos Fabianos que dizem “tá fazeno um calô dos diabu”. Isso ele sabe dizer - e ele sabe que o inferioriza. João Ubaldo explica:

“A fala é dos mais importantes recursos para o que se poderia chamar de reconhecimento social da pessoa. Vendo alguém pela primeira vez, fazemos conscientemente ou não, um julgamento automático. Aprontamos uma ficha mental, avaliamos a roupa, a idade, o estado dos dentes e, inevitavelmente, a fala, através da qual é frequentemente possível saber a origem e a extração social de um interlocutor eventual. A norma culta, a dominante, a que é ensinada como correta, mostra sua cara imediatamente e se reflete logo na maneira pela qual o sujeito é percebido e tratado. Ferreira Gullar tem razão: a crase não foi feita para humilhar ninguém. Mas humilha o tempo todo.”

Essa avaliação instintiva não é apanágio dos que estão por cima da carne seca. A turma do andar de baixo também a pratica instintivamente. O preconceito só se configura como doentio quando deságua na discriminação. Convivo na maior tranquilidade e respeito com meu amigo taxista, quando me responde, sempre que lhe digo o endereço, com um: “deixa com nós”.  Mas o filho dele é engenheiro e fala diferente.

A norma culta não pode nem deve ser criminalizada pelos populistas (que para Lênin eram de direita) só por ser um componente determinante da ascensão social. Nem toda pessoa culta instrumentaliza a língua perversamente como Jânio Quadros. Nem como o lingüista precioso que não respondia às cartas, “reciprocava”. E nunca discordava, “discrepava”.

A norma culta democrática, aberta, tolerante sempre abre caminho para melhores oportunidades. É o que diz o linguista italiano Raffaele Simone, citado por Evanildo Bechara: “A apologia da expressão popular pode contribuir para perpetuar a segregação de classes pela língua”. Para ele, a norma culta ajuda a libertar os Fabianos.

O clássico Comunicação em prosa moderna, de Othon M. Garcia, reproduz no capítulo sobre o vocabulário, pesquisa do Laboratório de Engenharia Humana de Boston, na qual cem alunos de um curso de formação de dirigentes industriais são submetidos a um teste de vocabulário. Cinco anos mais tarde, os dez por cento que se saíram melhor ocupavam cargos de direção.

A versão mais conhecida do poder de mobilidade social da linguagem é o Pigmalião de Bernard Shaw, peça de 1912, que virou filme em 1938, com Leslie Howard e Wendy Hiller. Em seguida, My fair lady na Broadway, em 1956, de novo levado às telas no musical de 1964, de George Cukor, com o inesquecível Rex Harrison no papel do professor Henry Higgins e Audrey Hepburn no de Elisa.

Inspirado na célebre história da Metamorfose de Ovídio, do escultor apaixonado pela estátua de Galatea, que ele mesmo esculpiu e por quem se apaixonou (e a quem, a seu pedido, Venus concede a vida), Shaw bolou uma versão moderna sobre os preconceitos e vaidades da era vitoriana. Nela, Higgins, um aristocrático professor de fonética, aposta com seu amigo linguista, o coronel Pickering, que é capaz de transformar uma florista cockney numa duquesa, apenas ensinando ela a falar e se comportar direito.

Comentando essa peça claramente de esquerda (Shaw era socialista da Sociedade Fabiana), William O. Beeman, professor de antropologia linguística da Universidade Brown recomenda que os que almejam aperfeiçoar a fala e incrementar sua mobilidade social precisam de um Higgins, porque, a partir de 6 anos, as veredas dos neurônios começam a calcificar. Depois dos 15, a plasticidade da fala diminui enormemente.

O grande erro da distribuição do livro Por uma vida melhor, de Heloisa Ramos, a meu ver, não reside nos argumentos simpáticos à variante popular, nem na sua indulgência com o português gostoso do povão. Deriva da intromissão ideológica do Estado, ao resolver legislar sobre preconceitos chancelando versões “politicamente corretas”, erigidas em políticas públicas e reproduzidas em livros didáticos. O Ministério da Educação aí se arvora no papel de um anti Higgins chapa-branca.

Mais uma vez, apelemos a Mattoso Câmara, introdutor das lições de Roman Jakobson no Brasil. Mattoso condenava a perigosa confusão de papéis entre os teóricos doutos e os professores de colégio. Sobretudo os da rede pública. Evitemos, pois, recair naquele curioso elitismo às avessas, denunciado nos anos 70 por Joãosinho Trinta. Parafraseando: povo gosta de norma culta, quem gosta de caçanje é intelectual.

* Cláudio Bojunga é jornalista, escritor e professor do Departamento da Comunicação da PUC-Rio.