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Rio de Janeiro, 20 de abril de 2024


Opinião do Professor

Jornalista lembra a importância da "língua morta"

Luciana Brafman - Do Portal

13/06/2011

 Divulgação

A importância da "língua morta"

Por Luciana Brafman*

Admiradora dos encantos da língua portuguesa desde que me alfabetizei, nunca vou esquecer o dia em que aprendi, no antigo ginásio, a origem etimológica e a transformação da palavra "você". Foi uma surpresa perceber que a língua é viva: o tratamento de deferência "vossa mercê" utilizado séculos atrás no Brasil evoluiu para "vosmecê", "vancê", até chegar a "você". Os mais conservadores, é claro, rejeitaram enquanto puderam o bololô das letras, mas, por fim, a norma culta se rendeu e encampou a simplificação do termo.
 
A discussão que se instaurou com o livro do MEC "Por uma vida melhor" me pareceu, portanto, num primeiro momento, vazia. Até minha filha de 7 anos sabe que há diferenças entre a língua falada e a escrita; que não pode escrever o popular "tô" em vez de "estou".  Mas o fato é que o assunto ganhou a mídia, a academia, os meios especializados e a mesa do bar. Gerou-se a polêmica. Vamos a ela.
 
De um lado, estão os que não aceitam o fato de o ministério permitir uma frase como "os livro ilustrado mais interessante estão emprestado", alegando que isso tira oportunidade de aprendizado e ascensão social dos menos favorecidos. Nem o fato de Heloísa Ramos, uma das autoras, ter dito que o livro descreve diferenças entre escrever e falar, mas não ignora que "cabe à escola ensinar as convenções ortográficas e as características da variedade linguística de prestígio", arrefeceu a ira dos críticos. No extremo, há uma corrente que atribui a permissividade ao estilo Lula de se expressar.
 
Na outra ponta, surgem vozes defendendo justamente que o caso só veio à tona para desacreditar o governo petista, que "tanto faz pelos pobres" e pela educação desde 2003. A alegação dessa turma é que a língua interage com a sociedade, e o errado pode virar certo. Além disso, dizem, a publicação não falta com sua responsabilidade, já que alerta para a possibilidade de preconceito linguístico quando se fala sem as devidas concordâncias gramaticais.
 
Não sou petista. Tampouco sou anti-PT. Acho que o governo Lula realmente fez muito pelos pobres. E também pelos ricos. Espera-se uma certa continuidade de Dilma. Na questão do livro, porém, estou do lado dos críticos. Concordo com o fato de que a língua é viva – o que muito me satisfaz, como contei no primeiro parágrafo. Mas não se pode privar o povo de conhecê-la na forma "morta", estática, culta. As nem sempre facéis regras do português precisam ser observadas sempre, até para que se possa burlá-las. Quando se abre uma brecha, ainda que no contexto do livro haja as explicações e os alertas para tal, amputa-se a noção de que a língua tem uma lógica própria que ajuda a formar pensamentos e cidadãos, no termo mais nobre da palavra. Sem mencionar que o modo como nos comunicamos _ queiramos ou não _ é um passaporte de inclusão social. Como a roupa que escolhemos numa entrevista de emprego.
 
Os ricos de São Paulo podem falar, como na piada regional contada por cariocas, "dois pastel e um chops", mas sabem que estão errados. Os pobres, quando usam o caricato "a gente fomos", não se dão conta do erro, embora sejam compreendidos por seus colegas e patrões. A diferença nesses casos está justamente na consciência de burlar, de desviar, de subverter, como ocorre nas grandes revoluções. Os que transgridem conscientemente têm um propósito. Se um mendigo está com as roupas rasgadas é um pobre coitado. Se essas mesmas roupas são usadas, na década de 70, por jovens de cabelos raspados ou espetados que seguram cartazes contra o sistema e gritam palavras de ordem, elas fazem parte do figurino punk, movimento de contestação social. Aproveitando a metáfora: se o pobre, então, não gosta de se vestir com trapos, não podemos fazê-lo acreditar que é aceitável fatiar a língua portuguesa e arrancar seus "esses".
 
Quero ver quem terá coragem de escrever num próximo livro do MEC que as roupas rasgadas do pobre são manifestações culturais ou sociais. Ele não compra uma vestimenta nova simplesmente porque não tem dinheiro para isso, porque este é o capitalismo brasileiro. Assim como não fala corretamente porque não tem dinheiro para frequentar uma escola particular, porque abandona as salas de aula para ingressar no tráfico de drogas, porque vira mão de obra barata depois de um curso técnico qualquer. Porque esta é a realidade da educação brasileira.

* Luciana Brafman é jornalista e professora do Departamento de Comunicação da PUC-Rio.