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Rio de Janeiro, 27 de julho de 2024


Opinião do Professor

Professoras avaliam livro didático "liberal" do MEC

Maria Fernanda Nunes, Sonia Kramer e Maria das Graças Dias Pereira - Do Portal

25/05/2011

 Divulgação

A distribuição do livro Por uma vida melhor, no início do mês, pelo Programa Nacional do Livro Didático para a Educação de Jovens e Adultos, a quase 500 mil alunos levantou discussões no Brasil todo acerca do ensino da língua portuguesa na escola. Sob o argumento que desobediências à norma culta estão sujeitas a preconceitos, os autores da publicação referendada pelo Ministério da Educação validam erros (ou "formas menos adequadas") de concordância supostamente comuns na fala popular, como "nós pega o peixe" e "os meninos pega o peixe". A convite do Portal PUC-Rio Digital, professoras da PUC-Rio aprofundam a reflexão deflagrada por mais um capítulo controverso da educação brasileira. Nos artigos publicados abaixo, as visões plurais indicam a complexidade de um assunto imerso em aspectos educativos, sociais, culturais, políticos e econômicos – e cuja abrangência aponta para a qualidade na formação de cidadãos. No primeiro texto, as professoras do Departamento de Educação Sonia Kramer e Maria Fernanda Nunes fazem uma avaliação à luz da pedagogia e da qualificação profissional. Elas lecionam, respectivamente, as disciplinas Metodologia de Ensino de Língua Portuguesa e Alfabetização, ambas voltadas à formação de professores da Educação Infantil e dos primeiros anos do Ensino Fundamental. O segundo artigo foi escrito pela professora do Departamento de Letras Maria das Graças Dias Pereira, com uma análise mais técnica sobre a decisão do MEC.

 

O direito de falar, de ler e de escrever 

Por Maria Fernanda Nunes e Sonia Kramer

Na formação de professores é importante refletir sobre o papel social dos professores alfabetizadores. Que concepções de sujeito, de conhecimento e de educação orientam o trabalho pedagógico? Como são entendidas as relações entre linguagem e sociedade.  Esses conceitos importam porque neles se alicerçam as práticas educativas. Às vezes, a apropriação de fundamentos teóricos por aqueles que elaboram orientações curriculares ou desenvolvem atividades de sala de aula é intencional; em outras, resulta do modo como circula a cultura ou no modo como interatuam conhecimentos espontâneos e conhecimentos científicos, ideologia do cotidiano e sistemas ideológicos. Ideias e conceitos aprendidos aliam-se à experiência do professor, mesclam-se a textos ou partes de textos, combinam-se a informações de publicações de divulgação educacional e não raro acabam sofrendo severos equívocos teórico-metodológicos.

O campo da alfabetização e do letramento enfrenta, desde o início do século XX, disputas de ordem teórica e metodológica, ora de forma polarizada ora articulando facetas e enfoques. Diferentes áreas do conhecimento têm logrado sistematizar, com base na investigação científica de grupos institucionalizados, inúmeras contribuições, constituindo e consolidando o campo. A partir de ângulos teórico-metodológicos diversos, observa-se a mesma polarização que percorreu o século XX: uns insistem sobre a base fonética que os métodos deveriam enfatizar, outros sobre o processo e o contexto de produção da leitura e da escrita.

Contudo, com base na Psicologia, Psicolinguística, Sociologia da Linguagem, Sociolinguistica, Antropologia, Filosofia, em diversas correntes da Pedagogia (em particular das obras de Freire e Freinet) e em estudos de linguagem, alfabetização, leitura/escrita têm sido produzidos consensos teóricos e subsídios práticos para o trabalho com crianças, jovens e adultos entendidos como sujeitos sociais, produtores de cultura e nela produzidos. O foco: acesso e a permanência de todas as crianças e jovens brasileiros à/na Educação Básica de qualidade de forma a garantir leitura e escrita. Educação, crescimento, aprendizagem e possibilidade de mudança devem prolongar-se ao longo da vida, com condições de qualidade educacionais para favorecer a emancipação da população e colocar o país em patamares satisfatórios de participação social e cidadania. Trata-se, pois, de educação e de alfabetização como direitos sociais.

Na última semana, fomos surpreendidos pela polêmica/desconhecimento sobre a circulação, nas instâncias educativas públicas, de material didático que admite, no interior da escola, a existência de variedades do português falado onde não é necessário flexionar o substantivo para concordar com um artigo no plural. A obra citada, intitulada “Por uma vida melhor”, coordenada pela organização não-governamental Ação Educativa, submeteu-se a um rigoroso processo de avaliação, por uma equipe de especialistas – formada por professores universitários, dentre outros –, e compõe o Programa Nacional do Livro Didático, do Ministério da Educação, na modalidade Educação de Jovens e Adultos, a quem se destinada. O trecho que gerou tanta polêmica faz parte do capítulo “Escrever é diferente de falar”.  

Este tema é conhecido no Brasil há mais de trinta anos por professores e pesquisadores que partilham de uma concepção de língua viva, produzida na história, marcada pela diversidade e trabalham para que a leitura e a escrita seja apropriada por todos a partir do acesso aos mais diversos gêneros e suportes. A fala não tem ortografia: todas as línguas têm diferentes modos de falar, seja por origem geográfica ou social. O respeito ao modo de falar é condição para garantir que crianças, jovens e adultos escrevam com correção, maior objetivo dos primeiros anos do Ensino Fundamental.

A pluralidade que nos constitui necessita, no que diz respeito à linguagem e à alfabetização, da diversidade textual que caracteriza a produção humana. Alunos, crianças, jovens e adultos precisam se reconhecer enquanto sujeitos, falantes competentes, para continuar o processo de ensino e aprendizagem – o que seria de cada um se o que se verbaliza é frontalmente rechaçado pela escola? Que aportes teórico-metodológicos podem enfrentar a falta de reconhecimento do outro enquanto sujeito de fala, que pronuncia o mundo, suas crenças, que educa filhos e que desenvolve o senso crítico, de modos diversos e em contextos diversos, inclusive na escola? Ninguém fala como escreve e ninguém contesta que é na escola o lugar legítimo para se aprender a norma culta – onde o texto expressa o contexto e o reinventa na criação de um mundo menos preconceituoso e desigual.

 

“Por uma vida melhor”: entre a variação, o preconceito e a política linguística

Por Maria das Graças Dias Pereira

O livro “Por uma vida melhor”, de Heloísa Ramos, obra destinada à Educação de Jovens e Adultos (EJA), e adotado pelo MEC, vem apresentando reações desfavoráveis na mídia, em entidades como a Academia Brasileira de Letras, e posições favoráveis em associações de linguistas, Associação Brasileira de Linguística – ABRALIN, e linguistas aplicados, Associação de Linguística Aplicada do Brasil - ALAB. Posições são também veiculadas em blogs, em uma ampla discussão social. A polêmica em si é saudável por sair dos ‘Entre muros’ da Universidade e da Academia, para o debate popular.

Vejamos, então, a proposta da autora em seu livro, no polêmico capítulo “Escrever é diferente de falar”, disponibilizado no site da editora. São propostas, além de diferenciações entre fala e escrita, a concepção de variação. As variantes são regionais, e de classes sociais. Só não há clareza em relação ao registro - grau de formalidade e informalidade -, que se confunde com a escolha da variante social a ser utilizada.

Quanto à posição da autora em considerar que “a escola deve se preocupar em apresentar a norma culta aos estudantes, para que eles tenham mais uma variedade à sua disposição”, é respaldada por Soares, em “Linguagem e Escola”, que traz a discussão sobre a ‘diferença linguística’ do sociolinguista William Labov. Para a autora, ‘diferença não é deficiência’ e, para a escola, uma das possibilidades é de adotar a postura de um bidialetalismo funcional.

Para estudiosos da linguagem, a discussão, portanto, não é nova. A homogeneidade linguística é um mito. Há uma variedade de publicações utilizadas em cursos de graduação de Letras e Linguística, nas universidades brasileiras (A língua de Eulália, de Bagno; Educação em língua materna, de Bortoni-Ricardo; A diferença que desafia a escola, de Andrade; Da fala para a escrita, de Marcuschi; Investigando a relação oral/escrito, de Signorini). O que teria então provocado a polêmica? Entendo que pelo menos três aspectos podem ter sido relevantes: a discussão sobre a variação linguística, interpretada como ‘erro gramatical’; o ‘alerta’ em relação ao preconceito linguístico; a representação de uma postura de política linguística, na adoção do livro pelo MEC.

A discussão mais polêmica, e de maior destaque na mídia brasileira, se deu em relação à variação, com foco, em especial, na falta de concordância em frases como “Mas eu posso falar ‘os livro?’, “Nós pega o peixe”, “Os menino pega o peixe”.

Maria Marta Pereira Scherre, linguista e sociolinguista, especialista em variação linguística, dedicou-se ao estudo da regra de concordância de número no sintagma nominal na língua falada do Rio de Janeiro, em seu mestrado (PUC-Rio, 1978) e doutorado (UFRJ, 1988). Scherre publicou recentemente o livro “Doa-se lindos filhotes de poodle”, em que retoma a discussão sobre a concordância, afirmando que, na modalidade de língua falada do português brasileiro, pessoas escolarizadas também deixam de colocar marcas formais de plurais em construções como “umas casinha bonitinha”, “essas carne congelada”, “as coisa tá cara”. Ela destaca que há formas que provocam forte rejeição de pessoas escolarizadas, como “os avião”, “as ota pessoa”, “as criança foru leal”. As marcas de concordância são redundantes e há fatores linguísticos e extralinguísticos que explicam as razões da variabilidade.

O preconceito linguístico vem sendo discutido em relação às classes populares de menor prestígio social, que usam uma linguagem ainda não ‘moldada’ pelo acesso à escola. Nos dizeres de Bourdieu, o sociólogo francês, a linguagem, na estrutura social, situa-se no âmbito das trocas simbólicas, com o seu valor de mercado linguístico.

A questão da representação de uma postura de política linguística, nos termos de Calvet (2002) e (Fiorin, 2004), na adoção do livro pelo MEC, pode ter provocado reações. A postura, antes adotada no âmbito da Universidade e da Academia, alcançou o contexto da Escola. Os Parâmetros curriculares nacionais (1998) já traziam, em suas diretrizes, as relações entre a variação linguística e a prática pedagógica.

Minha posição, enquanto linguista aplicada atuante na formação de professores, é a de que precisamos, além da defesa da variação linguística e do respeito às identidades sociais estigmatizadas, ensinar a ler e produzir textos na escola, deslocando o foco do ensino das regras normativas, dos compêndios gramaticais, para a língua em uso em diferentes contextos, incluindo as novas tecnologias, os meios digitais. Assim estaremos preparando os alunos para futuros mercados de trabalho e cumprindo nosso papel de educadores e cidadãos.