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Rio de Janeiro, 23 de abril de 2024


Cultura

Dorrit: "Documentário e jornalismo vivem aproximação"

Carina Bacelar - Do Portal

24/05/2011

Divulgação

A busca do “lide” (informação mais importante), o olhar sensível sobre a história do outro e o cuidado ao traduzi-las para serem lidas, ouvidas ou assistidas são características do fazer jornalístico em todas as mídias. Quando alguém com tais hábitos sai da redação e vai para trás das câmeras, impulsiona o intercâmbio não raramente proveitoso entre o jornalismo e o cinema. Assim fez Dorrit Harazim ao gravar o documentário A Família Braz, com uma equipe formada por mais dois jornalistas e três cineastas. Dez anos depois, a editora da revista Piauí e ex-correspodente internacional, que cobriu do 11 de setembro chileno (golpe militar contra Salvador Allende) ao 11 de setembro americano, revisitou a mesma família da periferia paulistana. Colheu fragmentos do cotidiano entre sonhos realizados e reciclados, transformados no documentário Dois Tempos, apresentado semana passada na PUC-Rio. A produção em parceria com o cineasta Arthur Fontes chega ao circuto comercial no dia 10 de junho.

Dorrit e Arthur fazem uma radiografia da família de classe média depois de uma década significativa para o país. Para Dorrit, a autonomia adquirida no jornalismo impresso foi fundamental para contar o cotidiano dessa família de maneira sensível, com uma pequena equipe de produção. Ela acredita que o jornalismo e o gênero documentário vivem uma aproximação:

– Eu me surpreendi com o quanto o exercício da profissão de jornalista me dá certa vantagem no documentário, sobretudo uma segurança de ação. Uma das vantagens é a agilidade para se desfazer do técnico atrelado ao cinema – avalia. – Eu não sou documentarista, eu faço documentário – ressalva.

Documentarista ou jornalista, Dorrit admite que, antes da primeira incursão no cinema, em 2001, era contrária à figura do produtor, comum na TV e no cinema, porque ele seria “um intermediário entre você e seu foco”.  Mas, aos poucos, aprendeu que o trabalho em equipe, principalmente no suporte técnico, é necessário para se contar uma história por meio de imagens:

– Na minha profissão, há 40 anos, eu faço tudo sozinha. E o lindo aprendizado que tive foi o de abaixar a cabeça e reaprender que, em um mesmo projeto, cada um tem uma função insubstituível. 

Se foi surpreendida, Dorrit também surpreendeu os colegas cineastas tanto em A família Braz quanto em Dois Tempos, pela opção de dispensar roteiros antes de gravar depoimentos, pois “tirariam a espontaneidade desse tipo de documentário”.

– Com isso (ausência de roteiro), você corre riscos. Há dez anos, nós filmamos em película, o que era caro. Tínhamos 10 minutos para cada rolo. Não podíamos fazer entrevistas de duas horas. Isso era um complicador tecnológico. Com a tecnologia moderna, ficou mais fácil. Mesmo assim, o câmera ficava sem respirar durante uma entrevista muito longa. Como jornalista, você percebe que “é agora ou nunca”. Não vai ter uma segunda chance – lembra.

A tecnologia que antes era um complicador, hoje é um reforço à produção documental. O meio digital, segundo Dorrit, diminui os custos altos da gravação em película e "democratiza a produção do gênero", o que justificaria o grande número de documentários no mercado.

 – As novas tecnologias contribuíram muito, porque permitem uma edição mais fácil. Hoje, com a tecnologia digital, o preço é completamente diferente, você não fica pensando se vai estourar o orçamento. Tanto que dá para ver o número de pessoas que estão com uma câmera na mão, fazendo documentários ótimos – observa.

Arquivo pessoalDorrit admite que, ao priorizar o conteúdo e o teor das entrevistas, a produção “deixou passar” algumas falhas técnicas. Para ela, o objetivo nunca foi ganhar prêmios em aspectos técnicos.

 – Por exemplo, você capta finalmente o momento em que um dos personagens volta para casa. Depois de ficar um dia inteiro esperando, sem a certeza de que ele voltaria, chega um telefonema de desculpas, avisando que você não vai voltar. Chega um horário em que a luz está completamente diferente do que você imaginava, ou gostaria. Se fosse uma produção roteirizada não deixaria passar esse tipo de falhas de enquadramento, iluminação, foco – revela.

Entre os membros da família Braz, o comprometimento foi grande (“Eles eram muito zelosos, apesar de terem suas agendas próprias”). O que mais surpreendeu Dorrit foi a ascensão econômica dos integrantes, em um contexto de crescimento da classe média brasileira tanto em número quanto em poder aquisitivo. Um símbolo dessa ascensão é uma cena em que eles posam ao lado de seus carros na garagem, todos adquiridos na última década.

 – O que me chama atenção nessa família é que, embora tenham tido acesso a bens que há pouco lhes eram negados, nenhum dos membros perdeu o contato com virtudes herdadas. Eu acharia mais provável que, na medida em que melhorassem de vida, esses laços de afeto desaparecessem. Mas os filhos insistem em trazer os pais para esse mundo novo, em vez de ficarem com vergonha social das raízes – destaca.

O fato de os membros da família Braz não se sentirem intimidados pela câmera pode ser percebido com mais clareza em algumas passagens. Como quando Anderson, um dos filhos, afirma, diante de Dorrit, que "a imprensa é a algoz e a porta-voz" da sua classe. As palavras dele, no entanto, não causaram constrangimento, e até encontraram respaldo na opinião da jornalista. Para ela, programas apelativos se utilizam dos problemas relacionados à periferia em busca de comoção e audiência.

– Você liga a televisão e vê o quanto a periferia tem sido explorada. Por outro lado, a população se sente mais protegida. Acha que fazendo uma denúncia para a imprensa ela pode ser uma aliada dessa população que se sente à margem da proteção do poder público – afirma.

Dorrit revela que "não tem interesse, nem no jornalismo nem no cinema, em abordar um assunto que conhece", com a exceção das Olimpíadas. "Desconhecimento" para Dorrit, leitora ávida, significa ler menos do que dois livros sobre o assunto. Ela conta que precisa "tropeçar' em boas histórias para mergulhar nelas. Foi o que aconteceu com o "Gene Kelly da periferia de São Paulo", um homem que cresceu vendo o pai tocar em salas de cinema mudo e tornou-se um obcecado por musicais americanos.

– Desde criança, ele conviveu com as salas de cinema, se apaixonou por elas, e tem uma cultura de musicais americanos absurda, acho que sem igual no Brasil. E mora na periferia, em um barraco caindo aos pedaços.

Há um certo descompasso, no entanto, entre a vontade da jornalista de levar essa história às telas e o custo de produção. A compra dos direitos de todas as trilhas sonoras que entram no filme o torna "inviável". Isso ilustra, segundo Dorrit, um pouco das diferenças entre o fazer jornalístico e o fazer documental:

– Documentaristas e cineastas vivem de filmar coisas que depois não se materializam em projetos. E o jornalismo é uma coisa mais imediata.