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Rio de Janeiro, 27 de julho de 2024


Crítica de Cinema

Em "Homens e deuses", martírio é exemplo de tolerância

Miguel Pereira - Do Portal

04/05/2011

 Divulgação

Premiado em diversos festivais, inclusive o Prêmio do Júri do Festival de Cannes do ano passado, Homens e deuses, de Xavier Beauvois, é um filme que vai na contracorrente do cinema contemporâneo da visualidade total. Ao contrário dessas produções que não conseguem trabalhar com a sutileza, o filme de Beauvois faz da contemplação a sua proposta estética central. Não a mera contemplação das imagens, mas da vida mesma que pulsa no dia a dia do convento e da comunidade argelina. Nesse contexto, onde a violência irrompe no ambiente pacato da vila, era aceitável que cenas de violência fossem o foco do filme, como na grande maioria das produções recentes. Beauvois, no entanto, interiorizou seu relato, espiritualizou as relações e tornou o meio ambiente sacralizado. A persistência dos monges em continuarem fieis à missão que tomaram para si não acontece sem dor e sofrimento. As inseguranças e os medos do enfrentamento de uma morte anunciada não alteram a rotina do bem fazer e da entrega ao outro. Disputas, votações e desejos não são escamoteados numa dramaturgia dosada e serena. Essa equilibrada fusão entre o interior e o exterior é captada com muita maestria pelo premiado cineasta francês.

As seqüências que antecedem o final do filme são um primor de construção dramática. A última ceia iniciada com a imagem do vinho repartido torna-se um extraordinário balé de fisionomias e expressões ao som do Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky. O sentido  e os sinais emitidos conduzem ao momento da celebração da vida e não da morte que, sem dúvida virá, mas agora aceita e compartilhada. Nada faz crer que do grupo de monges nem todos terão o mesmo destino fatal. A chegada dos sequestradores e o apelo ao governo francês acabam por distribuir as possíveis responsabilidades do massacre dos monges. Na verdade, o colonialismo francês retorna como vilão da história de uma Argélia sofredora, explorada e num movimento onde a corrupção e o terror floresceram. É o retorno do oprimido, do lado escuro das almas e das atrocidades que campeiam em nossas sociedades atuais. O martírio dos monges torna-se assim um exemplo de tolerância e convivência com a diferença.

Homens e deuses é um filme riquíssimo de significações que merece uma atenção especial dos espectadores de qualquer credo ou cultura.  Tanto o Alcorão como a Bíblia estão colocados em pé de igualdade na construção da paz e da concórdia entre os homens. É assim também um filme ecumênico. Especialmente para os católicos, é uma maneira de refletir sobre as ações que transformam o mundo com a palavra salvadora. É um filme que não se deve perder.

Miguel Pereira é professor da PUC-Rio e crítico de cinema.