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Rio de Janeiro, 24 de abril de 2024


Crítica de Cinema

"Incêndios" impõe-se como um hino à ternura das relações

Miguel Pereira - Do Portal

02/05/2011

 Divulgação

Em cartaz desde de fevereiro, Incêndios, do canadense Denis Villeneuve, foi indicado para Oscar de melhor filme estrangeiro, mas perdeu para o dinamarquês Em um mundo melhor, de Susanne Bier. Não se trata de comparar os dois filmes, pois são bem diferentes em estilos narrativos e formas de produção. No entanto, ambos têm a qualidade superior das obras cinematográficas identificadas com o empenho criativo. Incêndios surpreende logo de início. O espectador pensa que entrou no filme errado. A palavra gêmeos, em grafia típica dos títulos, que aparece logo na abertura, é, na verdade, um espécie de capítulo indicativo da trama, aliás, complexa e lacunar. Entra-se na história aos poucos e com mudanças freqüentes de tempo e espaço. Essas idas e vindas da narração acabam por deixar o espectador cada vez mais intrigado e atento ao filme. Ele não sonega informações, mas as solta na medida justa de sua proposta estética assumidamente labiríntica. Seu tom geral é reflexivo e diz respeito aos problemas da vida contemporânea, mas que podem também ser entendidos como algo presente em todas as formas de opressão e aniquilamento do outro.

No caso de Incêndios, assistimos a uma espécie de tragédia que se abateu sobre o Líbano durante a guerra religiosa, onde as milícias cristãs operaram um verdadeiro terror na população. É nesse ambiente conflagrado que se passa a maior parte da história do filme. O desvendamento do passado, no entanto, não discute diretamente o sentido da guerra, mas indiretamente a condena e ao mesmo tempo recompõe o sentido do amor entre as pessoas. Na verdade, esse retorno à terra da origem, mesmo que pela memória, funciona como uma espécie de epopéia nos moldes clássicos. Nesse sentido, a citação à cicatriz de Ulisses, de Homero, parece ser uma ousadia, pois funciona na figura de um anti-herói e não como no mito grego. De qualquer modo, é pela cicatriz do primogênito que a trama se resolve. Parece evidente que essa marca feita no recém-nascido e só identificada ao acaso tem inspiração na epopéia clássica de Homero. Ao mesmo tempo, o sentido do perdão e da construção de um amor verdadeiro acabam por dar sentido até mesmo ao horror do mundo. Incêndios é um hino à ternura das relações, mesmo quando a tortura desrespeita o ser humano. O que importa é que ele seja capaz de sair da condição de vítima para a de protagonista da própria vida. Exemplos assim são testemunhados na vida social e servem de guia para uma humanidade melhor.

Denis Villeneuve construiu uma narrativa sofisticada, com um acompanhamento musical excepcional e uma riquíssima variedade de imagens, levando o espectador de Incêndios a uma espécie de auto-reflexão sobre o seu próprio destino no mundo. Um filme que se assiste com muito interesse e proveito.

Miguel Pereira é professor da PUC-Rio e crítico de cinema