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Rio de Janeiro, 25 de abril de 2024


Cidade

Escolas ruins na favela reproduzem cidade partida

Bruno Alfano - Do Portal

06/05/2011

Mauro Pimentel


A escola e a favela

A "cidade partida", como Zuenir Ventura definiu o Rio de Janeiro em livro homônimo, apresenta no sistema educacional uma das principais disparidades entre o "morro" e o "asfalto". Pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), do governo federal, as escolas públicas do Rio de Janeiro receberam em 2009 nota 3,1 e estima-se que alcancem 4,9 em 2021. Enquanto isso, as particulares receberam a nota 5,7 dois anos atrás. Nas favelas, essa situação se agrava. De acordo com o professor Marcelo Burgos, do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, a falta de pesquisas acadêmicas sobre as instituições de ensino nas comunidades carentes é um dos fatores para o baixo desempenho desses estudantes. 

– Há uma falta de conhecimento preocupante em relação à escola na favela – afirma o professor, um dos organizadores do livro A escola e a favela

Segundo Marcelo Burgos, mesmo professores que ensinam em escolas de comunidades mais carentes projetam características negativas nos alunos, por causa do local em que os estudantes vivem. 

 Mauro Pimentel – A favela acaba servindo como um bode expiatório para se evitar o confronto dos problemas da própria escola. Boa parte da "cultura da violência" que os professores atribuem ao mundo dos alunos é produzida na própria sociabilidade escolar – afirma Burgos.

Dessa maneira, de acordo com o professor, a escola passa a fazer um desserviço à comunidade.

– Mais do que simplesmente reproduzir a segregação urbana, a escola passa a produzir essa segregação – ressalta.

De acordo com a psicanalista Ana Carolina Vieira, autora da dissertação Ambiente violento, infância perdida?, defendida em março, a criança que apresenta um comportamento agressivo, o faz como um recurso para assimilar o que vive. Segundo ela, essa é a maneira pela qual expõe a realidade.

 Mauro Pimentel – A gente tem que lembrar que algumas dessas crianças têm bandidos na família. Tem criança que se identifica com o traficante e veste esse personagem. Essa é uma forma de elaborar o que vivem. Um mecanismo de defesa – explica.

Trabalhando na ONG Casa da Árvore, com atuação no Chapéu-Mangueira (Leme), no Turano (Tijuca) e no Morro da Conceição, Ana Carolina conta que observou um fenômeno corriqueiro entre as crianças: muitas amadurecem precocemente para suportar a carga de violência daquele ambiente.

– O amadurecimento precoce é uma consequência de um trauma desestruturante. Para a psicanálise, isso não está ligado à saúde, mas sim à patologia. Entretanto, esse fenômeno dentro do ambiente favela é até bom. É uma possibilidade de estruturação ali dentro. Uma possibilidade de vida – afirma Ana Carolina.

Para Renata Caldas, autora da dissertação Violência, redes de apoio e construção da subjetividade: dando voz a crianças de uma favela da Zona Sul do Rio de Janeiro, defendida em março, a imagem da criança malcuidada é, por vezes, uma falácia. Segundo ela, que entrevistou cinco meninas, de 9 e 10 anos, da Rocinha, maior favela do Brasil, as dificuldades dos pais em criar seus filhos são superadas com ajuda de pessoas próximas.

Mauro Pimentel – Às vezes, o pai e a mãe da criança têm que trabalhar e não podem cuidar da criança. Nesse momento, o núcleo familiar estendido é convocado para essa tarefa. E aí tios, avós e até amigos dos pais passam a cuidar dos filhos uns dos outros.

O cuidado familiar observado, segundo a psicóloga, é determinante para a superação do trauma da violência do ambiente em que vivem. Pois, de acordo com Renata Caldas, as crianças do “asfalto” são marcadas pela violência do discurso midiático, enquanto as do “morro” vivenciam a experiência, o que pode gerar traumas.

– A favela é esse ambiente complexo. Os agentes e as dinâmicas do lugar possibilitam essa condição de, ao mesmo tempo, favorecer o desenvolvimento de algumas condições e desfavorecer de outras – afirma.

 Mauro Pimentel A história de Gisele (nome fictício), uma das entrevistadas por Renata, é um dos exemplos mais claros dessa situação paradoxal da favela. Seu tio é um dos seguranças do tráfico de drogas da Rocinha. “Um dia, ficou atirando com os amigos dele perto da minha casa e eu quase fui atingida”, contou a menina, para a pesquisadora.

Entretanto, esse mesmo tio se responsabilizou pelo desenvolvimento da criança, desde que o pai dela morreu. Ele garante a alimentação, a moradia e até a assiduidade dela na escola.

– Esse tio personifica a favela: o mesmo personagem possibilita condições favoráveis e desfavoráveis à menina – compara Renata.

A psicanalista Ana Carolina Vieira conta ter encontrado na pesquisa crianças que, apesar de conviverem com a constante violência por parte do crime organizado e da polícia, são psicologicamente saudáveis.

– Na favela, a infância não é perdida. Apesar de todo o excesso, as crianças que eu conheci são criativas, brincam e se expressam bem – defende.

Entretanto, de acordo com a professora Ângela Paiva, do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, a "favela puxa a qualidade da escola para baixo". Segundo ela, é preciso "muito investimento" para resolver essa questão.

 Mauro Pimentel – Na pesquisa do livro A escola e a favela, visitei escola onde não havia sequer um inspetor para mais de mil alunos. É preciso contratar profissionais, investir em material didático em abundância, na construção de bibliotecas e salas de leituras, e ter professores bem remunerados – aconselha a outra organizadora da obra, publicada pela Editora PUC-Rio em parceria com a Pallas.

As más condições das escolas descritas no trabalho da professora Ângela Paiva, no entanto, contrastam com um modelo simples de sucesso.  Em Rocha Miranda, subúrbio do Rio de Janeiro, dentro da favela Jorge Turco, a Escola Municipal Paula Fonseca conseguiu – com muita disposição da direção e dos professores – tirar nota 6,4 no Ideb, o que lhe coloca entre as 2% melhores escolas do país. Para a diretora Celia Tavares, o caminho é fazer da escola um “oásis”.

– Nós começamos a fazer da escola um local prazeroso. Uma escola que a criança tenha vontade de frequentar. Tanto que não temos evasão escolar. As crianças não faltam muito. Se alguma falta, por doença, a mãe vai à escola e comunica – conta a diretora.

 Mauro Pimentel Há 26 anos na escola, Celia lembra que quando chegou à Paula Fonseca encontrou crianças com nove anos de repetência só na primeira série. Para a recuperação da autoestima do local, investiu na restauração física da escola. Depois, na disciplina dos alunos.

– Comecei a igualar todas as crianças. Todo mundo tinha que ter uniforme e quem não recebia cuidados dos pais, a gente fazia um trabalho de higiene nelas. Já dei banho, catei piolho, escovei o dente – recorda Celia.  

A diretora afirma que, mesmo com dificuldade, o ideal é manter uma relação próxima com as famílias das crianças. Para isso, nenhum tipo de privilégio é oferecido aos professores e à direção em relação aos alunos.

– A gente procura se aproximar das crianças e dos pais: eu não tenho gabinete, coloquei minha mesa no pátio para ficar mais perto deles e todo mundo come a mesma comida na hora do almoço – explica.