A atual crise da Polícia Civil no Rio traz de volta aos noticiários um tema recorrente: a corrupção dentro das instituições de segurança. O complexo jogo de poderes que envolve criminosos, autoridades e subordinados, policiais e agentes de segurança faz do combate à corrupção uma saga. É justamente dela que trata A dona das chaves (Editora Record, 2008). O livro, escrito pela jornalista Anabela Paiva e pela socióloga Julita Lemgruber, é centrado da gestão de Julita à frente do Departamento do Sistema Prisional (Desipe) durante o segundo governo de Leonel Brizola (1991-94)
O fato de ser uma história real não impede A dona das chaves de parecer uma narrativa de ficção, devido às incongruências observadas nas instituições brasileiras. A corrupção arraigada no sistema de segurança opõe os que lutam por mudanças àqueles que defendem a manutenção dos privilégios. Julita, integrante ativa do primeiro time, contou com a amiga Anabela Paiva para construir uma narrativa dinâmica e atraente da sua gestão e seus antecedentes no Desipe, permeada por histórias da própria Julita e de pessoas com quem conviveu no mundo prisional.
As duas autoras se conheceram no Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, onde Julita é pesquisadora e Anabela é consultora de projetos de comunicação. A ideia de escrever o livro, curiosamente, partiu de Anabela:
– Eu falei para ela uma vez: “Julita, eu queria escrever um livro, de reportagens, jornalístico, só estou procurando um tema”. Aí ela disse: “Então eu tenho um tema aqui para você” – lembra a jornalista.
Em comum, as duas tinham o interesse pelo tema da segurança pública e o lugar onde “debutaram” na relação com o sistema carcerário. Foi no Talavera Bruce, presídio feminino no qual Julita Lemgruber entrevistou uma série de detentas para a tese de mestrado e Anabela fez a primeira cobertura jornalística do gênero.
Segundo Anabela, a amiga “guardou de forma bastante organizada muitos documentos importantes.” Entre eles, o noticiário da época e o clipping (compilação de constúdos publicados na imprensa) que recebia de sua assessoria, relatórios e sindicâncias consideradas importantes. O cuidado em preservá-los escondia o desejo antigo da socióloga de, algum dia, contar aquela história.
– A ideia era compartilhar experiências e conhecimentos sobre um assunto de grande interesse da sociedade – explica a ex-diretora do Desipe.
Julita admite também o desejo de mostrar uma versão própria dos fatos cobertos pela imprensa “muitas vezes de forma parcial”. A participação da imprensa pontua os principais momentos do livro. Desde os grandes acontecimentos e investigações dentro dos presídios até as expectativas em torno do governo Brizola após o período de regime militar.
Naquela época, observam as autoras, havia um interesse "bem maior da sociedade em conhecer a situação das prisões". Principalmente por terem abrigado não só criminosos violentos, mas representantes das classes média e alta durante os “anos de chumbo”:
– A imprensa claramente fazia oposição ao governo Brizola – diz Julita.
– Havia na época uma preocupação grande com os direitos individuais, que foram muito violados no período militar. Hoje, vivemos um processo em que a violência se agravou de uma forma intensa. A população não consegue olhar para um indivíduo que tenha sido criminoso com um olhar mais humano, de solidariedade – avalia Anabela.
Se, naquela época, a imprensa era muito crítica ao governo, hoje, na visão de Anabela e Julita, os jornais fazem uma cobertura favorável à política de segurança pública empreendida por José Mariano Beltrame no Rio de Janeiro. Enquanto para Julita isso se deve a um novo contexto político e aos projetos de policiamento comunitário, para Anabela há um consenso entre as grandes empresas jornalísticas de que elevar a autoestima das instituições fluminenses é fundamental para o sucesso dos novos projetos.
– Fora isso, era uma época em que os jornais tinham equipes muito maiores. Havia setoristas do sistema carcerário que faziam uma ronda cotidiana nas fontes deles nos presídios para saber das novidades – acrescenta Anabela.
Ao longo da narrativa Julita se mostra às vezes descontente com o tratamento dado pela imprensa a determinados fatos. Ela diz que a dificuldade em lidar com a opinião pública era bem menor do que em lidar com greves e desvios de agentes penitenciários e funcionários. Segundo ela, "não viam com bons olhos" as medidas implementadas no Desipe:
– Não havia opinião pública a respeito desse tema. A opinião se resumia a “trancar os bandidos lá dentro e jogar a chave fora”. Em nenhum país do mundo as pessoas se interessam sobre a condição dos presos e do sistema carcerário – afirma Julita – Lidar com os agentes era mais difícil. Eles planejavam greves, sentiam o impacto de uma administração diferente de outros tempos.
Outra dificuldade atingia Julita fora do ambiente de trabalho: as constantes ameaças de morte que recebia. Ela lembra que nunca contou aos filhos, para não preocupá-los, mas conversava com o pais deles sobre o risco:
– É óbvio também que é preciso filtrar as ameaças. Muitas delas eram apenas recursos de intimidação contra uma gestão com medidas que desagradavam muita gente – pondera a ex-diretora.
Muitas dessas histórias marcaram migraram das lembranças para as páginas do livro. Julita e Anabela descrevem, de forma precisa, situações vividas pela socióloga. Em algumas delas, o nome de um personagem vira o ponto de partida. Como na história de Jessie Jane, uma jovem opositora ao regime militar presa com o namorado depois de tentar sequestrar – sem sucesso – um avião para trocá-lo pela liberdade de presos políticos. O caso de Jessie é do tempo em que moças “jovens, loiras e de elite” freqüentavam as galerias escuras e sujas das prisões femininas.
Outro caso curioso é o de um agente penitenciário flagrado roubando um frango da cozinha. Em um contexto de constantes desvios de alimentos nos presídios – combatidos pelo Desipe –, o agente teve o furto descoberto porém relevado. Pai de quatro filhos, sem recursos financeiros, achava injusto que as crianças passassem mais fome do que os presos.
As duas autoras fazem coro ao apontar o relato mais chocante: o do incêndio no presídio Ary Franco, em que 36 presos morreram carbonizados dentro de uma cela. Neste capítulo, Anabela materializa com precisão e eloquência a memória visual de Julita. O resultado é um emocionante relato.
Para Anabela e Julita, "ainda falta um longo percurso para solucionar os problemas do sistema carcerário brasileiro". Julita costuma citar o ex-ministro da Justiça inglês Thomas Hurd, ao considerar as prisões “uma maneira muito cara de tornar as pessoas piores”.
– A única forma de melhorar as prisões é fazer os investimentos necessários em projetos de educação e de trabalho. Também dar às pessoas oportunidades de tornar o tempo de prisão mais produtivo, bem como criar um padrão de penas alternativas para crimes não violentos – acredita Anabela.
Foram justamente as penas alternativas a bandeira levantada por Julita após a saída do Desipe. Ela coordena projetos em parceria com instituições americanas. Em um deles, um grupo de jovens advogados presta assistência jurídica a presos "não violentos". Também desenvolve uma série de estudos, como a pesquisa qualitativa com policiais das UPP’s cariocas. Deverá ser divulgado em abril.
– Não tenho como achar que a solução para alguém que cometeu um desvio é punindo-o com a privação da liberdade. A prisão tem o intuito de punir, não de reintegrar o indivíduo à sociedade – argumenta Julita.
Se falar de prisões desperta a indiferença de uma população que se sente vítima de um algoz coletivo – o tráfico de drogas –, a narrativa de Julita e Anabela, ágil sem menosprezar os detalhes, nos aproxima de um olhar menos simplista e mais amadurecido sobre o sistema carceráreo.
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