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Rio de Janeiro, 27 de abril de 2024


Mundo

"A experiência histórica definirá o processo democrático"

Thaís Chaves - Do Portal

02/02/2011

Reprodução

Mais de uma semana depois do início dos protestos no Egito, os manifestantes mantêm a mobilização no país mesmo depois do anúncio do presidente Hosni Mubarak, há 30 anos no poder, que não vai disputar as eleições de setembro. Mubarak afirmou que vai aceitar as exigências das forças oposicionistas e buscar o diálogo. No entanto, os grupos de oposição que comandam os levantes populares exigem a renúncia do mandatário.

As reivindicações foram consideradas legítimas em nota oficial do Exército, que prometeu não reprimir os manifestantes mesmo após seguidos protestos populares. Nos seis primeiros dias de protestos, mais de cem manifestantes foram mortos e milhares ficaram feridos, de acordo com estimativas locais.

O levante popular que derrubou o presidente da Tunísia, Zine El Abidine Ben Ali, após 23 anos no poder, inspirou os protestos em outros países de maioria Islâmica, principalmente no Egito e na Jordânia, mas também no Marrocos, Iêmen e na Síria.

A professora do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio Alessandra Maia Terra de Faria, autora do livro On the Social and the Political: Theories of Political Representation - Beyond the universal suffrage, em 2010, conversou com o Portal PUC-Rio Digital sobre os recentes acontecimentos. Para ela, as manifestações despertaram atenção especial pelo clamor libertário.

Portal PUC-Rio Digital: Como a senhora avalia os protestos políticos recentes no mundo árabe?

 Arquivo Pessoal Alessandra Maia: A mobilização social e política recente em alguns países árabes despertou especial atenção em todo o mundo por uma razão fundamental: seu clamor libertário. A possibilidade e a liberdade de comunicação via Internet, seja na Tunísia, em um primeiro momento, e agora no Egito, surgiram como a grande inovação e o gatilho dos protestos. A surpreendente capacidade mobilizadora da Internet, em especial das redes sociais, nestes lugares, fortemente marcados pela censura à liberdade de expressão, pode ser ressaltada inclusive pela retaliação imediata do governo egípcio, com sucessivas tentativas de bloqueio do acesso à rede e suspensão das linhas telefônicas. Acredito que é fundamental marcar que os mecanismos contemporâneos de liberdade de expressão, nesse caso, cunham a presente onda de protestos. Trata-se de uma organização coletiva espontânea por direitos humanos básicos em um ambiente extremamente repressor.

Portal: Qual pode ser o impacto da democratização em países onde o Islã é tradicionalmente forte, como no Egito, por exemplo?

AM: Informações que chegam via imprensa internacional chamam a atenção para o fato de que os protestos no Egito não estão ligados especificamente a nenhum partido ou movimento, mas a fortes demandas por direitos humanos dos mais diversos grupos. A concordância sobre o que vai mal – a desigualdade crescente – e demandas por agendas plurais são reflexos de problemas econômicos e sociais que não estão sendo politicamente tratados ou discutidos. A cidadania e a discussão sobre justiça social surgem aqui como os grandes canalizadores para a organização de uma possível democracia nos referidos países.

Portal: Há alguma incompatibilidade entre o Islã e a democracia?

AM: É complicada essa afirmação e de difícil sustentação. Creio que cada lugar, cada grupo social, é responsável pela construção de sua experiência democrática. Esta experiência sempre será única, nunca uma repetição. Isso colabora para o entendimento de que a questão não é “levar” a democracia para qualquer lugar, perspectiva que supõe superioridade entre sociedades. Dessa forma, cada lugar, a seu modo, encontra suas próprias formas de busca do processo democrático. Tal processo, para ser de fato constituído, deve ser vivido e experimentado socialmente, como os recentes protestos no Egito. Tudo deve ocorrer na medida em que a sociedade local demanda por mudanças.

Portal: Um processo de democratização nesses países pode levar um partido islâmico mais radical como a Irmandade Muçulmana ao poder. Quais os impactos internos e externos que poderiam surgir de um desenvolvimento desse tipo?

AM: Em momentos de ação coletiva espontânea como este, em tese, tudo pode. É preciso muita precaução, pois o sensacionalismo não ajuda. O maior problema que a imprensa noticia é a insegurança social, pois as pessoas passam a formar grupos para se defender enquanto a instabilidade política é muito alta. O lado negativo é a sensação de insegurança. Porém, a sociedade percebe sua capacidade de mobilização e a real possibilidade de questionamento de um regime político. Este regime passa a ser considerado como injusto, ao não dar espaço para o debate com a sociedade sobre as insatisfações latentes e optar pela repressão. O fundamental do processo democrático é a real possibilidade de que qualquer movimento que se organize para tanto possa se candidatar ao poder. Os clamores sociais atuais demonstram que qualquer grupo que almeje o poder terá que necessariamente lidar com a insatisfação política, terá que dar respostas ao desemprego, à inflação e à má gestão da administração pública e estar atento às melhorias das condições sociais de existência. Em um contexto como este, mesmo a perspectiva religiosa tradicionalista terá que lidar com esses fatores pragmáticos e determinantes.

Portal: Que tipo de reformas seriam necessárias para o apaziguamento político no "mundo árabe"?

AM: Acho complicado falar em “mundo” e em “apaziguamento”. Como comentei anteriormente, creio que falar em democracia faz parte de tornar cada lugar, cada sociedade organizada, o grande ator da sua própria experiência democrática. As contingências e a experiência histórica local serão definidoras do andamento do processo democrático. O que nos lega a teoria democrática é que a democracia é o espaço da discussão, do debate, da exposição e do respeito às ideias divergentes, e tudo isso dá trabalho, demanda muito tempo e é muito dissenso em geral. Não sei se o que a sociedade egípcia quer é o apaziguamento.  Acho que existe uma luta política importante por direitos humanos elementares, e a internet foi um caminho encontrado para mostrar à própria sociedade e ao mundo os anseios e problemas que estão sendo enfrentados por lá.

Caminhos para o conflito

Em 1981 após o assassinato do presidente Anwar Al-Sadat, por integrantes do grupo extremista Jihad, Hosni Mubarak, então vice-presidente, nomeado por Sadat, assumiu o governo do Egito. Desde então, seu mandato foi renovado por quatro vezes, em 1987, 1993, 1995 e 1999. Através de emendas constitucionais, ele governa em estado de emergência. Em 2005, após 24 anos no poder, Mubarak anunciou as primeiras eleições diretas da história do país, na qual também foi reeleito.

No seu governo, as relações com países árabes foram estreitadas. Em contrapartida, o Cairo esfriou os laços com Israel. Durante a Guerra do Golfo, Mubarak posicionou-se ao lado dos Estados Unidos, contra as intenções expansionistas do Iraque de Saddam Hussein e cultivou boas relações com o país.

Dentro de casa, o presidente recebe críticas da imprensa e da população. Manifestações constantemente são reprimidas e desestimuladas por uma força policial que conta com mais de 1,5 milhão de agentes em todo o país. Os egípcios se queixam do desemprego, da corrupção e do autoritarismo.

Em 2007 jornalistas foram presos e um editor condenado a seis meses de prisão após publicarem artigos sobre rumores com relação à saúde do presidente, o que desencadeu protestos contra a perseguição do governo.

Mubarak em 2011 completou 30 anos à frente do governo egípcio. No último dia 25 de janeiro, inspirados na Tunísia, onde populares tomaram as ruas pela derrubada de Zine El Abidine Ben Ali, há 23 anos no poder, os egípcios deram início a um levante contra a liderança de Mubarak.

O Movimento 6 de Abril, uma organização pró-democracia que está por trás das manifestações, recebeu apoio oficial da Irmandade Muçulmana. A organização é bastante influente na religião e na política egípcia. Em novembro de 2010, houve protestos por supostas fraudes nas eleições parlamentares após a organização não conquistar nenhum assento.