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Rio de Janeiro, 26 de abril de 2024


País

Vítimas das enchentes no Rio sofrem para superar o trauma

Carolina Bastos - Do Portal

03/02/2011

Valter Campanato/Abr

Depois da tragédia na região serrana do Rio de Janeiro, moradores, voluntários e aqueles que trabalharam para amenizar a situação no local enfrentam um outro tipo de problema: a recuperação psicológica.

– Isso é o que a gente chama de luto – afirmou a psicóloga e professora da PUC-Rio Ana Maria Rudge.

Maria das Graças, funcionária de uma fábrica de persianas em Nova Friburgo, perdeu a mãe, o padrasto, o irmão e mais de 30 amigos na tragédia. Sua casa foi interditada com risco de deslizamentos próximos e agora ela está em um abrigo com o marido, duas filhas e a neta de 3 anos.

– Estão nos tratando muito bem, conseguimos dormir algumas noites e nos alimentamos direito. Mas eu vejo muitas famílias como a nossa: chorando, se lamentando pelo que ocorreu. Temos que seguir em frente, Deus quis assim, não podemos fazer nada – disse.

As filhas Kelly e Claudia Bastos estavam com a mãe na hora do incidente. Os quatro correram para uma garagem vizinha, depois de terem a casa atingida por pedras. Maria conta, emocionada, que eles permaneceram no local até amanhecer:

– Não podíamos sair com aquela chuva. Nós morreríamos. Ficamos esperando que a morte viesse ou que Deus nos salvasse. Igual a isso eu nunca vi na vida – contou.

Maria esperava a autorização da Defesa Civil para voltar a sua residência.

– Eu me seguro, minhas filhas se seguram. Não sabemos o que fazer, todo mundo chora, perdidos. Eu realmente me sinto perdida agora, não sei o que fazer – lamentou.

Seu marido, o aposentado Cleber Bastos, de 63 anos, sofreu um aneurisma há dois meses. Com a tragédia, Cleber está inquieto, mas quase não fala. Sua pressão vem oscilando e o aposentado parece traumatizado:

– Ele sempre ajudava as pessoas, gostava de interferir nas situações. Mas depois da tragédia, ele não tem mais andado. Só passa mal, a pressão aumenta. E nós estamos esperando a equipe médica voltar a trabalhar no hospital, que está interditado, para fazer um acompanhamento do estado de saúde dele – explicou.

Em menor escala, a tempestade também mudou a vida de Myrna Bastos, de 18 anos, estudante de farmácia da Estácio de Sá de Nova Friburgo. Após a chuva, seus pais a proibiram de voltar a morar na cidade, com medo de novas tragédias. A casa onde vivia, em Corrego Dantas, foi soterrada. No momento da enchente, ela passava as férias em Conceição de Macabu, no norte do estado. Agora, a estudante fará faculdade em Campos. Myrna perdeu amigos e parentes, e está sofrendo com o desastre:

– Tenho buscado muita ajuda com amigos, porque morei em Friburgo e minha família ainda mora. Portanto, tinha um vínculo muito grande com tudo e todos de lá. É muita tristeza, mas temos que levar a vida, e se for assim que Deus quer, assim será. Aos que estão lá, digo que já são vencedores, pois estão com vida, o mais importante agora. – disse a estudante.

Myrna evita um contato direto com a região. Ela ainda não voltou à cidade para ver o que restou:

– Ainda não tive coragem de voltar. Fico imaginando que posso ter perdido mais pessoas queridas, que ainda não tive notícias. Eu não quero voltar lá, sei que vou sofrer ainda mais vendo tudo com meus próprios olhos – lamentou a jovem.

Para casos de pessoas que perderam amigos, parentes, casa ou emprego, a professora Ana Maria ressalta a importância do carinho e apoio das pessoas próximas ou até de desconhecidos:

– A solidariedade dos indivíduos e das instituições é indispensável na recuperação de alguém que sofreu uma tragédia como essa. A sensação de não estar só minimiza o desespero – afirmou a especialista.

O comandante dos bombeiros de Petrópolis, Nelson Targino, coordenou todas as ações de socorro da região. Durante seu trabalho, presenciou histórias de heroísmo e de perdas:

– Foram milhares de narrativas que nos comoveram. É difícil não se comover, nós somos seres humanos, e as tragédias sempre nos abalam – disse o comandante Targino.

Ele explicou que bombeiros e militares são treinados para reagir de forma racional diante das situações mais difíceis, sem perder o humanismo. Ainda ressaltou que são preparados para conviver diretamente com o conflito, mas que é impossível evitar alguma consequência psicológica.

– O bombeiro é o servidor. Nós botamos a vida do outro em primeiro lugar, em detrimento da nossa. Você arrisca sua vida para salvar a do outro. Tudo isso mexe com a gente. Passar por situações como essas nos faz ter mais forças psicológicas para enfrentar os obstáculos nas nossas próprias vidas – afirmou Targino.

A psicóloga Ana Maria Rudge explica que o traumatismo pode acontecer com qualquer um que esteja envolvido com a situação. Os bombeiros, confrontados com as mortes e a destruição, são mobilizados pela tragédia:

– É como se a segurança que tínhamos da permanência de nossas referências subitamente se mostrasse ilusória – disse a psicóloga.

Elaine Von Seehausen é consultora do Sebrae no Espírito Santo – MG, mas mora em Itaipava, na região serrana do Rio. Sua casa não foi atingida, mas ela se voluntariou no Ciep da cidade, para ajudar as vítimas atingidas pela tragédia. Elaine foi um dos primeiros contatos de muitos desabrigados, pois foi com o próprio carro até áreas isoladas, levando kits de higiene pessoal, lanche e água. Ela ficou chocada com toda a situação, mas ficou feliz com a superação das vítimas:

– Fiquei triste e abalada com tudo. Mas o que mais mexeu comigo foi a forma de superação das pessoas. Fomos entregar mantimentos em algumas casas cobertas de lama e água, e os moradores davam um jeito de nos receber com cafezinho. Um deles até me pediu uma cerveja – contou a consultora.

Elaine se voluntariou para coordenar, do Ciep, a logística do envio de mantimentos para moradores isolados:

– Fiquei muito comovida. Me senti impotente diante da dimensão do que aconteceu. Foi um trabalho de formiguinha, e o máximo que eu pude fazer. Mas estou encarando de uma maneira positiva. Fico até arrepiada de ver a garra e a força que as vítimas estão tendo – contou Elaine, emocionada.

A psicóloga Ana Maria Rudge ressalta que a recuperação psicológica depende da história de vida da pessoa e da dimensão da tragédia. A organização psíquica do indivíduo vai influenciar na resposta aos acontecimentos:

– Não se pode fazer generalizações rápidas, porque as pessoas são diferentes em todos os sentidos. Cada um responde de uma maneira diferente – afirmou.