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Rio de Janeiro, 24 de abril de 2024


País

Meninos sem casa, comida, escola, família

Bruno Alfano - Do Portal

17/12/2010

Bruno Alfano

Em 2010, o sequestro do Ônibus 174 completou 10 anos. Protagonizado por Sandro Nascimento, ex-menino de rua sobrevivente da Chacina da Candelária, o fato, entre outras coisas, demonstrou as consequências da ausência do Estado às crianças e adolescente que, por diferentes razões, tiveram seus laços familiares enfraquecidos e passaram a ter a rua como referência. Apesar da repercussão que o problema ganhou na época, o poder público pouco fez para que casos como o de Sandro não se repitam.

De acordo com a professora Irene Rizzini, por exemplo, do Departamento de Serviço Social da PUC-Rio, essa situação já devia ter sido resolvida.

– Participei da primeira pesquisa feita sobre o assunto no Rio de Janeiro e isso foi há 30 anos. Não estamos falando de milhares de crianças. São, no máximo, uma ou duas centenas de jovens circulando por dia pelas ruas nessa situação no Rio de Janeiro – afirmou a especialista.

Resolver o problema, entretanto, não é apenas impedir que esses jovens fiquem nas ruas, recolhendo-os, pela polícia ou Comlurb, aos abrigos – como ocorre atualmente. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, que comemora 20 anos em 2010, é obrigação do Estado garantir que as famílias consigam cuidar de seus filhos. Nesse sentido, segundo a professora Irene, é preciso resolver os problemas da casa daquele menino que está vivendo nesta situação e “fechar a porta de entrada para a rua”. 

– As crianças fogem para escapar da violência física ou outra mais sutil, quando a criança se sente invisível dentro de casa. Elas se sentem desimportantes, não têm lugar na própria casa e acabam nas ruas – afirmou Irene.

"As crianças fogem para escapar da violência"

Irene Rizzini

Em junho de 2009, o Centro Internacional de Estudos e Pesquisa sobre a Infância (Ciespi), presidido pela professora Irene Rizzini, lançou o documento “Os processos de Construção e Implementação de Políticas Públicas para Crianças e Adolescentes em Situação de Rua”. O relatório indica as principais vulnerabilidades dessa população. Segundo a publicação, as condições precárias de vida, o contexto familiar, a violência, o trabalho infantil, a violação do direito à educação e à saúde são os fatores que, conjuntos, expulsam as crianças e adolescentes de suas casas.

– A política que nós criamos já foi aprovada. Agora falta a implementação. O objetivo desse documento é garantir os direitos humanos dessa população e, para tal, criamos diretrizes para nove instituições, incluindo secretarias municipais e órgãos da sociedade civil. Não é problema de uma única secretaria. São múltiplos problemas e as soluções, portanto, têm que vir de todos os lados – afirmou Irene.

A educadora Cynthia Paes, do Departamento de Educação da PUC-Rio, explica que a falta de serviços básicos para as famílias fragiliza a vigilância que os pais deveriam ter sobre seus filhos, facilitando a ida de crianças e adolescentes para as ruas.

– Em piores condições sociais, a rede da criança é mais frágil e ela se desgarra. À medida que o tempo passa, a referência de casa acaba – afirmou a professora.

 Mauro Pimentel A perda da referência de casa é um agravante. Enquanto esse processo avança, as crianças em situação de rua vão criando seus elos nas ruas, o que dificulta a reinserção a suas casas. A professora Sarah Telles, do Departamento de Sociologia e Política, explica que, basicamente, há três tipos de situação de menores nas ruas. O mais grave é, exatamente, quando acaba a referência do lar:

–Tem a criança que está na rua, mas está ali porque não tem dinheiro para voltar ou porque quer ficar fora de casa por uns dias. Outras são as que vão ficando para conseguir dinheiro e voltam esporadicamente. O último caso são as que já perderam os laços familiares. É o caso mais dramático, porque raramente gostam do abrigo – afirmou a professora, especialista em populações de baixa renda.

Fornecidos pelas prefeituras como medida de proteção, os abrigos recebem crianças e adolescentes que são convencidos a se internarem. O município do Rio de Janeiro possui 10 centros de acolhimento de menores. Uma vez internado, o jovem recebe alimentação, roupas e auxílio no processo de reinserção familiar. A pedagoga de um abrigo, que não quis se identificar, defende que a Prefeitura está tratando do problema.

 Mauro Pimentel – As pessoas não têm noção do aparato que é mobilizado para se fazer esse trabalho de assistência. Esse é um serviço de ação continuada, 24 horas, de segunda a segunda. O trabalho de gestão não é de excelência, de perfeição, mas é um trabalho com qualificação.

De fato, o trabalho dos abrigos não é fácil. O psicólogo Antônio Carlos de Oliveira, professor do Departamento de Serviço Social da PUC-Rio, explica que as crianças e adolescentes que chegam ao local sentem dificuldades de se adaptar por estarem acostumados com a liberdade das ruas.

– O abrigo é uma política necessária, porém não dá conta da demanda. A abstinência de drogas, as regras... A rua é um lugar em que eles são livres, e o fato dos abrigos serem lugares coletivos, mesmo com a tentativa de individualizar as crianças, e pouco atraentes dificultam a adaptação desses jovens.

“A reintegração a família passa por ensinar tudo de novo: como dormir entre quatro paredes, como falar e não gritar, como se comportar” 

 Cynthia Paes

Além de cuidar desses menores, os abrigos ainda precisam fazer a ligação entre os jovens e suas famílias. Esta não é uma tarefa mais fácil que a primeira. A ativista Márcia Gatto, coordenadora da Rede Rio Criança – organização de 17 ONGs –, afirma que o trabalho de reintegração familiar é amplo e complexo.

– Na reintegração familiar deve ser feito um trabalho não só com o menino, mas também um aporte, um trabalho psicossocial com aquela família, para ela o receber novamente. Uma coisa é paralela à outra. Você tem que ver em quais condições que a família está. Às vezes, a família nem tem condição de receber a criança, ou, então, ali tem um quadro emocional que não comporta a reintegração. Esse processo passa por ensinar tudo de novo: como dormir entre quatro paredes, como falar e não gritar, como se comportar – afirmou Márcia.

A complexidade do trabalho, entretanto, não é justificativa para a presença de crianças e adolescentes nas ruas. Sem as garantidas assistidas pelo Estado, essa população precisa recorrer a pequenos furtos e a esmola para sobreviver e satisfazer seus desejos. O psicólogo Antônio Carlos de Oliveira afirma que a questão da esmola tem dois lados:

 Mauro Pimentel

– Dar dinheiro é ruim porque reforça a presença daquelas crianças na rua. É assim que elas aparecem. Essas crianças ganham visibilidade mesmo que seja incomodando, como as crianças em casa que incomodam para aparecer. Esse incômodo faz com que a sociedade se mova, mesmo que se seja para se proteger ou protegê-los – afirmou o psicólogo.

De acordo com a diretora de um dos abrigos da Prefeitura do Rio de Janeiro, que também preferiu não se identificar, o perfil do menino que vai para as ruas mudou em dez anos. Antes, a violência doméstica era a principal causa de abandono do lar. Hoje, é apenas mais um componente de um quadro de negligência resultada, principalmente, das dificuldades financeiras da família.

– A mãe sai para trabalhar e eles ficam um pouco soltos e vão se envolvendo em pequenos serviços para o tráfico, depois começam a usar a droga. Acabam "dando o desfalque" e passam a ser perseguidos – contou.

““Eu vim para o abrigo sozinho. Tenho que sair do Crack”” 

 Adolescente de 15 anos no abrigo.

O documento apresentado pelo Ciespi apresenta a seção Crianças e Adolescentes em Situação de Rua em João Pessoa, de 2008, que evidencia a experiência relatada acima pela funcionária da Prefeitura. O estudo demonstra que não há a figura paterna nas famílias dos meninos de rua – 71% das crianças e adolescentes dizem ter mãe, enquanto apenas 47% reconhecem alguém como pai.

Outro dado que chama a atenção é a quantidade do uso de drogas por parte dessa população. A última pesquisa realizada pela Prefeitura do Rio de Janeiro, em 2009, apontou que 90% dos jovens moradores de rua na cidade usam crack. Incentivados pelos adultos, que posteriormente passarão a vender as drogas, e em busca de conforto para o frio e a fome, a maioria dos meninos de rua começam a usar drogas. No abrigo, um adolescente de 15 anos contou que usa a droga há dois anos e procurou a instituição, pela terceira vez, para tentar largar o vício.

– Estava há oito meses morando na rua. Eu vim para o abrigo sozinho. Tenho que sair do Crack – desabafou o adolescente.