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Rio de Janeiro, 26 de julho de 2024


Campus

Velha Guarda da PUC conta histórias da "segunda casa"

Evandro Lima Rodrigues - Do Portal

15/12/2010

Mauro Pimentel

Eles já acompanharam a transição de cinco reitores e incontáveis mudanças nos prédio, no comportamento dos jovens, na maneira de vestir e se alimentar. Discretos nas respectivas rotinas, às vezes tornam-se invisíveis aos que cruzam os 105 mil m² da PUC-Rio. Mas, como as colunas características do campus, eles permanecem – e até se confundem com o cenário. São testemunhas ativas de transformações marcantes nessas sete décadas da universidade. Do clique em preto e branco às manobras na máquina digital, o fotógrafo Antônio Albuquerque tem 44 anos de PUC. Do instrumento de pedreiro ao gadanho de jardinagem, Valentim Satiro Pereira soma 32. Contados os anos como aluna, a professora Ana Branco, protagonista da feira dos alimentos biochip (germinados), chega aos 38. Outra figura fácil do campus, Abigail Pereira de Barcelos cuida da limpeza há 30 anos. Nesta reportagem, Antônio, Valentim, Ana e Abigail recontam algumas histórias colecionadas na "segunda casa".

Corria 1968 quando o pernambucano Antônio, que trabalhava na biblioteca central havia dois anos, foi autorizado a ocupar umas das casas da Vila dos Diretórios. Segundo ele, uma "prática comum": a universidade permitia que funcionários morassem na vila. Solteiro, o auxiliar administrativo da biblioteca só sairia da comodidade do campus para o altar em 1973. O casamento, é claro, foi celebrado na Igreja do Sagrado Coração, da PUC. A vida de casado veio acompanhada de outras atribuições profissionais. Foi transferido para o Departamento de Letras, onde ficou até ser convidado para uma função que acalantava desde os dez anos de idade – e possibilitada graças às aulas como ouvinte. Antônio assumiu o laboratório de fotografia, doação do governo alemão. O laboratório, inativo por falta de mão de obra, ficaria sob a responsabilidade do “ex-aluno ouvinte” do professor de fotografia Nelson di Rago. Uma concessão do ex-diretor do Departamento de Comunicação José Henrique Carvalho.

São dessa época fotos memoráveis, como as tiradas no seminário “A universidade e a realidade nacional”, com o padre Fernando Ávila S.J., ex-vice-reitor da PUC-Rio e membro da ABL, falecido no dia 11 do mês passado. Outras não eram oficialmente creditadas a Antônio, falha que atribui à forma amadora como eram tratados esses registros:

– Não havia uma assessoria de imprensa estruturada (na PUC). As fotos não eram arquivadas, assim como os negativos. Muitas eram enviadas aos jornais sem crédito.

Assim acabou sem crédito a fotografia do encontro entre o padre João Augusto Mac Dowell, S.J., então reitor da PUC, e o papa João Paulo II, na segunda visita ao Brasil, em1980. Antônio recorda:

– Lembro que a imprensa ficou num espaço reduzido durante a celebração da missa, no Aterro do Flamengo. Assim que acabou, o assessor da vice-reitoria da PUC pediu que eu fosse para o Sumaré. O papa ia visitar dom Eugênio Salles e haveria uma reunião com cem intelectuais brasileiros. Fui no ônibus da Arquidiocese. Após uma intensa revista, em que confiscaram uma das minhas câmeras, entrei no salão onde só havia, além de mim, uma funcionária da Arquidiocese, um fotógrafo de fora e a TV da Itália. Foi uma coisa magnífica.

As películas do fotógrafo eram preenchidas não só com a cobertura de grandes eventos. Fragmentos do cotidiano eram também captados por sua lente – como a reunião do movimento universitário em 1980 ou, da mesma época, um técnico em laboratório realizando experimento. O resultado de três décadas de registros ilustra o livro comemorativo aos 70 anos da universidade, em que chamam a atenção as mudanças documentadas pelos cliques de Antônio. Mudanças que, segundo o fotógrafo, estão "além das modificações pelas quais o campus passou":

– Assim como as estruturas físicas, o comportamento dos jovens também se altera. Essas mudanças eu consigo captar por meio das minhas fotos. Isso me motiva a novos registros, pois há sempre coisas diferentes a serem preservadas.

Um registro, no entanto, pertence à memória de quem viveu um momento difícil na PUC:

 – Foi uma época crítica na década de 1980, quando a universidade passou por uma crise financeira. Vivemos momentos de apreensão.

Superada a crise conjunta, o fotógrafo viveria uma outra, particular. Habituado a equipamentos analógicos, Antônio não acompanhou o processo de digitalização pelo qual seu instrumento de trabalho passou. Dispensado do ofício de fotógrafo, pois a PUC havia aderido à necessária modernização, ele teve de se adaptar às inovações até ganhar nova oportunidade, no Núcleo de Memória. Entre os cliques no campus e fora dele (depois da entrevista, ele cobriria a formatura das turmas de educação à distância), Antônio captura também imagens como o passeio de garças pelo Rio Rainha. Preenchem a rotina do aposentado de 63 anos que não pensa em largar a câmera tão cedo. A dedicação foi reconhecida com uma medalha, na cerimônia de comemoração dos 70 anos da universidade, no mês passado. Satisfação maior, retribui o homenageado, "é ser parte da universidade todos os dias".

 – A PUC é um estado de espírito, é uma extensão da minha própria pessoa – diz, emocionado.

Pilares vivos

Como as colunas fixas em determinados pontos, Valentim e Abigail são facilmente encontrados. De segunda a sexta, de uniforme verde  – não raramente confundido com o tom do seu "escritório" – Valentim Satiro cumpre a missão de limpar a parte do bosque conhecida como Praça das Araras, onde fica estufa. De uniforme cor cinza, Abigail limpa a entrada principal do edifício Cardeal Leme. Está na universidade há três décadas e é considerada "onipresente" por muitos.

 Mauro Pimentel Aos 84 anos, Valentim desloca-se cabisbaixo, por discrição e entrega ao serviço. Com o inseparável gadanho, retira do chão as folhas, incansavelmente. Mineiro de Mantenas, estava com 51 anos quando conseguiu uma vaga de pedreiro no campus. Fazia pequenos reparos. Passou  14 anos na atividade até ser transferido para a limpeza do bosque, por problemas de saúde.

O estado debilitado não comprometeu a disposição do jardineiro. Morador de Mesquita, chega às 7h30 para bater o cartão de ponto às 8 h.

Segundo Eduardo Lacourt, prefeito do campus universitário e "melhor amigo", como o diz jardineiro, Valentim tornou-se um exemplo profissional:

– Para estimular outros funcionários, sempre digo: observem o exemplo de Valentim – conta Eduardo.

Dos colegas ao estudante, o jardineiro inspira o meio acadêmico. Analfabeto funcional quando chegou à PUC, hoje frequenta a turma de alfabetização do projeto Meio-Dia do Núcleo de Educação de Adultos (Nead). Ele é um dos pioneiros da turma iniciada em 1997. Outro analfabetismo, Valentim está sanando aos poucos: substituiu o descanso após o almoço pelas aulas de informática da professara Simone Seguins.

– Ele ainda está se adaptado ao mouse, mas, quando à proposta é digitar, já se sai muito bem – orgulha-se Simone – Valentim exercita aqui os nomes de familiares, colegas de aula e da professora, que aprendeu a escrever nas aulas de português.

Aposentado há 16 anos, Valentim também não pensa em parar. Quando o prefeito do campus pergunta se já não é o momento de descansar, ele despista: “Vou trabalhar mais um pouco, depois aproveito a vida”.

 Mauro Pimentel

A poucos metros de Valentim, uma senhora de postura vergada causa certo dó aos desavisados. A posição é estratégica na rotina de 14 horas de faxina da viúva mãe de dois filhos, um médico do Exército e um eletricista. Abigail de Barlelos (foto), 76 anos, diz que tem ainda mais um filho: o trabalho. Por vontade própria, ela não tiraria férias, para passar mais tempo na universidade.

– Filho não cansa, e é isso que o trabalha também representa para mim – justifica.

José Maurício Anastácio, administrador da empresa da qual Abigail é prestadora, conta que foi obrigado a intervir para convencê-la do necessário descanso. Os apelos deram certo: ela só volta de férias em janeiro.

Contratada em 1970 para cuidar da limpeza do 7º andar do edifício Leme, Abigail testemunhou as modificações das salas ao longo dos anos. Encarregada de encerar as grandes mesas de mármore dos professores, os anos lhe dariam sempre um novo andar e uma nova função. Assim chegou ao térreo, e com ele a grata tarefa de limpar a capela. Católica, membro da irmandade de São Francisco de Assis, não é raro vê-la, na mesma postura curvada do trabalho, contemplando a hóstia.

 Mauro Pimentel

Para o companheiro de irmandade, padre Jesús Hortal S.J., ex-reitor da PUC-Rio, a figura sempre risonha e afável de Abigail "reflete a presença palpável de Deus". Impressionado com disposição dela, apesar da limitação física, faz questão de cumprimentá-la pela manhã, quando sobe para a sua sala, no 11º andar do Leme. A saudação – “paz e bem” – é um hábito franciscano. Já o cumprimento dedicado a professores, funcionários e alunos, marca registrada de Abigail, é outro: “doutor de ouro”.

– Um dia eu falei assim com um professor, que agradeceu o cumprimento. Eu quis então repetir para todos que falam comigo – conta ela, aposentada há 16 anos, mas "motivada a permanecer na universidade o tempo que a ainda deixarem".

– Ficarei enquanto me aguentarem. Estar ainda aqui hoje é motivo de muita alegria – anima-se.

No meio do campus tinha um rio

O Rio Rainha seria o divisor de águas na vida de Ana Branco. Aprovada em vários vestibulares, Ana Branco justifica a opção pela PUC: “o ambiente atravessado pelo rio era o mais interessante para mim”. Mais instigante tornaria-se a possibilidade de participar da primeira turma de design da universidade, deixando para trás os períodos já cursados de psicologia.

Reprodução/Internet – Eram 16 alunos. Nós desenhamos o curso com a equipe de professores e coordenadores. Isso era divertido e promissor. Fez com que o curso ficasse parecido com os alunos que desejavam fazê-lo. Ter na possibilidade do desenho uma profissão nova.

O espírito inovador da Ana Branco já formada em design a fez retornar à PUC em 1981, como professora, a convite do diretor do departamento José Luiz Ripper. A intenção do professor era dar "um novo caráter ao curso", organizado inicialmente a partir de uma visão europeia. Para isso, foi requisitada a participação da ex-aluna  – que havia desenvolvido na conclusão de curso um trabalho com argila, genuinamente brasileira.

Uma nova metodologia com feições nacionais passou a ser adotada. Pelas mãos da professora, ganhou um jeitinho singular:

– Nosso design é feito com a participação com o usuário. A gente trabalha um desenho coletivo, social onde o objeto não é construído a partir do fabricante, mas sim do desejo do usuário. E é isso que vem caracterizando nosso trabalho que é único no Brasil, singular.

O senso de coletividade foi o alicerce para construção da “barraca entre duas jaqueiras”. Uma sala de aula ao ar livre desenvolvida pela professora e alguns alunos. Na PUC desde 1988, a tenda de Ana Branco, como ficou conhecida a sala, passaria por várias modificações ao longo dos anos. No entanto, conserva uma característica do projeto original.

– Estava estudando o uso do fogo nos balões de São João quando fazia mestrado na USP. Esse estudo fez com que eu pensasse no formato do balão para construir a barraca. A cúpula inicial teve essa estrutura. Até hoje existe um lugar para acender o fogo.

Indispensável no encontro ecumênico promovido pelo departamento de Teologia, a possibilidade do uso do fogo e o caráter da tenda, foram os requisitos para a realização do ato. Segundo Ana Branco a exigência era que o local não caracterizasse nenhuma religião e permitisse a unidade entre todas através do acendimento da fogueira. Assim protestantes, católicos e participantes de religiões africanas deram mais um caráter ao espaço de comunhão.

 Carolina Jardim/Comunicar

– Me emocionou naquele momento ter construído esse espaço que cabe a várias formas, várias gerações.

Outros espaços foram sendo apropriados pela professora para divulgar às gerações de hoje e do futuro formas milenares de se alimentar. Há 17 anos ela começou a trabalhar na PUC com as pesquisas da médica lituana Ann Wigmore sobre os ensinamentos de Hipócrates. Os trabalhos do pai da medicina eram sobre a germinação de sementes comestíveis.

Aderindo à tendência, a PUC criou em 1995 a eletiva Convivência com o BioChip. E há 10 anos Ana Branco expandiu o conhecimento para a feira de desenho vivo. Toda quinta-feira uma exposição com alimentos “sob a forma de desenho com as cores da vida na Terra” como define a professora, tenta sensibilizar para outro modo de estar no planeta.

O local escolhido para a feira, o mesmo que há 38 anos encantou a professora hoje com 66  e quase a metade deles dedicados à universidade.

Gosto de caminhar ali por perto do rio. Um lugar regenerador. Toda vez que passo, páro e agradeço a Deus a possibilidade de estar num lugar onde há um rio correndo e junto com ele as ervas, os animais.