Projeto Comunicar
PUC-Rio

  • Facebook
  • Twitter
  • Instagram

Rio de Janeiro, 20 de abril de 2024


Mundo

"Lula faz uma imitação da Alemanha de Bismarck"

Juliana Oliveto - Do Portal

09/12/2010

 Divulgação

Professor associado do quadro permanente do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-Rio, R.B.J. Walker esteve na universidade no primeiro período de 2010 e se prepara para retornar no início de 2011. Walker é editor das revistas Alternatives: Local, Global, Political e International Political Sociology, além de autor de um dos clássicos da teoria de relações internacionais, Inside/Outside: International Relations as Political Theory. Seu último livro, After the Globe, Before the World foi considerado pelo professor Nicholas Onuf como uma "meditação profunda sobre as relações no globo e o futuro do planeta".

O Portal PUC-Rio Digital conversou com o professor a respeito da situação político-econômica mundial, o posicionamento dos Estados emergentes nesse cenário e sobre a era multipolar que vivemos. Segundo Walker, discursar sobre o mundo, a humanidade, é algo complicado se levarmos em conta que nossa cultura depende da exclusão para gerar seus conceitos mais preciosos. “O paradoxo é simples, a modernidade depende da exclusão, seja de pessoas, da natureza ou do próprio mundo, de modo a constituir o sujeito moderno, o sujeito moderno livre e igual” – explicou.

Portal PUC-Rio Digital: O senhor poderia fazer uma breve análise do cenário político-econômico mundial nos dias de hoje?

R.B.J. Walker: Há pelo menos três grandes narrativas sobre o mundo atual.  Uma delas, claro, diz que vivemos em um ambiente em radical transformação, seja ela produto da globalização, dos limites impostos pelo meio ambiente, das questões colocadas pelo terrorismo internacional ou pela proliferação nuclear. Há grandes e variadas narrativas nesse terreno, narrativas sobre "coisas" que não se comportam, teoricamente, de acordo com as expectativas. Estamos, supostamente, em um momento de disjunção entre os problemas que enfrentamos e as categorias que temos para analisá-los. Outra grande narrativa diz respeito à velha tensão entre o Estado e o capital, ou entre a soberania do Estado e a do capital, ou entre o Estado e o mercado. No entanto, esse é um tema-chave da vida política moderna há mais ou menos dois séculos e meio, senão mais. Nas crises, a resposta-padrão é colocar o capital sob o controle do Estado, mantê-lo nos limites da autoridade. Assim, é possível conceber um Estado-Nação moderno que funcione tanto como um corpo político quanto como um sistema econômico.

Portal: Mas isso não é algo que o keynesianismo pregava?

Walker: Sim, a expressão clássica desse pensamento é John Mayard Keynes, um personagem-chave do pensamento político do século XX. Mas Keynes não é a única opção, há também outras versões para o problema, como a socialdemocracia, o nacionalismo radical, a terceira via. Todas tentam nos assegurar de que é possível acomodar os pressupostos tradicionais da soberania, da autoridade nacional, e os fluxos e desejos de um capital amplamente globalizado. Nesse contexto, surgem questionamentos sobre se essas aspirações são possíveis ou se o momento apresenta um desacoplamento radical entre as capacidades do Estado e as possibilidades do capital, que, de determinadas formas, rompe as aspirações básico-temporais da identidade e da autoridade. De algum modo, fomos até aqui capazes de acomodar esses anseios divergentes entre a autoridade última: o Estado, a comunidade, o povo, e o capital. Apesar disso, no entanto, apesar de termos até aqui conseguido acomodar de forma mais ou menos eficiente as crises originadas dessa tensão, não está claro que possamos voltar para algo como o Estado keynesiano clássico. Não está claro que possamos voltar a algo como um Estado ideal que possibilite a socialdemocracia, ou Keynes, ou qualquer outra coisa do tipo. Esse tempo já passou, essa era chegou ao fim, e isso gera um problema enorme, uma questão analítica profunda mas também prática, por meio da qual políticos e pensadores tentam imaginar uma relação possível entre a soberania política e a econômica.

Portal: O senhor comentou a respeito de três narrativas que tratam do mundo atual, qual seria a terceira?

Walker: O outro ponto que hoje é levantado nas mais variadas instâncias é o de que nos movemos historicamente da bipolaridade da Guerra Fria para a unipolaridade e agora para a multipolaridade, e muito se fala dos aspectos positivos desse processo histórico. Ora, há formas e formas de interpretar o fenômeno. Um sistema internacional multipolar é claramente melhor do que a ambição do ex-presidente americano George W. Bush por um mundo unipolar. Bush colocou em prática movimentos perigosos, que ameaçaram implementar uma ordem do tipo imperial. O governo Bush foi marcado por ações perigosamente erráticas, que vinham do topo e se chocavam com o sistema moderno internacional, estruturado exatamente para resistir a ordenamentos desse tipo.

Portal: Passada essa fase...

Walker: Passada essa fase, o argumento é o de que muitos Estados estão hoje na condição de serem atores efetivos do sistema internacional, inclusive o Brasil. O problema é estarmos conscientes de que tipo de polaridade estamos nos referindo. Uma coisa é a que está presente na Assembléia Geral das Nações Unidas, que leva a sério a equivalência entre os Estados e suas soberanias. Outra é pensar na polaridade que está presente no Conselho de Segurança, algo radicalmente diferenciado, construído a partir de um velho entendimento, típico do século XIX, de que as grandes potências devem gerir a ordem internacional. O que espanta é que muito do que se fala hoje sobre multipolaridade faz referência aos anseios bismarkianos de poder da Europa do século XIX. Nesse momento, é preciso lembrar que essas tradições bismarkianas não foram e não são exatamente fantásticas ou benéficas para a raça humana. Nós conhecemos essa história. Essas tradições informaram o que houve de pior em termos de ação e política de Estado no século XX, dos fascistas aos modernizadores autocráticos.

Portal: Podemos afirmar, então, que estamos numa era multipolar?

Walker: De fato, preocupa o argumento de que estamos entrando supostamente numa era positiva, multipolar, quando a multipolaridade em questão é somente uma imitação, uma emulação dos velhos nacionalismos que pressionam do alto para baixo, supostamente calcados no argumento da elevação do padrão de vida nacional. Historicamente essa é uma experiência trágica e dificilmente será positiva no futuro. Mas se vamos tratar de multipolaridade, melhor que pensar nos novos pólos que deveriam fazer parte do Conselho de Segurança seria refletir sobre o próprio conceito de polaridade. Quem sabe pensar mais em termos de pontos, de cidades, lugares e regiões onde formas de poder que se expressam por meio de redes parecem convergir. Na verdade, o conceito de multipolaridade é bastante útil, mas não se pensado como no século XIX. Seria preciso pensar nos circuitos financeiros ou produtivos contemporâneos, nas redes de saber e de pensamento, na posição das cidades, nas redes universitárias, nas redes construídas pelos institutos de pesquisa, como exemplos de um fenômeno relativamente novo por meio do qual o poder é articulado por intermédio de redes e se acumula em locais onde essas redes convergem. É nesse sentido que deveríamos prestar atenção no pluralismo. O plural, por si só, não é algo necessariamente positivo. Nesse terreno, está claro, há necessariamente uma mudança. No entanto, é preciso ter muita atenção sobre como o plural está sendo pensando. Por um lado, pode-se fazer muita coisa interessante com o termo, em prol do entendimento de novas formas de distribuição de poder e da autoridade. Por outro, o discurso predominante sobre o tema reproduz formas muito antigas e perigosas da velha política de poder bismarkiana. Nesse ponto em particular, a contribuição da política externa brasileira para o sistema internacional é, no mínimo, discutível. O que Lula faz ou fez nada mais é que uma imitação da ação internacional da Alemanha de Bismarck.

Portal: Como podemos analisar o quadro geral das relações entre a humanidade e a construção política das nações?

Walker: Referir-se ao mundo, ao globo, à humanidade, não é tarefa fácil. No entanto, a prática se torna ainda mais complexa quando imaginamos o que significa pensar e discursar sobre todas essas coisas na linguagem de uma cultura modernizante e de todo o seu aparato político que depende radical e precisamente da exclusão para gerar seus mais preciosos conceitos, de política, de economia, de ética... O paradoxo é simples, a modernidade depende da exclusão, seja de pessoas, da natureza ou do próprio mundo, de modo a constituir o sujeito moderno, o sujeito moderno livre e igual. A cultura modernizante exige a exclusão de Deus e daqueles que não são capazes ou não estão preparados para se constituírem como parte da humanidade moderna. Trata-se de todo um sentido de exclusão que está embutido na construção da política moderna, inclusive a internacional, e em todas as suas narrativas. É algo que gera, por exemplo, uma divisão profunda entre o espaço da política internacionalizada e o próprio planeta. Com isso, o ser humano confronta uma contradição dramática no campo da ética, entre as esperanças de um sistema mais inclusivo, mais humanitário, mais global, mais planetário, e o reconhecimento de que todos os conceitos que usamos para dar forma a essas esperanças expressam a impossibilidade de se referir ao mundo senão como algo que está além de nós mesmos. Essa é uma questão fundamental do pensamento político moderno, de todos os pensamentos, de esquerda, de direita, de centro, quaisquer que sejam, e a verdadeira ruptura se dará apenas quando for realmente enfrentada.