O visual – à primeira vista – é o aspecto mais fundamental do desgin. Não para Fred Gelli, desginer da empresa Tátil e professor do Departamento de Artes da PUC-Rio. Tudo o que faz dentro e fora do trabalho, ele encara com os cinco sentidos. Talvez até com um sexto: a emoção, diz ele, move tanto sua carreira quanto sua vida. Assim também se comportava na época de estudante na PUC. Buscava experimentar a universidade com todos os sentidos. Tato para subir nos bambuziais. Audição para conversas acaloradas no IAG, onde o paladar era hidratado pela cerveja depois da aula. Olfato para os aromas do bosque, seu local preferido. E visão era um sentido essencial para "admirar as meninas nos pilotis".
Quando entrou na PUC, em 1984, Gelli escolheu a universidade pelo "encantamento do campus" e pelo fato de o curso de engenharia, que frequentou por um período, ser referência em ensino. Apesar de logo ter se identificado com o "clima do campus", o início da vida universitária foi difícil. Com três semanas já estava convicto de ter se decepcionado com a engenharia, na qual se sentia “um alienígena”.
– Engenharia era muito careta. Uma coisa traumática para mim foi só ter uma menina na sala. Eram só nerds e uma menina, que era nerd também. Isso me desanimou. Eu não me divertia, estudava demais e sentia falta de outras coisas – conta.
No design, a história foi outra, um início “mágico”. Gelli pôde dedicar-se a algo que o agradava muito. Estudar passou a fazer sentido. No primeiro e no segundo períodos, diz ter feito os melhores amigos. Tinha achado a sua tribo:
– A faculdade também tem esse papel de apresentar pessoas com a mesma sintonia, que gostam daquilo que você gosta. Eu tinha um monte de sonhos, e esses sonhos começaram a acontecer aqui dentro. A PUC foi uma incubadora dos meus sonhos.
O designer assegura que a família, dona da marca de móveis Gelli, não o influenciou para seguir o ofício. Por outro lado, ele admite que o gosto pelo desenho estava no sangue, como uma vocação. Tinha mania de desenhar, especialmente barcos. Um talento herdado pela filha Alice, que estuda design, também na PUC.
– Meu bisavô era um designer. Tem a patente da primeira cadeira do Brasil. A vida inteira eu vi meu avô, meus pais, tios e primos desenhando – observa ele, que viu no design uma oportunidade de aliar duas áreas que lhe interessavam: matemática e arte.
Fã dos encantos do campus, como o bosque e os pilotis, Gelli animava-se também com o que aprendia em sala. Alguns professores marcaram sua formação. Lembra com carinho das aulas de Ana Branco, na barraca do Departamento de Design. Ana é sua “guru” até hoje. Gelli fala da professora em todas as palestras que faz no Brasil e no mundo e usa a metodologia aprendida com ela, no primeiro período, no dia a dia profissional.
– A Ana foi a pessoa que me abriu a cabeça para uma outra dimensão do design. Foi lá (na PUC) que eu entrei em contato com a ideologia que deu origem à Tátil, que é essa perspectiva da biônica: buscar inspiração na natureza para projetar coisas.
A professora Ana Branco conta que Fred encantou-se de cara com uma “sala de aula entre as árvores”, como era a sua barraca (“Aquele chão de terra era inspirador para ele”). Ela diz que o ex-aluno tinha o hábito de exemplificar tudo o que via na sala, sempre com o ar bem-humorado.
– Cada dia ele vinha com uma ampliação das nossas conversas. Uma vez, ele catou sementinhas que grudam na roupa e colou na própria blusa para mostrar como a natureza divulgava a si mesma – diverte-se Ana.
Ana também destacou um trabalho de Fred Gelli realizado numa instituição para surdos. O estudante de design acoplou um papelão com bolinhas a um megafone, para mostrar às crianças a intensidade do som.
– Esse trabalho emocionou muito ele. É a mesma atitude que hoje ele tem quanto à própria empresa – recordou a ex-professora e agora colega de Gelli no Departamento de Artes.
O designer conserva na memória os muitos projetos que fez ao longo da graduação. O primeiro deles foi justamente com Ana, sobre embalagens. O conceito abordado era o de como a natureza embalava coisas – desde sementes até barrigas maternas. A assinatura de Gelli nos projetos era a paixão com a qual os executava: ele e os amigos sempre davam um jeito de transformar uma proposta nem tão instigante em algo capaz de “emocioná-los”. Em um projeto de física na arte, ele transformou um trabalho em princípio burocrático numa curiosa intervenção no campus. Propôs ao professor explorar as bolhas de sabão:
– Inventei um objeto para fazer bolhas de sabão gigantes. Fazia bolhas com dois metros de diâmetro. Virou um acontecimento.
Outro projeto lembrado foi um para a disciplina Pscicologia da Arte. Nele, surgiu por acaso o nome da sua empresa: Tátil. Ele abordou a "ditadura da visão" sobre o modo de vida e como isso supostamente depreciava o potencial dos outros sentidos, inclusive o tato. Igualmente marcante foi o experimento de audiovisual feito com os amigos. Eles projetaram slides em várias camadas de tecidos como filó. Uma coisa “doida e alternativa”, na definição de Gelli.
– Nunca mais pudemos apresentar nada no RDC depois desse trabalho – brinca Claudia Bolshaw, ex-colega do curso de design e co-autora da coisa "doida e alternativa".
Na PUC, Gelli descobriu também que a arte extravasa os aspectos técnicos. Ele destaca o cruzamento com as ciências humanas no currículo. Um dos mestres com os quais mais se identificava era Fernando Cocchiarelli, professor de História da Arte.
– Foi quem me abriu a cabeça para os significados da arte como agente de mudança. No fim das contas, todos os nossos projetos são para proporcionar experiências, evoluções para o ser humano. Isso eu aprendi na PUC, e hoje é a base da minha empresa.
Foi na PUC que a Tátil – empresa de Gelli, premiada no Festival de Artes de Cannes – começou a se desenhar. Antes da Rio-92, trabalhar com materiais sustentáveis e buscar inspiração na natureza e em seus princípios parecia conversa alternativa. Mesmo assim, o então estudante decidiu empreender a partir desse conceito.
Envolve três princípios fundamentais, referentes à projeção material da natureza: otimização (evita-se o desperdício de matéria e energia); princípio do ciclo; e interdependência (todos os elementos estariam de alguma forma ligados em uma cadeia fechada). Ao colocar em prática tais fundamentos, Gelli começou a desenhar e confeccionar – no próprio chão da casa da mãe – produtos de papelaria e escritório feitos com materiais reciclados. Sua loja? Os pilotis.
– As pastinhas, os blocos, os cadernos, eu vendia na própria PUC, para os meus amigos. Mas, em geral, as pessoas não entendiam. Lembro que tive reuniões com diretores de marketing de muitas empresas que me chamaram de maluco. Não queriam associar suas marcas a produtos feitos a partir de “lixo”.
Gelli conta que nunca estagiou, mas passava dias inteiros na universidade. Além da empresa, as atividades com os amigos estimulavam a permanência no campus. Desde as acadêmicas até a cerveja depois da aula, no antigo bar do IAG. “Os momentos mais produtivos da faculdade”, brinca. Em uma das discussões de bar, veio a ideia de um protesto original. Em plena campanha das “Diretas Já”, Gelli e amigos deixaram marcados na PUC o engajamento político de sua geração. Literalmente.
– Uma vez, para fazer um protesto contra uma mudança proposta, a gente foi para o sétimo andar do Kennedy. Lá, amarramos um barbante em uma corda e algumas bolas com tintas e jogamos longe naquele paredão. As bolas se afastaram do prédio, voltaram e fizeram umas manchas coloridas enormes no meio da parede. O ativismo político tinha uma coisa criativa.
As “cores” que a PUC adquiriu do dia para a noite saíram até nos jornais, lembra Gelli. Mas a universidade só descobriu quem eram os autores anos depois, quando aqueles "ativistas" já havia canalizado a criatividade para o mercado profissional. Grande parte deles virou professor. As “travessuras”, conta Gelli, eram comuns:
– Um dia a gente subiu no bambuzal e começou a gritar palavras de protesto.
O lugar da manifestação era proposta de Gelli. Ele adorava os bambuzais da PUC, a ponto de medir periodicamente o crescimento de cada um.
Na época pouco afeito a protocolos (chegou atrasado na própria formatura), o criador da Tátil conta que a despedida da PUC o marcou pela saudade dos amigos e do que costumavam aprontar pelo campus.
– O que eu aprendi na universidade me faz ser o que eu sou hoje. Continuo me achando muito parecido com o cara que saiu daqui há 20 anos.
No fim da entrevista, Gelli encontra, no bosque da PUC, os amigos Claudia Bolshaw e João Muare. A primeira, antiga colega de turma. O segundo, ex-estagiário. Os três, hoje, professores da PUC. Claudia conta que achou os slides do polêmico trabalho de audiovisual com filós, e promete marcar "uma sessão para todos assistirem". Fred, Claudia e João confabulam sobre falta de entusiasmo dos alunos e argumentam que, na época deles, era diferente. Por alguns instantes, tornaram a dividir o mesmo bosque, o mesmo entusiasmo. A mesma paixão do menino que, ainda hoje, encara a profissão como a uma imensa travessura.
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