Projeto Comunicar
PUC-Rio

  • Facebook
  • Twitter
  • Instagram

Rio de Janeiro, 20 de abril de 2024


Cultura

Sete furos: um para boca e seis para os dedos

Thiago Castanho - Do Portal

03/03/2008

 Thiago Castanho

CARUARU - Depois de andar o dia inteiro debaixo do sol inclemente de Caruaru, no agreste Pernambucano, já estava desistindo de encontrar João do Pife. O líder da banda “Dois Irmãos”, um dos conjuntos musicais mais antigos do Brasil, já esteve em 27 países, levando adiante uma tradição passada de pai para filho há muitas gerações. Ao entrar no táxi, frustrado, para ir para o hotel, perguntei uma última vez sobre o paradeiro do músico. “Claro que sei onde ele mora. João do Pife é meu pai”, respondeu o taxista.

A oficina onde João do Pife constrói seus instrumentos fica em uma comunidade afastada, no bairro do Salgado. João estava sentado à porta, junto da mulher. Feliz em receber visitas, mostrou logo o CD da banda. Lançado pela produtora cultural Página 21, o disco faz jus a uma trajetória de 80 anos de banda. “Ave Maria! Foi muita alegria!”, afirma João do Pife sobre o trabalho gravado e concluído no ano passado.

O CD mostra a sonoridade singular da banda, uma fiel representante das bandas de pífanos. Tais conjuntos animam, desde tempos imemoriais, novenas e festas no interior do Brasil, em especial na região Nordeste. O pai de João, Mestre Alfredo dos Santos, foi fundador do grupo e deixou para o filho a arte de tocar e confeccionar o pífano. João conta que o pai deixou também a tarefa de manter a tradição: “Antes de morrer, ele disse pra mim: ‘nossa musiquinha é boa... Não deixa acabar a banda’”.

Pífano é como são chamadas as flautinhas rústicas feitas por músicos-artesãos populares. Porém, quando se fala em pífano no Brasil, refere-se a um modelo exclusivamente nacional, de origem indígena. “O índio foi quem criou o pife”, diz João. “O som do pife foi criado na floresta e, passando de geração em geração, chegou ao meu pai”, conta o músico.

A técnica de fabricação consiste em fazer sete furos, um para boca e seis para os dedos, em um bambuzinho chamado taboca ou taquara. Essa flautinha brasileira ganhou o apelido de pife e, comprovando sua origem pré-colombiana, são tocadas em um intervalo tonal de terças, como na música caipira e em outras manifestações da América Latina. Além dos pifes, as bandas utilizam instrumentos de percussão que são, na maioria das vezes, zabumba, tarol e pratos.

A felicidade de João com o novo disco não se deve apenas à realização pessoal. Para ele, o disco mostra o valor atemporal das bandas de pífano. “Tem cantor que faz sucesso e depois não dá nada. A banda de pife é uma raiz mesmo, não cai o valor de jeito nenhum!”, diz ele.

Amaro Filho, diretor audiovisual e produtor cultural da Página 21, já conhecia João desde os anos 80, quando começou a promover shows dele. Quando surgiu a idéia da produtora fazer um disco de música popular, o nome do artista caruaruense foi lembrado de imediato. “João é um músico de primeira grandeza, um virtuose e um talento nato. João não deve nada a ninguém em termos de talento musical. É um músico tradicional e moderno ao mesmo tempo”.

Com o novo disco, a Banda Dois Irmãos voltou a fazer apresentações em lugares aonde não ia há muito tempo. João conta que fez show em Salvador e Recife, durante o carnaval e, na primeira cidade, deu uma oficina de fabricação de pífanos. “As meninas todas queriam aprender e eu falava: ‘cuidado pra não se queimar!’”, ele conta. Foi somente após uma oficina como esta que o músico conseguiu comprar sua casa, ou “quatro telhas” como ele chama. As aulas aconteceram em 2002, na Universidade da Flórida, e duraram três meses. “Foi difícil, mas desenrolei muita coisa por lá. Valeu a pena” conta João.

O pife sempre esteve presente nos 65 anos de vida de João. Ele sempre sustentou casa e família se apresentando e vendendo seus instrumentos, “todos muito bem afinadinhos”, na famosa feira de Caruaru. Ele passou aos filhos as técnicas musicais, que sempre tocaram ou acompanharam a banda.

A banda atual é composta por Marco Antônio no segundo pife e por filhos de João: Alexandre, Leandro, Cícero e Paulo. O neto Jonas, de 8 anos, também já deixa o avô orgulhoso. “Rapaz, ele já toca! Dei três pifes para ele!”, diz o avô-coruja. Amaro Filho lembra outra característica de João: “É um músico preocupado em repassar sua arte, um formador.” De fato, ele trabalhou na formação de cinco bandas de pífanos no interior de Pernambuco e confeccionou 250 pifes para oficinas para crianças e adolescentes do Rio de Janeiro, ministradas pelo renomado instrumentista Carlos Malta.

O músico carioca, aliás, também encomendou instrumentos de João do Pife para a realização de um disco seu. Amaro comenta também a falta de espaço nos meios de comunicação para João e para a arte popular. “Em um país sério, ele já seria patrimônio da cultura nacional” diz o produtor. João faz coro: “O artista precisa ser mais valorizado, aparecer mais” diz ele, cheio de razão. “Tá na mão dos poderosos”, completa. Apesar das dificuldades, a família segue firme gerando frutos, assim como as árvores cujas raízes são fortes.

Retrato fiel dos artistas populares do Brasil, João do Pife e a Banda Dois Irmãos preferem não se vender à indústria ou aos modismos e mantém viva a arte de criar sons. “É minha vida” diz João. “Corre no sangue! Eu me sinto bem furando taboca, fazendo pife!”.

Para assistir ao vídeo do João do Pife no YouTube, clique aqui

Mais informações sobre João do Pife e Banda Dois Irmãos aqui.