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Rio de Janeiro, 27 de abril de 2024


Mundo

Dormindo com o inimigo

Gabriela Roméro - Da sala de aula

18/11/2010

O presidente russo, Dmitri Medvedev, confirmou sua presença no encontro da Otan que ocorrerá nos dias 19 e 20 de novembro em Lisboa. O anúncio foi feito após uma reunião do chefe do governo russo com o presidente francês, Nicolas Sarkozy, e a chanceler alemã, Angela Merkel, em 18 de outubro na cidade de Deauville, no noroeste da França. Até então, Medvedev não havia revelado se aceitaria o convite para ir a Portugal. A iniciativa russa de participar do encontro foi recebida como uma prova da boa vontade de Moscou, que vem se empenhando para conseguir uma aproximação com o Ocidente.

Na reunião, os países da organização irão rever suas estratégias para responder a ameaças atuais, como o terrorismo. Porém, no momento, os holofotes estão voltados para o debate sobre a criação de um sistema europeu e americano de defesa antimísseis balísticos. A Rússia se colocou durante muito tempo contra o projeto por recear que o escudo tenha como objetivo bloquear seus próprios mísseis estratégicos.

Jornalista há 50 anos e editor associado do site do Conselho de Relações Exteriores, centro de pesquisas na área de relações internacionais sediado nos Estados Unidos,  Bernard Gwertzman se diz curioso em saber se o encontro em Lisboa adotará o plano de defesa antimísseis que deve ser instalado na Europa. Para o jornalista, a reunião será especialmente interessante se Medvedev se mostrar conciliatório.

– A Rússia sem dúvida não gosta de ter a aliança da Otan, adversária de longa data, na sua fronteira ocidental e se opõe a qualquer inclusão de Geórgia e Ucrânia. Se isso vai mudar é uma questão, mas obviamente nada vai acontecer agora – comenta Gwertzman em um tom cauteloso quanto aos resultados que serão obtidos na reunião.

Otan e Rússia mantêm parceria desde 2001, quando foi criado um conselho para permitir um maior diálogo entre as partes. Entretanto, as relações entre a organização e Moscou estremeceram depois da Guerra da Geórgia, em agosto de 2008, quando a Rússia tomou a região separatista da Ossétia do Sul, depois de uma ofensiva georgiana para reanexar o território. A cooperação entre Rússia e a aliança foi suspensa no dia 21 de agosto de 2008 e só foi retomada em 05 de março de 2009.

O professor Vladislav Froltsov, do Departamento de Relações Internacionais da Universidade da Bielorrúsia, identifica uma mudança de posicionamento do Ocidente em relação à Rússia nesse período. Para ele, Otan e Europa abandonaram sua busca de influência no entorno estratégico russo, formado pela Ucrânia, Bielorrússia, Moldávia e Repúblicas do Cáucaso.

 – Em 2008 e 2009, a nova administração americana e os países europeus demonstraram um claro desejo de deixar esses Estados na esfera de influência russa. A não interferência e a mínima presença de outras potências internacionais nesse espaço geopolítico criaram oportunidades de diálogo entre Rússia e Europa – defende Froltsov, que acredita que esse novo panorama permitiu a Medvedev dialogar sem ser acusado de ignorar os interesses nacionais russos.

No dia 03 de novembro, o secretário geral da Otan, Anders Fogh Rasmussen, visitou Moscou, onde conversou com autoridades russas sobre os preparativos do encontro em Lisboa. Na ocasião, enviou uma mensagem à população local dizendo que “Lisboa mandará uma mensagem clara para o povo russo. A Otan não vê a Rússia como uma inimiga. Nós a vemos como um importante parceiro estratégico”. A ressalva não foi descabida. Não é raro ver a Rússia ser apontada como inimiga da organização e uma ameaça à Europa. Vale lembrar que a Otan foi criada ao final da Segunda Guerra Mundial como forma de contrapor a influência da antiga União Soviética no Leste Europeu.

Para o professor Fabiano Mielniczuk do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, a idéia da Rússia como uma ameaça é uma criação ocidental, que não pode ser inferida pelas atitudes de Moscou. O professor lembra que a proposta russa de administrar o sistema antimísseis em conjunto não foi aceita.

– É difícil não relacionar a construção do escudo antimísseis com a vulnerabilidade européia e a dependência em relação às fontes de energias, principalmente gás natural, provenientes da Rússia. Da mesma maneira, o apoio do Ocidente ao governo nacionalista da Geórgia, que desde de o fim da URSS reforça sua identidade nacional às custas da minoria russa, está ligado diretamente à campanha de difamação da Rússia como um país autoritário e, portanto, uma ameaça aos países democráticos – argumenta Fabiano.

A necessidade de importação do gás natural russo obriga a Europa a manter relações cordiais com a Rússia, mas essa dependência deixa o continente vulnerável. Para alguns analistas, a implementação do sistema de defesa antimísseis no Leste da Europa, como está previsto, pode ser entendido como uma proteção contra o poderio bélico russo, e não contra possíveis investidas iranianas e norte-coreanas como é argumentado pelos países ocidentais.

Em troca da cooperação no campo da segurança, a Rússia pretende atrair para o país investimentos econômicos europeus e troca de tecnologia. O professor Vladislav Froltsov acredita que Moscou tem muito a ganhar com uma via de negociação aberta com a Europa.

– O diálogo atual pode assegurar o papel da Rússia como principal exportador de combustível da Europa central, assim como atrair a presença de investidores europeus para o mercado russo. Além disso, o apoio de parceiros europeus será muito útil para que a Rússia se junte à OMC – declara Froltsov, lembrando que o país ainda não faz parte da Organização Mundial do Comércio.

O encontro em Portugal é aguardado com ansiedade. A reunião tem como principal tema a revisão do conceito estratégico da Otan. Também vai ser discutido o futuro da presença de tropas da aliança no Afeganistão.