Projeto Comunicar
PUC-Rio

  • Facebook
  • Twitter
  • Instagram

Rio de Janeiro, 24 de abril de 2024


Cultura

"É como se a vida do outro justificasse sua própria vida"

Fernanda Miranda - Do Portal

10/11/2010

 Isabela Sued

O episódio recente do resgate dos mineiros chilenos gerou grande repercussão e foi acompanhado por mais de 115 emissoras de TV do mundo todo. A história que comoveu o público será contada em dois livros. Um dos livros, que ficará sob responsabilidade do mineiro Víctor Segovia Rojas, contará detalhadamente o que passaram os trabalhadores durante os dois meses que ficaram embaixo da terra. Já o outro reunirá desenhos feitos por filhos, sobrinhos, netos dos que ficaram soterrados e outras crianças que acompanharam o episódio. Além disso, está programada também a produção de um filme, que já possui título e cartaz provisório. A película receberá o nome de Los 33 e será dirigido pelo diretor chileno Rodrigo Ortúzar.

Do mesmo modo, a colombiana Íngrid Betancourt também se enquadra nesse processo de proveito da fama repentina para lançar seus próprios produtos. Ela, que foi raptada pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as Farc, em 23 de fevereiro de 2002, enquanto fazia campanha para as eleições presidenciais, permaneceu cativa até o dia 2 de julho de 2008 quando o então ministro da Defesa colombiano Juan Manuel Santos anunciou a sua libertação juntamente com outros 14 reféns. Íngrid, que ficou conhecida após o episódio, lançou dois livros: Coração enfurecido e Não há silêncio que não termine: meus anos de cativeiro na selva colombiana (que se tornou um dos livros mais vendidos no Brasil pela Companhia das Letras), e durante o tempo que esteve raptada seus filhos também lançaram um livro (Cartas à mãe: direto do inferno) sobre seu sequestro.

A celebrização de anônimos ocorre em larga escala nos dias de hoje e tem gerado grande repercussão na população. Nos veículos de comunicação, além de se tornarem noticiários, capas de jornais e revistas, essas histórias acabam tomando lugar de notícias importantes.

Geisy Arruda, a estudante que ficou conhecida nacionalmente por ter sido discriminada na universidade que estudava em Brasília, por usar um vestido muito curto, é também um exemplo desse processo de celebrização. A ex-estudante, hoje micro-empresária, lançou uma linha de cosméticos e uma linha vestidos igual ao que a tornou conhecida. Geisy também participou neste último mês do reality show "A fazenda", programa que é composto somente por celebridades. Além disso, posou nua na edição de novembro de uma grande revista masculina brasileira.

Sobre o assunto, o Portal PUC-Rio Digital foi conversar com o professor do Departamento de Comunicação Social da universidade Sérgio Mota. Segundo ele, o processo de celebrização é alimentado pela falta de interesse na própria vida.

 Isabela Sued Portal: Para o senhor, por que o surgimento dessas celebridades repentinas tem sido tão forte?

Sergio Mota: Sou meio radical quanto a essa questão. Tem um ponto interessante que a vida das pessoas que leem sobre isso, ou se interessam, parece ser uma vida sem muita emoção, onde você precisa se alimentar de vidas paralelas para que a sua vida possa fazer algum sentido. O Andy Warhol falava dos “15 minutos de fama”, o que a gente vive hoje é completamente diverso disso. Há um consumo dessas histórias muito proeminente que é a necessidade de tudo virar notícia. Qualquer coisa, mais importante ou menos importante, vira notícia, e daí se tem suas consequências, seus produtos. Escrevem-se livros, filmes, roteiros e criam-se produtos. É como se a ficção tivesse a obrigação de preencher as lacunas que a história real e desinteressante de algumas pessoas não fornece. No caso do resgate dos mineiros, por exemplo, será feito um filme e serão lançados livros. Você vê que as pessoas estão interessadas, que foi um acontecimento que mobilizou o mundo inteiro. Às vezes, um movimento político não movimenta tanto quanto um televisivo, ou uma socialite, a mobilização é muito desproporcional. A própria televisão, os jornais populares, se alimentam muito dessa fauna. Como você tem diferentes classes na população, você tem diferentes classes de histórias. Existem as celebridades, as subcelebridades, as subsubcelebridades, e com isso você gera programas como “A fazenda” que reúne celebridades mornas ou que perderam um pouco o foco. No caso oposto de “A fazenda”, um programa com subcelebridades, o “Big Brother” tem o efeito contrário, o anônimo vira celebridade. Isso vai esticando a questão, todos querem ser ator, todos querem ser artista, eu acho que isso é sim um fim dos tempos. Há uma pobreza intelectual, uma pobreza dos tempos, é uma coisa que me incomoda e muito.

P: E por que a sociedade demonstra essa necessidade?

SM: Acredito que por conta de um pouco de desinteresse da própria vida pessoal, que faz a pessoa procurar em outras vidas alguma coisa que a sua própria vida não tem. Existe uma teoria sobre isso, da existência de uma necessidade do ser humano de “olhar no buraco da fechadura”, ou de julgar as pessoas, ou de achar que falar mal do outro vai de alguma maneira justificar o seu lado não tão bom. Existe uma indústria de entretenimento que se alimenta disso, as próprias redes sociais têm um pouco dessa característica. É uma exposição muito grande, como se todo mundo tivesse uma necessidade de aparecer. Você tem ferramentas para se proteger, para obter uma certa privacidade, mas muitos não as usam. Acho que as redes sociais são ferramentas hoje indispensáveis, são complementares, mas não podem substituir uma relação presencial.

 Isabela Sued P: Esse processo vem aumentando ao longo do tempo, o senhor acha que a tendência é continuar crescendo?

SM: Acho que a tendência é aumentar. Quando digo que não demonizo é porque acho que esse episódio dos mineiros, por exemplo, é um episódio interessante para se pensar teoricamente. Inclusive porque uma história como essa mobilizou muita gente, mobilizou o mundo inteiro e fez com que histórias individuais virassem histórias pessoais. Por exemplo, no caso da amante e da mulher que foram resgatar um dos mineiros. O problema na verdade são as ramificações dessa importância dada. O Código da Vinci, que foi um livro que fez um grande sucesso, por exemplo, se ele é ou não é literatura é uma bobagem, acho que essas fronteiras estão um pouco borradas, mas o que me incomoda são os subprodutos que advêm disso. Lançam o livro Descubra o código da Vinci, ou livros que são próximos do tema e que usam a mesma capa, a mesma estética. É como se fosse uma simbiose negativa, é como se você “chupasse o sangue até a última gota”, o desagradável é o filão, a repetição, a redundância. O grande problema é que as pessoas não percebem que tudo isso possui uma vida útil e querem continuar se aproveitando das mesmas histórias.

P: Todos esses “famosos por acaso” acabam lançando livros, produtos. O senhor acha que isso banaliza o mercado?

SM: Se eles lançam livros ou lançam produtos das histórias deles é por que existe um público ávido para consumir. Que banaliza não há dúvida, mas existe gente que se interessa por essa literatura. Eu, por exemplo, não vou ler, eu não vou me interessar por isso. Agora me perguntam: Ah, mas você não lê nem a revista Caras? Leio a revista Caras quando vou a algum consultório médico. Eu não compro a revista, mas se está lá eu leio. Todo mundo tem um pouco desse desejo de saber da vida dos outros, só que isso deve ter limites. Não me interessa se o ator tal traiu a atriz tal. Eu vou ler, mas não vou julgar. As pessoas querem julgar, elas às vezes vivem uma situação muito parecida e querem julgar, porque julgar o outro é talvez uma forma de você se recompensar de algum delito. Você vê os reality shows, por exemplo, eles viram julgamentos. Todo mundo julga todo mundo. As pessoas têm que criar os heróis, os vilões, os bonitões, porque é o que as pessoas querem na verdade.

P: O senhor acha que esse enfoque nas celebridades acaba desvalorizando os meios de comunicação? Acaba dando importância para alguma coisa que não é tão relevante assim?

 Isabela Sued SM: Eu não acho que desvaloriza, acho que há meios de comunicação e meios de comunicação. Quero dizer, você sabe quais são os meios de comunicação que não vão dar essa notícia, que não vão explorar esse filão, e você também sabe quem vai consumir isso. Portanto, não banaliza e nem depõe contra o trabalho dos meios de comunicação, só acho que há imprensas diferentes.

P: Na sua opinião, qual é o principal aspecto que leva a população a acompanhar a vida dessas pessoas?

SM: Como falei anteriormente, eu afirmo que é a falta de interesse nas suas próprias vidas. É como se a vida do outro justificasse a sua própria vida, te ajudasse de alguma maneira. Não demonizo isso, só enxergo um excesso, um exagero, e acho que isso pode ser produto de estudo. Isso faz você ver cenas dantescas e deprimentes de subcelebridades que estão tentando se agarrar ao último vestígio de fama. Há pessoas que não sabem lidar com isso, se deprimem, perderam o olhar da mídia e se suicidaram. É realmente uma coisa difícil e complexa, porque quem consome e quem vive essas realidades perde um pouco o limite.