Assassinatos, sequestros, mortes, medos, abusos de poder. O cenário do campo no sul do Pará, principalmente durante o período de ditadura militar, era de repulsa. Entretanto, em 1977, o recém-formado antropólogo Ricardo Rezende saiu de Juiz de Fora e foi morar no Araguaia – região central dos conflitos de terra onde se estabeleceu a Guerrilha do Araguaia, cujo confronto com os militares entre 1972 e 1974 deixou 76 mortos. A partir de 1977, Ricardo Rezende, que se ordenou padre em 1980, passou a trabalhar como agente pastoral da Igreja Católica, assessorando juridicamente e espiritualmente os trabalhadores pobres da região.
Durante o governo militar, o presidente Emílio Médici estimulou a migração dos nordestinos para as terras da Amazônia com o slogan: “Terras sem homens para homens sem terra”. Entretanto, o plano de resolver a miséria dos nordestinos acabou em conflitos sociais. As “terras sem homens” não eram completamente desocupadas: existia um grupo de latifundiários, uma classe média local que também tinha posse de propriedades rurais e tradicionais populações ribeirinhas e indígenas.
Durante os 20 anos que viveu no Araguaia, o padre Ricardo Rezende passou por muitas situações trágicas de perdas e mortes. Estas são algumas dessas histórias:
Irmã Dorothy
"No dia da sua morte, ela estava acompanha de um camponês que fugiu quando viu o matador e deixou Dorothy sozinha com ele. Entretanto, ele ficou de longe olhando e contou que, na hora da morte, Dorothy, na solidão da mata, discutiu com o pistoleiro. Ela iria morrer porque reivindicava a terra para os pobres e o pistoleiro era um pobre, a serviço dos grandes, que iria matá-la. O pistoleiro perguntou se ela tinha alguma arma. Ela disse que sim e mostrou a Bíblia. Depois, leu um versículo e foi assassinada. Essa história mostra como as palavras e as ideias são perigosas. A força das palavras. Ela foi assassinada por causa das ideias. Pelo poder da palavra que pode abrir os olhos, mudar realidades, transformar vidas".
– A necessidade tira a pessoa de um lugar e leva para outro. Essa gente que chegou à Amazônia foi tangida pela necessidade e empurrada pela propaganda do governo, mas não conseguiu melhorar de vida. O que encontrou foi, na verdade, um conflito entre aqueles cuja terra tinha uma função de negócios com os que a queriam para o trabalho – afirmou Rezende.
O padre antropólogo explica que o desamparo dessa população começa no momento em que as pessoas saem da proteção das suas relações sociais e vão para outro lugar.
– Migrar significa se deslocar mais do que geograficamente. Significa também deslocar os tecidos das relações sociais, de amizade, de companheirismo e de proteção. Essa gente que imigra sofre muito. E sofre na luta pela vida.
Para amenizar o sofrimento dessas pessoas, o padre Ricardo se engajou na organização da equipe de Comissão da Pastoral da Terra que tinha basicamente três atuações: levava para comunidade informações sobre os direitos dos trabalhadores e de técnicas de produção agrícola; assessorava juridicamente os camponeses que fossem presos por arbitrariedades do governo militar; e, para os católicos, prestava amparo espiritual.
– Ninguém tinha que ter um atestado ideológico ou religioso para ser atendido. Qualquer pessoa que precisasse seria atendida e respeitada na sua fé – lembrou Rezende.
O padre Ricardo Rezende afirma que a Igreja Católica passou a ser vista como uma inimiga, pois ficou do lado dos trabalhadores e contra os grandes latifundiários que tinham o poder na região. Por isso, padres e agentes pastorais engajados eram considerados comunistas e terroristas.
– O agente pastoral, na época, era visto como alguém que portasse uma doença contagiosa. Éramos evitados. Ser agente pastoral não dava nenhum status e, na verdade, desqualificava. Ser amigo do pobre desqualificava a pessoa. O pobre era um proibido. Era proibido de ter vida, dinheiro, comida, casa e a possibilidade de uma vida digna – contou Rezende.
Padre Ricardo ficou 20 anos na região do Araguaia. Lá se tornou padre, participou de um documentário francês sobre o conflito de terras no Brasil, passou 18 anos sendo ameaçado de morte e viu inúmeros companheiros de luta sendo assassinados, tendo como caso mais famoso a morte, em 2005, da freira norte-americana Dorothy Stang.
O Gringo
"Dois meses antes da minha ordenação, um grande amigo meu foi morto. Era Raimundo Ferreira Lima, conhecido como Gringo, um trabalhador rural que morava em Itaipavas, outra cidade próxima, e era um agente pastoral, camponês e candidato a presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Conceição do Araguaia. O sindicato estava sob intervenção do governo que tinha destituído o presidente e nomeado um interventor. O Gringo era muito combativo. Acabou sequestrado e assassinado. Nós estávamos muito comovidos com aquela morte porque apoiávamos aquela luta da retomada do sindicato. Naquele clima, a irmã Dorothy, na missa da minha ordenação, pegou uma foto do Gringo e a colocou no altar – junto da cruz, do sacrário e da imagem da santa padroeira. Ele foi um mártir da fé e do compromisso social. Posteriormente, ela foi também. Ela deu a vida pelo amor, pelo compromisso e pela palavra de Deus".
– A irmã Dorothy, como muitos outros, foi assassinada por causa das ideias: o poder da palavra que pode abrir olhos, mudar realidades e transformar vidas – afirmou.
Quando foi ordenado padre, em maio de 1980, Ricardo Rezende convidou a freira Dorothy, que morava na cidade de Marabá, a 300 km de Conceição do Araguaia, para a cerimônia. Na ocasião, a morte de um companheiro de luta, o Gringo, ainda era latente nas pessoas, e a irmã aproveitou a ocasião para colocar uma foto do camponês no altar ao lado dos objetos sagrados da igreja.
– O Gringo era um camponês que lutava pelos direitos dos trabalhadores. Ele queria ser o presidente do sindicato que estava sob intervenção do governo militar. O Gringo, na verdade, foi um mártir da fé e da causa social e a Irmã Dorothy, que o homenageou nessa ocasião, acabou com o mesmo destino.
A realidade é que por pouco o próprio padre Ricardo também não trilhou o caminho de tornar-se um mártir. Tentativas de sequestros e disparos contra sua casa foram constantes. Sofreu ameaças por 18 dos 20 anos que lutou na região. Mesmo com abertura política, a situação não melhorou. O grupo de latifundiário que contava com a segurança da polícia militar passou a montar seu próprio grupo de seguranças armados. Em 1984, no Mato Grosso, por exemplo, mais de 1.800 soldados largaram a farda e entraram para essas empresas privadas.
– O final da ditadura militar não significou uma solução, mas representou uma transição. Por exemplo, o sindicato foi recuperado com o fim do regime. Entretanto, a questão não está resolvida e o assassinato da irmã Dorothy é um sinal – lembrou o padre.
– Se eu saísse sob ameaça pareceria que eu estava com medo e, assim, poderiam pensar que com ameaças conseguiriam tirar as pessoas de lá e quem ficaria sofreria mais com intimidações – afirmou.
A partir de 1991, os atentados se intensificaram e o padre Ricardo foi acompanhado por dois seguranças até se mudar do Pará, em 1996. As ameaças, na verdade, eram mais que intimidações. Elas impediam que o padre se mudasse do local.
A mãe de Chico
"Chico, ainda jovem, mesmo sem o consentimento dos pais, resolveu sair de Teresina para conseguir uma vida melhor. Os anos se passaram e nunca havia dado notícia. A mãe resolveu procurá-lo e me pediu ajuda no Araguaia, mas não o achamos. Em 2005, quando eu fazia a pesquisa para o meu livro, fui até Teresina e, por acaso, reencontrei com aquela mãe. Na ocasião perguntei pelo filho dela. Ela ainda não tinha o encontrado, mas disse que tinha certeza de que o rapaz estava vivo. Disse que sonhara naquela noite com o rapaz e o nosso encontro depois de tantos anos havia sido um sinal. Meses depois a reencontrei e ela já tinha encontrado o filho. Chico não voltou para casa antes porque sentiu vergonha de não ter conseguido atingir o objetivo de uma vida melhor. Mãe e filho conversaram pelo telefone e ele foi perdoado. Entretanto, foi assassinado quando tentou sair do Araguaia".
Em 1996, Ricardo Rezende passou um ano sem sofrer nenhum atentado explicito de violência e finalmente conseguiu se desvencilhar do local. “Quando a gente faz a mesma coisa durante muito tempo, tende a ser repetitivo”, afirma. Pensando assim, voltou a estudar, fez mestrado, doutorado e escreveu dois livros: Pisando fora da própria sombra: a escravidão por dívida contemporânea no Brasil” e A justiça do lobo: posseiros e padres do Araguaia. Hoje, o padre antropólogo se tornou professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e ministra palestras sobre a sua experiência de fé em locais de conflitos – como a realizada no Centro Loyola de Fé e Cultura, na PUC-Rio, em setembro deste ano. Segundo o padre, ele continua atuando pelos trabalhadores rurais, entretanto, de outro lugar.
– Hoje escrevo, faço documentários, publico. A minha juventude, eu dei para aquela gente. Agora, eu dou a minha maturidade, colocando-a a serviço a partir de outro lugar social, na esperança de formar gerações que também vão se comprometer com o futuro – concluiu o padre Ricardo Rezende.
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