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Rio de Janeiro, 27 de abril de 2024


Mundo

“Capitalismo exige mão de obra que circule globalmente”

Fernanda Miranda e Thaís Chaves - Do Portal

18/10/2010

 Arte: Stéphanie Saramago

Para discutir o imigrante e o refugiado como sujeitos cidadãos e para refletir sobre uma forma de cidadania não vinculada à noção de nacionalidade, o Departamento de Relações Internacionais da PUC-Rio promove nos dias 19 e 20 de outubro o seminário Cidadania e mobilidade humana: migrações, refúgio e globalização.

As mesas redondas, que serão realizadas no Salão da Pastoral, no campus da universidade, contarão com a presença de professores dos Estados Unidos, França, Canadá, Reino Unido e Brasil. Será exibido também o filme Olhos Azuis, que aborda o tema da imigração, e realizada uma conversa com o diretor José Joffily.

O Portal PUC-Rio Digital conversou com a organizadora do evento, Carolina Moulin, sobre a estreita relação entre movimentos migratórios e globalização, tanto nos aspectos positivos, quanto nos negativos: o seminário procura aprofundar a discussão dos diferentes movimentos da contemporaneidade, do histórico crescente da presença do estrangeiro no Brasil e também da questão da fronteira na Amazônia. 

Portal PUC-Rio Digital: Quais as principais consequências políticas da relação entre migração e globalização no contexto internacional atual?

Carolina Moulin: Uma delas é o fato de quase todas as sociedades contemporâneas terem de lidar, de alguma forma, com a presença do estrangeiro, do outro. Quando pensamos nos fenômenos da globalização, pensamos necessariamente em maior mobilidade, não só das pessoas, mas do capital, das informações e dos bens. A ampliação do fenômeno migratório é um desafio, mas é também uma condição estrutural do mundo internacional contemporâneo. Alguns pensadores afirmam que a migração sempre existiu, mas hoje ela ganha força. O sistema capitalista depende de uma mão de obra que circule globalmente. Porém, os indivíduos têm reações variadas à presença do imigrante, às vezes muito violentas como, por exemplo, na defesa do controle de fronteiras ou em atos que procurem limitar a participação de grupos estrangeiros. Considero umbilical a relação entre migração e globalização, tanto nos aspectos positivos, quanto nos negativos.

Portal: Mas como isso se dá na prática?

 Stéphanie Saramago CM: Intitulamos esse seminário de Cidadania e mobilidade humana porque os termos podem ser considerados como um “guarda-chuva” para diferentes experiências de movimento na contemporaneidade. As migrações são definidas como movimentos de pessoas voluntárias. O refúgio, entretanto, é considerado um deslocamento forçado de população, e uma das consequências desse deslocamento são as situações de conflito, normalmente armado. A ideia de mobilidade abarca esse grande universo, do movimento de pessoas no mundo contemporâneo. A ideia é focalizar essas duas dimensões centrais da mobilidade humana: os fenômenos da migração funcional e da presença cada vez mais frequente do refugiado como um elemento importante da política internacional, além de articular esses dois fenômenos ao debate mais amplo sobre as transformações da política internacional contemporânea, a partir dessa referência-chave: a globalização.

Portal: Quais as principais características das dinâmicas, dos fluxos e das experiências de migração no Brasil, tema de uma das palestras?

CM: O Brasil tem algumas características peculiares, pelo fato da pequena presença de refugiados. Atualmente, existem pouco mais de cinco mil pessoas, número reduzido em face da população geral. O processo de entrada de imigrantes no Brasil é crescente, sobretudo dos imigrantes vindos de países periféricos, como principalmente dos latinoamericanos e de africanos. Há atualmente um crescimento do número de imigrantes europeus e norte-americanos, que vêm em função da internacionalização do mercado de trabalho brasileiro. Estamos em um processo histórico da migração internacional. O assunto começa a entrar na agenda política, não só do governo federal, mas também dos governos estaduais e locais. A presença do estrangeiro passa a ser uma realidade para a população brasileira, haja vista que o país foi considerado, a partir da década de 1980, eminentemente de emigração. Os brasileiros saíam para os outros países, mas agora estamos retomando um processo histórico de país de imigração. Por isso, precisamos discutir, por exemplo, os projetos de lei com o objetivo de reformar a lei de estrangeiros no Brasil, da época da ditadura militar. Há uma proposta de lei para ser aprovada no Congresso Nacional, há também uma discussão sobre dar flexibilidade na admissão desses imigrantes no território brasileiro e há um debate sobre a inclusão, não só no mercado de trabalho, como também no âmbito da dinâmica social, do convívio com os brasileiros.

P: Em relação à Amazônia, como a senhora avalia a mobilidade e proteção das suas fronteiras?

CM: Uma questão é a proteção das fronteiras, aí temos que pensar no controle de proteção da entrada ou no controle de proteção das pessoas que chegam a essas fronteiras em busca de acolhimento. Ou também somente uma recepção, como é o caso dos colombianos que estão na área de fronteira amazônica e estão em busca de proteção, com isso obviamente a proteção não é da fronteira, mas daquele que se encontra nela. É um dilema, sobretudo porque grande parte da fronteira amazônica é pouquíssimo habitada e de dificílimo acesso. É um desafio muito grande para as autoridades nacionais serem capazes de efetivamente institucionalizar essa forma de controle. O que acontece hoje é que esse controle é feito nos grandes centros urbanos, principalmente no que toca a questão migratória. Esses migrantes geralmente vão para esses centros urbanos, como Manaus e Belém, que são os pontos modais de circulação. O controle migratório acaba acontecendo, portanto, nessas fronteiras urbanas. Então dizemos que o fenômeno da migração traz também a mobilidade da fronteira, a fronteira caminha em conjunto e obviamente os mecanismos de controle também.

P: Em geral, como a senhora analisa a proteção de refugiados no Brasil e na América do Sul?. Stéphanie Saramago

CM: Tem melhorado. Particularmente, no caso brasileiro há um fortalecimento da proteção jurídica, que tem o intuito de expandir essa leitura para o continente sul-americano. Há também um processo de melhoria nos últimos anos da legislação relacionada à proteção política do refugiado. Existe uma superação no que tange à proteção e mobilidade desses refugiados, sobretudo a partir da celebração dos 20 anos da Declaração de Cartagena [acordo entre países da América Central que considera a violência generalizada, invasão estrangeira e conflitos internos como razões que justificam o pedido e a concessão de refúgio] e uma série de compromissos do continente latino americano em prol do refugiado. Mas ainda há uma série de problemas originadas nessa lacuna entre a legislação e a implementação desses direitos, e da conscientização da sociedade latino americana para integração do migrante. Por isso que falamos no seminário sobre cidadania, que a questão que está na pauta da discussão política hoje é justamente como tratar a figura do imigrante refugiado como sujeito cidadão. Como pensar em uma cidadania que não está vinculada à noção de nacionalidade é o grande desafio que se coloca. Essa distância entre a cidadania e a proteção jurídica se apresenta hoje como grande dilema do regime regional de proteção aos refugiados na América latina.

Portal: E quais são as diferenças entre os processos migratórios na América do Sul e na Europa?

CM: O Mercosul é uma das peculiaridades da migração sul-americana. O processo de integração no Cone Sul tem sido recentemente acompanhado pela flexibilização da regulação migratória nesses países-membros. Então, no Cone Sul já existem acordos de livre residência, de livre trânsito, uma diminuição das restrições documentais da entrada e circulação de pessoas. A tendência dessa flexibilização é a ampliação e a incorporação dos outros países da região. No contexto sul-americano, as principais peculiaridades são essas tendências à flexibilização, à ausência ou incapacidade de grande parte do Estado na região de avançar a uma política de controle de fronteiras, pelas deficiências e dificuldades de infra-estrutura e o fato da migração ser também inter-regional. Todos os países do Mercosul têm imigrantes dos seus vizinhos. No Brasil, por exemplo, existe uma população boliviana em algumas regiões do país muito alta, em outras, populações peruana e colombiana igualmente elevadas, e o mesmo acontece com a Argentina. Há uma circulação inter-regional muito forte, diferente do contexto europeu, em que há atualmente um debate sobre a livre circulação dos cidadãos, da diminuição das barreiras para a circulação da população dos países da União Europeia (UE), versus um aumento do policiamento para os não-europeus. Existe, então, uma externalização do controle de fronteira da União Europeia e um aumento das barreiras e restrições impostas para a entrada de cidadãos de fora do continente dentro da União Europeia. Os dois movimentos são um pouco diferentes, em função de contextos e demandas também diversos

P: E quais as principais transformações ocorridas a partir da implantação da UE do ponto de vista das migrações?  Stéphanie Saramago

CM: O projeto da UE é assentado obviamente na liberdade de movimento, esses são os pilares do projeto europeu. O contexto da UE é de liberalização da mobilidade para o cidadão de um Estado-membro, mas ao mesmo tempo se tem a política de securitização. É uma política de conversão da figura do imigrante e do estrangeiro como sendo um elemento de ameaça. O que a gente tem visto nos últimos anos no contexto da UE é um conjunto de várias políticas que visam, justamente, à restrição da entrada do imigrante naquele continente. Estamos vendo o tratamento dado ao imigrante, por exemplo, na França, de uma certa demonização da população migrante. Há uma série de políticas de contenção e controle, principalmente a partir da diretiva de retorno que garante uma harmonização dos mecanismos de deportação e joga um pouco da responsabilidade dos controle migratórios não somente para os países fronteiriços da UE, mas também para os países-membros. Nesse ponto se tem uma série de acordos, como por exemplo o acordo entre Itália e Líbia, onde a Líbia seria obrigada a receber os migrantes que saem em direção à Europa. Há uma série de políticas de harmonização do controle dessas novas estratégias de hipercontrole para fora da UE e ao mesmo tempo um protesto de ampliação da liberdade de movimento dentro. Para nós, nas relações internacionais, isso entra em um debate sobre a produção do vínculo entre segurança e migração, na discussão do contexto social de que o imigrante é uma ameaça. Isso é o que nós precisamos questionar. Afinal, um quinto da população mundial é migrante.

P: De que maneira a globalização interfere nesse contexto de migração?

CM: Interfere em diversas dimensões. O processo de globalização de fato diminuiu, por exemplo, o custo da mobilidade. Hoje é muito mais barato viajar, é muito mais fácil ter acesso às informações que permitem que o indivíduo circule através das fronteiras. A globalização tornou viável a presença da mobilidade para grande parte da população mundial. Ao mesmo tempo, também gerou, como uma de suas conseqüências, o aumento da desigualdade em algumas regiões. Esse aumento da desigualdade encadeia também uma relação de mobilidade, onde as pessoas procuram na mobilidade uma válvula de escape para as suas condições precárias de vida. Eu diria que a globalização facilita, mas ela também às vezes torna esses fenômenos mais difíceis em função de toda uma estrutura, uma construção de um mercado capitalista globalizado que é também explorador dessa mão de obra migrante, sobretudo a mão de obra migrante irregular. A globalização então facilita o movimento, mas ao mesmo tempo restringe a possibilidade, as potencialidades individuais que esse movimento poderia trazer para essas pessoas e a incorporação do migrante nesse processo.