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Rio de Janeiro, 16 de abril de 2024


Cultura

Aos 80, Gullar rejuvenesce na releitura de 'Poema sujo'

Evandro Lima Rodrigues - Do Portal

30/09/2010

Divulgação

A circunstância era o exílio; o sentimento, apreensão; o desejo, uma ânsia de vômito. A combinação que preenchia a mente do poeta transformou-se na matéria-prima do seu ofício e de um poema em particular, um “poema sujo”. A obra, escrita durante a ditadura mlitar, foi inicialmente lida pelo autor na casa do dramaturgo Augusto Boal em Buenos Aires. O ano era 1975. Vinícius de Moraes estava lá e pediu uma cópia. Não queria uma transcrição em papel. Queria impresso na voz e na sensibilidade de seu criador, Ferreira Gullar. A passagem ganhou a história, o mundo e agora um DVD coordenado pelo cineasta e professor da PUC-Rio João Moreira Salles, lançado na terça-feira, em comemoração aos 80 anos do poeta.

Gravado em fita cassete, o poema mais celebrado de Ferreira Gullar foi trazido ao Brasil naquele mesmo ano. A ideia de regravá-lo partiu do também poeta e ex-diretor do Instituto Moreira Salles Antonio Fernando de Franceschi em 2005, quando os versos completaram 30 anos. Desta vontade, depurou-se a reprodução do poema na forma original, sem cortes e edição. O projeto consolidou-se na filmagem sob a batuta de João. 

O lançamento do DVD, terça à noite, reuniu no IMS críticos literários, jornalistas, intelectuais e o próprio Gullar. Convidado para falar sobre a concepção do histórico poema, ele dividiu com os professores Antonio Carlos Secchin,  da UFRJ, e Alcides Villaça, da USP, a apresentação das implicações contidas na obra.

 IMS/Divulgação 

Diante da responsabilidade, Villaça brincou: “É melhor falar do poeta longe dele”. Se as circunstâncias desconcertaram o crítico, favoreceram o público – que pode ouvir do próprio poeta os caminhos que conduziram ao Poema sujo:

– Estava numa situação sem perspectivas devido ao desaparecimento de muita gente contrária ao regime [militar]. O fato de escrever ajudou a sair desse impasse. Transformar a apreensão e a angústia no texto que me comovia. A ideia era vomitar literalmente tudo, e disso tirar o poema. Sentei-me diante da máquina e não tinha nada para vomitar. Fiquei decepcionado. Comecei a escrever palavras, o passado.

Poema Sujo é o título da poesia e também do livro em que foi publicada, do escritor brasileiro Ferreira Gullar. A obra foi escrita em 1975 durante o regime militar no exílio do poeta em Buenos Aires. A publicação do livro aconteceu um ano depois no Brasil ainda durante o exílio do autor.

Trecho inicial do poema:

turvo turvo
a turva
mão do sopro
contra o muro
escuro
menos menos
menos que escuro
menos que mole e [duro menos que [fosso e
muro: menos que furo
escuro
mais que escuro:
claro
como água? Como [pluma? Claro mais [que claro
claro: coisa alguma
e tudo
(ou quase)...

Para Secchin, o aprofundamento no passado conseguido por Gullar em Poema sujo torna-o um "texto-referência" para entender toda a obra, anterior e posterior ao poema. Segundo o crítico, é a história do poeta que “grita querendo voltar à vida”. Na aceitação desse chamado, concretizado no texto, Gullar rejuvenesce.

Villaça ressaltou o caráter político da obra. Para o professor, Gullar conseguiu transpor no texto uma mensagem em defesa de todos que se sentiam atingidos pela repressão da época.

O poeta tratou de esclarecer: estabelecer proposições para sua intenção é impossível. Sua obra nasce do improviso, diz ele. Assim indica, por exemplo, o início do poema: “Turvo, turvo”. Segundo Gullar, essas palavras compõem a fase em que se defrontou com o “corpo a corpo da linguagem”. Nesse embate, a vitória é do leitor.

– O poema é um corpo que não é seu. Você cria e ele sobrevive porque há um leitor. O sentido de tudo é o outro que se apropria do texto e vai reacender você através daquelas palavras. Nem que seja só um fragmento – observou.

Sem roteiro, em meio à construção de fragmentos, eis que o título surge ao poeta na quinta página. “Neste ponto, eu já sabia também que o poema teria de 70 a 100 [páginas]”. Ainda assim, Gullar é enfático quanto ao método de elaboração:

– A preocupação com a construção do poema é verdadeira, mas a execução foge a um roteiro. Se já soubesse o que iria fazer, não teria porque continuar. Fazer o que já sei?

Transformado em livro, Poema sujo tornou-se um clássico da literatura brasileira. Com a reprodução proibida durante a ditadura, a apreciação ficou restrita a pequenos círculos. Hoje tornou-se objeto de dissertações e análises de críticos, e ganhou interpretações variadas.

As novas leituras, Gullar recebe de maneira positiva. Segundo ele, os críticos, às vezes, acrescentam elementos que até então não pensara. Um deles, lembrado por Secchin na conversa, seria o efeito “sinfônico”:

– Não faço os meus poemas planejando estruturas. Mas, se depois de feito alguém percebe alguma característica como essa sinfonia, eu percebo que realmente ele tem isso – reconheceu Gullar.

Como nos autores muito visitados, o autor identifica equívocos em análises do seu universo ficcional. Para o poeta, os críticos também inventam e criam o que ele não imaginou. “Fica o dito pelo não dito”, ressalva.

 IMS/Divulgação

Para Secchin, novas leituras, mesmo equivocadas, representam o consentimento ao leitor para construir sua interpretação do texto. Nisto, ressaltou o crítico, consiste a aproximação entre “criador, obra e público”. Assim o poema é também a percepção do leitor, que o enriquece com o “novo olhar”.

Na percepção de Gullar, Poema sujo foi resultado do medo. Nesse contexto não cabiam palavras limpas.

– Ele é sujo porque lembrava a miséria brasileira, em especial do Maranhão, meu estado natal.

Para Gullar, o poema conjuga a função da literatura: uma matéria para transformar, não necessariamente polemizar:

– Ou a literatura serve para modificar nossa percepção em relação à vida ou não serve para nada.

Eternizado agora também em DVD, Poema sujo com interpretação de Gullar reproduz, segundo João Moreira Salles, o que foi feito em tempo real:

– É um negativo da filmagem, sem cortes.