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Rio de Janeiro, 19 de abril de 2024


Cultura

Crônica de Lima Barreto expõe um Brasil preso no tempo

Carina Bacelar - Do Portal

14/09/2010

Mauro Pimentel/Arte


Lima Barreto e a política: os contos argelinos e outros textos recuperados, org. Mauro Rosso

O Al-Patak do início do século XX é um reino dominado por sheiks. Lá a política gira em torno de interesses pessoais e tâmaras cultivadas pelos aristocratas, cujo padrão é mantido por impostos até sobre a circulação de mendigos. Qualquer semelhança com o Brasil – seja o de hoje ou o de 100 anos atrás  – não é mera coincidência. A alegoria faz parte do estilo ferino do escritor e jornalista Lima Barreto de criticar a política, a cultura elitizada e a sociedade dissimulada do Brasil em seus primeiros anos como país republicano. Os “Contos Argelinos” e mais 33 de temática política são reunidos e comentados pelo pesquisador de literatura e ensaísta Mauro Rosso em “Lima Barreto e a política: os Contos Argelinos e outros textos recuperados” (Editora PUC-Rio). Em entrevista ao Portal PUC-Rio Digital, o autor explicou o processo de pesquisa e produção do livro, desconstruiu “mitos” sobre Lima Barreto e destacou o “gancho” representado pelas eleições de 2010 para uma obra que respira política e questões nacionais.

Predileção alternativa

“Se Machado de Assis foi o grande contista Brasileiro e utilizou simulacros em sua obra, nenhum escritor foi tão ousado como Barreto noss contos, principalmente nos 'argelinos'”, destaca Mauro Rosso. A audácia, entretanto, não foi reconhecida à época, por conta da postura marginal assumida pelo escritor. Ele criticava a grande imprensa e os cânones literários, e nunca escondeu a predileção pela imprensa alternativa.

Quem era "aquele homem" que militava e escrevia artigos?

A preferência alternativa de Barreto pode ser comprovada pelas crônicas apresentadas no livro recém-lançado pela Editora PUC-Rio. A maioria delas foi publicada na revista Careta, de perfil irreverente e libertário, aberta a novas formas de manifestação cultural. "A ruptura com a grande imprensa, lembra Rosso, aconteceu a partir da publicação de 'Recordações do escrivão Isaías Caminha' no jornal A noite em folhetins, em 1909", lembra Rosso. O conto trazia uma crítica vigorosa ao periódico Correio da manhã, um dos mais influentes da época. Ao mesmo tempo, houve um grande interesse pelo autor hábil e crítico revelado naquele momento, o que, para o pesquisador, desconstroi a tese de que Lima Barreto sempre foi renegado ao ostracismo por ser mulato e alcoólatra.

"Surgiu uma curiosidade em torno de quem era aquele homem, que já militava e escrevia artigos na imprensa. Ele tinha um certo reconhecimento, até que a publicação de 'Recordações do escrivão Isaías Caminha' causou esse mal-estar com os grandes jornais", esclarece Rosso.

Al-Patak é aqui

Se, por um lado, Lima representa uma vanguarda em temos de conteúdo naquela época, hoje a leitura dos “Contos Argelinos” só não é mais fácil por conta da grafia árabe empregada em nomes de lugares e personagens. Ao leitor, são quase escancaradas as caricaturas e críticas, que não escapam a um só conto. Não é preciso muito esforço para associar todos aqueles sheiks e situações dignas de uma monarquia arcaica ao imaginário da estrutura política, econômica e social brasileira. A contextualização histórica, didaticamente feita por Rosso no início do livro, ajuda muito nessa compreensão.

 Divulgação Nela, estão destrinchados os primeiros anos da República brasileira: o positivismo dos militares, a política do café-com-leite, o sistema oligárquico e sua política dos governadores, as políticas de valorização de café e o convênio de Taubaté, Hermes da Fonseca e seu fracassado salvacionismo. A breve introdução sobre o cenário literário da época, basicamente parnasiano, e sobre o crescimento da influência da imprensa e dos cronistas também são explicados. Antes de passar aos contos argelinos, há uma resumida biografia de Lima Barreto, na qual Rosso situa no tempo as publicações do cronista.

Movido pela vontade de revelar Lima Barreto para vários tipos de leitor

Uma das intenções de Mauro Rosso com tamanho didatismo está ligado aos principais objetivos que o levaram a escrever o livro. Ele recorda que as dificuldades encontradas no processo de edição e publicação – a correção gráfica dos textos da época para o português atual e o mau estado de conservação observado em alguns acervos – não o fizeram titubear diante do projeto de revelar “esses textos do Lima Barreto ao leitor, desde o leitor comum ao admirador de literatura brasileira, ao estudioso e ao público universitário e escolar.”

"O Lima, como outros autores, deve ser lido em qualquer século. Ele já devia ter sido reconhecido durante todo o século XX. E deverá ser pelo XXI, XXII, XIII...", enfatiza o autor.

Do sarcasmo ao drama

Entre as novidades que Rosso resgatou para o grande público na antologia comentada, há dois textos dramáticos: “Casa de Poetas”, uma crítica de costumes leve, caricatural; e “Os Negros”, de conteúdo dramático e crítica mais acentuada. O “lado dramaturgo” de Lima, entretanto, conta com todo o sarcasmo e a ironia que são caros aos gêneros pelos quais é mais conhecido: a crônica e o conto.

Lima Barreto versus Machado de Assis

Ainda sobre pontos obscuros da biografia de Lima Barreto, o pesquisador esclarece um velho boato da literatura brasileira: o da animosidade existente entre ele e Machado de Assis. Conta que Lima “admirava Machado, mas não deixava de criticar ninguém”.

"As restrições eram feitas ao Machado porque ele representava a escrita do século XIX, que ainda no século XX prevalecia. Se Lima tivesse convivido com José de Alencar, também o criticaria. Mas há passagens de troca de elogios  entre um e outro.  Lima comentava um pouco acidamente o Machado porque ele também era mulato e não se engajava tanto com a causa étnica", explica.

Eleições ilustram atualidade dos textos 

Mauro Rosso aponta a atualidade dos textos como um dos motivos pelos quais interessou-se em publicar a obra em 2010, ano eleitoral: "Os 46 contos que fazem parte da publicação têm como denominador comum o teor político. Nada mais apropriado do que fazê-los vir à tona agora. O Lima foi crítico feroz dos conchavos políticos, da corrupção, do jogo de interesses e favorecimentos".

A atualidade impressiona tanto quanto as situações quase circenses “encenadas” pelos mais diversos tipos humanos ao longo das narrativas. Como a do policial do conto “Que Rua é essa?”, que abandona a cidade aos crimes para desfrutar de seu passatempo favorito: passear pelas ruas com a viatura da corporação. Lima Barreto costumava caricaturar a esperteza dos políticos e pretensos sábios com uma inocência debochada. Assim observa-se, por exemplo, no conto “Era preciso...”, em que um alpinista social resolve procurar um desafeto para assassinar porque todos os homens “bem-sucedidos” que conhece também o fizeram. Aepesar das tintas fortes, não se pode falar em exagero em um país onde parlamentares são flagrados com dólares em roupas íntimas ou justificam desvios de dinheiro público com compras de supostos panetones.

Terra de paxás

Ao fim da leitura, a sensação de que pouco mudou na essência da crônica política pode um despertar um certo pessimismo em relação ao futuro. Mais do que preservar atitudes de um século atrás, o país guarda semelhanças com uma terra sem leis de Sheiks e Paxás. Para Mauro Rosso, as semelhanças com uma terra comandada por paxás fazem das instituições brasileiras “haréns”: "Existe uma eternidade nessas figuras monárquicas. Elas estão acima do bem e do mal, como se fossem representantes dos deuses na Terra. E assim são os donos do poder no Brasil. Podem substituir os nomes, mas sempre haverá descendentes".

Nesse sentido, ler Lima Barreto pode ser um estimulo para, nas urnas, espantar-se toda espécie de “herança maldita”.