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Rio de Janeiro, 2 de maio de 2024


Campus

"O Brasil tem interesse no aumento de poder"

Juliana Oliveto - Do Portal

03/09/2010

 Camila Grinsztejn

Nos dias 8 e 9 de setembro vai ser realizado no campus da Gávea da PUC-Rio o seminário "Agendas e atores de política externa: perspectivas do Norte e do Sul". Organizado pela professora Leticia Pinheiro do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da universidade, o encontro vai contar com a presença de pesquisadores de diferentes países, como África do Sul, China, Estados Unidos, Argentina, França, entre outros, além do Brasil. No encontro, três mesas-redondas vão debater processos decisórios de política externa de países da América Latina e do Norte, Europa, Ásia e África. A realização do seminário é da PUC-Rio e da Rede de Pesquisa Agendas e Atores de Política Externa, com recursos do CNPq.

O Portal PUC-Rio Digital conversou com a professora Leticia Pinheiro e com o professor da UniRio Carlos Milani, um dos debatedores do seminário, a respeito da política externa brasileira e da importância da perspectiva estrangeira na discussão sobre a agenda internacional dos países e os atores que influenciam os processos decisórios. Segundo Leticia, encontros como esse são relevantes acadêmica e politicamente. “Discutir política externa brasileira e de outros países não é uma questão importante apenas nos dias de hoje e apenas dentro da universidade, é um tema que faz parte da vida cotidiana de todo cidadão, não vejo como não enfatizar esse tema”, afirmou.

Portal PUC-Rio Digital: O que podemos definir, atualmente, como política externa? Houve alguma mudança recente em relação à visão mais tradicional sobre o tema?

Leticia Pinheiro: Em grande parte essa é a pergunta que motivou não só o seminário, mas também uma pergunta de pesquisa que convergiu uma série de pesquisadores em torno dessa discussão. Será que a gente pode definir política externa da mesma forma que se definia no passado? O que fez com que essa definição sofresse alterações, se é que alterou? Um grupo de pesquisadores no Brasil, junto com alguns brasileiros que trabalham no exterior, perceberam que seria importante haver uma troca de reflexões a esse respeito, buscando respostas não necessariamente coincidentes, mas procurando trocar uma experiência de pesquisa em torno do que chegamos a pensar como uma reconfiguração da política externa, do fazer política externa e, portanto, da própria análise dessa política do ponto de vista acadêmico.

Carlos Milani: Buscando nos clássicos, nos manuais, você vai ver que política externa é uma política pública que procura definir a inserção internacional de um determinado Estado e a partir de um ponto de vista político, geoestratégico, econômico... Foi essa discussão que nos inquietou no início, na definição da rede de estudos que foi montada há cerca de três anos, e que motiva esse seminário. Se tradicionalmente a gente pensava política externa a partir do que era definido, debatido, discutido, no interior do Ministério das Relações Exteriores, do Itamaraty, aqui no Brasil, agora nos perguntamos se existe uma proliferação de atores, se existe uma discussão de agenda internacional nos outros ministérios, nas entidades subnacionais, fora do âmbito institucional, atores não institucionais que procuram incidir nessas agendas. Então o que muda? Será que isso trás uma nova "política da política externa"? Ou será que ela continua, fundamentalmente, a mesma?

 Camila Grinsztejn

Portal: E de que modo essa preocupação se universaliza?

Leticia: Essa inquietação não é só da academia, mas também do grande público à medida que questões internacionais passaram cada vez mais a fazer parte do cotidiano do cidadão, mesmo que não se perceba ou se tenha noção de que isso fica no terreno das relações internacionais. É uma curiosidade que vem movendo o cidadão e, certamente, a academia, no sentido de podermos compreender melhor esse mundo que estamos construindo e, no nosso caso, explicá-lo melhor e avançar nessa discussão.

Portal: Em geral, o senso comum percebe a política externa como um tema exclusivamente abordado pelo Itamaraty, mas hoje temos o Itamaraty, mas também ministérios especiais, a figura do assessor de relações internacionais da Presidência... Em que medida a política externa brasileira se pluralizou na formação e qual o efeito disso?

Milani: Isso é um grande debate e depende muito da visão de quem fala. A política externa é uma política pública. Se a gente avança no processo de democratização do Estado, saindo da ditadura e entrando no processo pós-1988, no qual vamos consolidar essa democracia, me parece natural que questionemos também as agendas de política externa, em que medida deve ser objeto de um debate público... Não significa que a política externa tenha perdido todas as suas particularidades. Do meu ponto de vista, parece natural que essas agendas de política externa tenham que ser debatidas publicamente. É uma pena que não exista um grande interesse e que isso não se reflita no debate dos presidenciáveis. A política externa deveria ser muito mais debatida porque é uma política pública de caráter estratégico e que corta transversalmente todas as outras políticas públicas nacionais, de educação, de cultura, de economia... E tudo isso tem uma relação muito estreita com o projeto político de inserção internacional do Estado brasileiro.

 Camila Grinsztejn

Portal: Mas em que medida a política externa é um assunto que gera impacto na vida do brasileiro?

Leticia: Que ela gera impacto na vida do cidadão brasileiro eu não tenho a menor dúvida. Mas não acho que haja uma percepção clara de que os resultados, as conseqüências, da política externa o afetam, embora haja um impacto, sem dúvida nenhuma. Se o Brasil assina a Convenção de Controle do Tabaco, por exemplo, isso claramente vai impactar no cotidiano de qualquer cidadão fumante. E o que acho que ainda não existe é essa clareza de que a vida cotidiana do cidadão está vinculada a temas que estão na arena internacional. Acho que tem um outro elemento importante que, se não está em grande parte associado, eu acho que contribui, é o fato de que a política externa ainda não se constitui como uma moeda de troca eleitoral. Na realidade, embora hoje a gente já tenha ouvido no debate presidencial algumas informações e divergências sobre a pauta da política externa do atual governo e dos candidatos, isso não significa que de fato a política externa vai fazer uma diferença no resultado eleitoral. O tema está entrando aos poucos no debate, mas ainda é incapaz de transformar o resultado das eleições. Mas acho que isso pode mudar à medida que esse impacto na vida do cidadão está sendo incorporado na arena pública do debate. Tudo isso certamente vai fazer com que o eleitor perceba a relação e passe a ter no tema mais uma questão a julgar na definição do seu voto. Estamos no caminho que é longo e pode ser muito errático, não acho que é contínuo e sem idas e vindas, mas acho que estamos caminhando nessa direção.

Portal: Em geral, como se constitui a política externa hoje, em termos de agenda e atores?

Leticia: Tanto a agenda quanto a participação dos atores não vou dizer que é totalmente aberta, mas está em grande parte em construção. Existem os ministérios das relações exteriores, as secretarias de estado dos outros países, sem dúvida existem os chamados ministérios rivais, os clássicos ministérios econômicos e militares cuja atuação está muito permeada por temas internacionais, mas o que a gente está querendo trazer é a ideia de que existem outros ministérios, temas que têm sua agenda internacional convergindo com a agenda do Estado brasileiro.

Portal: E no caso da política externa brasileira? A PEB deve ser mais democratizada ou já atingiu um nível que pode ser considerado satisfatório?

Leticia: Acho que essa é uma discussão importante. Ser democratizada significa que a política externa deixará de ser uma atribuição do Estado brasileiro? Não, eu acho que tem que ter mais participação. Não é perder, não é a idéia de fazer uma democracia delegativa, existem instituições preparadas para isso. O sistema democrático faz com que a gente escolha nossos representantes e esse tipo de representação, esse tipo de escolha, cada vez mais deve olhar para quem ocuparia o cargo de ministro das Relações Exteriores. Democratizar não é algo que acaba, “Agora está bom de democracia, chega”, acho que é um aprofundamento junto com um aperfeiçoamento dos instrumentos democráticos visando à participação popular, à melhoria das políticas públicas, por exemplo. Isso não implica em um abandono da necessidade de instituições vinculadas ao Estado, preparadas e com algum nível de autonomia para a condução dos negócios internacionais, mas não é isolamento total, nem a ideia de que essas instituições têm a capacidade de se antecipar aos interesses da população. Na verdade, essa troca vai tornar a política externa cada vez mais representativa desses mesmos interesses.

 Camila Grinsztejn

Portal: E qual o papel do Brasil no atual cenário das relações internacionais?

Leticia: O que eu vou dizer não restringe de forma alguma o papel que o Brasil desempenha hoje no sistema internacional. Mas para fazer uma ponte com a nossa área de pesquisa, acho que o papel que o Brasil vem desempenhando – que não começou com o governo Lula, mas que teve um adensamento durante seus mandatos, em particular no segundo – é a ênfase na cooperação e nas relações Sul-Sul. E nisso o Brasil vem se destacando, no tipo de cooperação oferecida, principalmente na área técnica. Isso diversificou de forma brutal a agenda da política externa, na medida em que o Brasil passa cada vez mais a ter uma atuação, uma presença, e usa a estratégia de renovação de projetos na área da saúde e agricultura em diversos países – particularmente na África e na América do Sul. O Brasil diversifica o número de atores envolvidos na política externa e fortalece essa que vem sendo uma marca muito forte desse governo, os projetos na área de cooperação Sul-Sul. Não acho que isso resume o papel que o Brasil desempenha no sistema internacional hoje, mas acho que isso é uma face da política externa brasileira que é muito forte e que tem uma estreita ligação com a discussão que a gente vem fazendo acerca da expansão da agenda internacional e da diversificação de atores envolvidos na implementação dessa agenda.

Milani: Com relação à forma como o Brasil vem colocando internacionalmente seu projeto político de inserção do Estado brasileiro no sistema internacional, concordo que se adensou no governo Lula, mas tem também raízes históricas. Se pensarmos no pragmatismo responsável ecumênico do [ex-presidente general Ernesto] Geisel, na política externa independente, então a gente tem algumas fontes históricas. Essa ideia do Brasil projetar uma nova identidade nacional tem o objetivo de se aproveitar de mudanças no sistema internacional, com uma certa fragilidade da hegemonia norte-americana e com os movimento tectônicos que a China produz nesse sistema por ser um país de dimensões continentais, entre outros fatores. Acho que o Brasil projeta algo do tipo: “Eu quero meu lugar ao sol”, e acho que existe uma certa oportunidade sistêmica que não havia durante a política externa independente porque era a época da Guerra Fria, por exemplo. Agora, parece que há uma certa oportunidade sistêmica, e o Brasil está tentando encontrar um lugar ao sol, não sei se isso vai dar certo, até hoje não deu. A maioria dos países emergentes continuam sendo emergentes para o resto da vida, são raros os que deixam de ser emergentes, não sei se deixaremos de ser isso para sermos desenvolvidos, mas esse é o papel que se atribui hoje à política externa brasileira.

Leticia: Abriu-se a oportunidade, que não existia, mas há também uma capacitação do país hoje que permite postular esse tipo de demanda. O Brasil de hoje é muito diferente do Brasil da década de 1960, mais ainda em termos econômicos, e em termos políticos é muito diferente da década de 1970, então tem realmente condições políticas, econômicas, legitimidade de sustentar esse projeto que é um projeto antigo e cuja viabilidade é muito maior agora do que foi no passado.

Milani: Vamos pegar esses três momentos. Política externa independente: não tinha oportunidade sistêmica e tinha o discurso, mas não a capacidade. Pragmatismo dos anos 1970: tinha oportunidade sistêmica, mas não tinha legitimidade, por ser uma ditadura. Agora não, tem a oportunidade sistêmica, não é uma ditadura, é um líder carismático com toda a legitimidade internacional – todo mundo adora o Lula – e o Brasil tem uma mudança do seu padrão econômico, melhoria das políticas sociais, uma certa inserção social de algumas camadas da população, então eu acho que isso dá um adensamento para essa tentativa que já é a terceira, pelo menos.

Portal: Isso significa, por exemplo, um lugar permanente para o Brasil no Conselho de Segurança da ONU? Significa que o país vai ocupar postos de mais responsabilidade?

 Camila Grinsztejn

Leticia: É um dos projetos da própria política externa brasileira ocupar esse lugar. A política externa aí não é propriamente um instrumento, embora possa em muitas áreas ajudar a atingir esses objetivos. Há um interesse do Brasil, desse governo, de conquistar um assento permanente no Conselho, mas eu acho que não é o único objetivo, nem tudo é instrumentalizado em função disso. Em geral, hoje, o Brasil tem interesse no aumento de poder, na maior presença internacional, que são interesses que às vezes não são bem recebidos por outros países, como se o Brasil ainda não estivesse qualificado, como país emergente, a ter voz, a participar dos grandes temas. Por que o Brasil está se metendo na história do Irã? Está se metendo porque acha que tem condições de ter uma opinião, de expressar sua opinião e de fazer diferença nessa atuação e acho que isso é um projeto. Ressaltei a cooperação Sul-Sul e acho que ela não é só instrumentalizada, é em si mesma uma iniciativa importante, que tem objetivos solidários e generosos – não tenho nenhum problema com esses adjetivos –, mas não é só isso. O Brasil quer ter mais poder no sistema internacional, quer ter voz, e isso é uma aspiração legítima de um país que hoje tem mais credenciais para se posicionar nos grandes debates internacionais.

Portal: Qual a importância de se organizar seminários como este?

Leticia: A importância acadêmica e política desse evento é muito grande. É um evento acadêmico que está se organizando, portanto dentro dos muros da universidade, mas não há da parte dos organizadores, em momento algum, o objetivo que essa discussão permaneça dentro desses muros. Queremos dar mais um passo no debate maior, um debate mais público sobre o tema de política externa. Discutir política externa brasileira e de outros países não é uma questão importante apenas nos dias de hoje e apenas dentro da universidade, é um tema que faz parte do cotidiano de todo cidadão, não vejo como não enfatizar esse tema. Do ponto de vista do interesse dos alunos, isso pra mim é uma questão muito importante também. É importante despertar nos alunos das universidades que fazem parte da rede de pesquisa e os alunos das que estão fora também, o interesse e a necessidade de uma discussão maior sobre política externa. O pesquisador precisa ter a noção de que, dependendo do corte que ele dá na pesquisa, pode perceber os elementos, as variáveis constitutivas das escolhas de política externa. Nos regimes ditatoriais, há uma complexidade específica na formulação da política externa, diferente da complexidade que existe em regimes democráticos, mas eu acho que a comunidade acadêmica de uma forma geral, os alunos e discentes, precisam ter mais clareza sobre a profundidade dessa complexidade e isso convida esses mesmos alunos à realização de pesquisas, essa é um pouco a ideia. A percepção da complexidade é uma grande isca para incentivar, aumentar a curiosidade intelectual sobre os estudos na área de política externa.

Milani: É um evento importante também em função da nossa conjuntura política atual, é um momento de eleições, de debate sobre mundo. E agora? E a política externa pós-Lula? Independente de posição partidária, teremos continuidade ou renovação, o que vai ser da política pós-Lula? O que vai ser implementado? Qual é o projeto? É o mesmo para os dois principais candidatos? Será que é o mesmo sem Lula, que tem o peso da figura pessoal? É um seminário que vem no momento certo para nutrirmos esse debate com mais informação de pesquisa e com informações de qualidade, mais aprofundadas.

 Camila Grinsztejn

Portal: E como a participação estrangeira contribui para o debate da política externa brasileira?

Milani: Quando você olha para a realidade do outro você aprende muito sobre sua própria realidade. Construímos a nossa identidade olhando para a alteridade. Quando fazemos pesquisa, às vezes ficamos só olhando para nossa própria realidade, até deixamos escapar alguns aspectos que nos parecem muito banais porque a gente está imerso naquele mundo que a gente acompanha. Veja, por exemplo, uma perspectiva comparada Brasil x México. Muita coisa que para mim parece banal, chego lá no México e digo “Gente, isso no Brasil é muito importante”, e o contrário também. Então acho que você enriquece o seu olhar com esse proceder da comparação, acho que isso o seminário vai trazer de forma muito rica.

Leticia: E o inverso também é muito importante. Lembrando que a gente tem a participação de pesquisadores brasileiros falando do Brasil e temos pesquisadores estrangeiros que também vão ter a oportunidade de fazer esse movimento a partir do conhecimento dos estudos sobre a política externa brasileira. É uma via de mão dupla mesmo, a ideia não é apenas trazer pesquisadores estrangeiros para que a gente possa melhor se conhecer através deles, é que eles também façam isso, na medida em que tenho certeza que já é uma área forte de estudos no Brasil, a de relações internacionais e política externa, uma área que faz uma diferença, que contribui e que já tem interlocução com o internacional.