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Rio de Janeiro, 27 de abril de 2024


Mundo

"A militância é o cerne da luta pelos direitos humanos"

Bruno Alfano - Do Portal

03/09/2010

 Isabela Sued e Mauro Pimentel

Entre avanços e retrocessos, os direitos humanos – termo cunhado com a criação da ONU, em 1948 – chegam à primeira década do século XXI com muito a avançar. As questões são as mais variadas, mas o caráter global do problema persiste, como no caso recente da expulsão pelo governo francês dos ciganos romenos do país; do conflito do governo mexicano com o narcotráfico; da detenção, por Washington, de militantes islâmicos em Guantânamo; ou o polêmico relacionamento diplomático do Brasil com líderes como o iraniano Mahmoud Ahmadinejad ou o ditador líbio Muammar al-Khadafi.

Especialista no assunto, o professor da PUC-Rio do Instituto de Relações Internacionias José María Gómez, em entrevista ao Portal PUC-Rio Digital, analisa a questão dos direitos humanos no contexto do século XXI. Segundo o professor, o maior desafio é o paradoxo que existe na atuação dos países. “Historicamente os Estados são os grandes responsáveis pelas violações, mas, sem eles, os direitos humanos não podem adquirir uma garantia e uma eficácia mínima”. Gómez ainda aponta a forma eficiente de combate das violações: “O elemento central é o laço entre os movimentos e organismos de defesa interna com ativistas transnacionais e ONGs internacionais de defesa dos direitos humanos”.

Pela complexidade do tema, a entrevista realizada será publicada em duas partes. Na segunda parte, a conversa terá como tema as ditaduras militares das décadas de 1960 e 1970 no Brasil, no Chile, na Argentina e no Uruguai e os processos de abertura dos respectivos documentos – pesquisa que Gómez realiza no momento. O professor também analisará a posição da política externa brasileira sobre a questão. “A postura do Brasil é lamentável”, e deixa um conselho: “Não se deve confiar nos Estados”.

 Camila Grinsztejn Portal PUC-Rio Digital: Em termos gerais, como o senhor define o conceito de direitos humanos?

José María Gómez: A gente tem que pensar no marco da ascensão e consolidação vertiginosa da internacionalização dos direitos humanos. Esse processo ocorreu, em uma escala global e também regional, a partir do final da Segunda Guerra Mundial e congelado, na sua origem, pela Guerra Fria de uma maneira brutal, pelo fato de os próprios direitos humanos se tornarem uma arena de luta política das superpotências. Depois, em meados dos anos 1970, vão começar os primeiros procedimentos do comitê de monitoramento das obrigações internacionais na proteção, respeito e promoção do pacto internacional assinado em 1967, tanto em favor dos direitos civis e políticos como dos econômicos, sociais e culturais. Na América Latina, a partir das lutas e reivindicações feitas pelas vítimas e pelos organismos de direitos humanos como ONGs e ativistas, a questão foi ganhando visibilidade, articulada com a legitimidade jurídica que os direitos humanos adquiriram em escala global, com a ONU.

Portal: E como fica a questão no pós-Guerra Fria?

JMG: Nos anos 1980 e 1990 – quando acaba a Guerra Fria – a causa ganha uma absoluta legitimidade, virando um dos nortes mais decisivos da ordem cosmopolita que se pretende construir. Porém, logo aparecem os conflitos, violências permanentes, genocídios dessa natureza e um sentimento generalizado nos países de que algo deve, e pode, ser feito no intuito de cessar esses mesmos conflitos, reparar as vítimas dos danos sofridos, abrir espaços para verdade e memória. Enfim, toda uma dinâmica na qual os direitos humanos são os elementos centrais que permitem reparar, produzir verdade e construir memória sobre barbáries cometidas. Entretanto, ao mesmo tempo, observa-se um grande uso político do tema, muito atrelado a interesses da estrutura de violações de poder que definem e marcam a política mundial.

Portal: E qual o caráter de universalidade do conceito?

 Camila Grinsztejn JMG: As dinâmicas históricas de violação e de luta em favor da causa implicaram concepções de direitos humanos diferentes. Quando a gente olha o regime internacional, é possível perceber que há um consenso formal elevadíssimo. Mas há também outras concepções que obedecem as dinâmicas diferenciadas que acontecem em diversas partes do mundo, em função das específicas formas de dominação e violação e das específicas formas de lutas e resistências, em nome dos direitos humanos. Então, há um conceito de direitos humanos muito elevado, mas concepções diferentes. Quando você me pergunta o conceito atual, eu te diria: a gente tem uma referência direta na produção jurídica onde há uma definição clara, onde se afirmam princípios interrelacionados, interdependentes, universais e indivisíveis, mas, de fato, a realidade histórica revela grandes assimetrias entre um direito e outro. Existe uma tendência a privilegiar desmedidamente os direitos civis e políticos – que estão mais diretamente vinculados a violações dos Estados. Em detrimento dos direitos econômicos e sociais que, porém, provocam uma violência a um contingente enorme da população. Tudo isso existe. Como existe também uma disputa de interpretações que se pode ver mais nas dinâmicas das lutas e das resistências, diante de dominações, e certamente nos esforços acadêmicos e intelectuais de poder entender de que por trás dessa aparente unanimidade existem interpretações divergentes.

Portal: E qual a sua interpretação?

JMG: A noção de igual dignidade e respeito é o que teria sido expressado como um núcleo duro do consenso formal entre os Estados. Isso remonta a uma velha tradição, sobretudo, ocidental, e é um ponto central de discussão, com implicações muito sérias. Quando em nome de uma concepção eminentemente ocidental se afirma a universalização e praticamente não se entra em diálogo com outras culturas e civilizações – que não tendo o conceito seminal de dignidade, tem outros –, isso fica absolutamente anulado por uma matriz muito "ocidentalocêntrica". Chamo a atenção para que os direitos humanos sejam pensados em um espaço multicultural de diálogos de culturas, em um plano de igualdade e de respeito, onde se torna perfeitamente possível que não seja feito um uso político dos direitos humanos, como muitas vezes a gente vê, com o intuito de levar à frente guerras e barbaridades.  Camila Grinsztejn É essa história densa e contraditória que a gente sempre tem que levar em consideração quando se pensa o que são os direitos humanos. A gente tem que se deter sobre os avanços concretos e históricos, levando em consideração os retrocessos, porque sempre estão em jogo dinâmicas específicas de poder. Quando se fala em direitos humanos, fala-se de violentas lutas pelo poder, fala-se de dominação e de resistência, onde, às vezes, há dois reducionismos maiores: um moral, e não porque não tenha altíssimas questões morais e éticas dos direitos humanos, mas há uma tendência a reduzir só a isso. E, por outro lado, um reducionismo jurídico, somente sua formulação jurídica, enquanto sua natureza primordial é eminentemente política, onde se dá toda dinâmica, e em uma crescente, de dominação e de resistência que a gente vê ao longo da história.

Portal: E como o senhor vê o panorama atual dos direitos humanos no mundo?

JMG: Os direitos humanos, na nova ordem mundial, ocupam uma dimensão fundamental. Essa introdução implica fortes mudanças no sentido de incorporar a questão dos indivíduos como sujeitos do direito internacional. As grandes barbáries dos últimos 60 anos, como o holocausto nazista, propiciaram, mesmo levando em consideração a questão da soberania, um princípio universalista desses direitos, impedindo que os Estados façam o que quiserem com seus cidadãos. Insisto: mesmo com fortes marcas “ocidalocêntricas” esse princípio permite, a partir das Nações Unidas, colocar os direitos humanos como um objeto fundamental, ao lado da paz e da segurança, da pobreza e do desenvolvimento.

Portal: Mas onde entram as contradicões?

JMG: Hoje, entramos em outra fase certamente cheia de contradições e ambivalências. Nesse momento, quando se deixa a Guerra Fria para trás, imediatamente aparecem conflitos onde os próprios direitos humanos são invocados para fazer, nada menos, que o uso da força – como no caso das intervenções norte-americanas no Afeganistão e no Iraque. Abre-se, assim, uma enorme mudança e os direitos humanos ficam atrelados aos problemas decorrentes dos seus distintos usos. Isso é um fato francamente regressivo. São essas ambivalências constitutivas dos direitos humanos – geradas depois do 11 de Setembro, com as invasões norte-americanas, Guantânamo, prisões indefinidas e a tortura legitimada – que, simbolicamente, deram as costas a uma arquitetura normativa institucional dos próprios direitos humanos, nos quais os próprios Estados Unidos foram importante protagonista. Isso significa um processo de retrocesso notável, mas não se pode dizer que o regime internacional dos direitos humanos não continua a avançar: novos direitos estão sendo incorporados e as convenções permanecem.

 Camila Grinsztejn Portal: Na atual ordem mundial, quais os principais promotores de direitos humanos e as principais ameaças?

JMG: Sem dúvida que há países e regiões onde se tem notáveis avanços. Isso se refere aos próprios processos históricos. A Europa tem hoje o regime mais avançado de proteção aos direitos humanos. O próprio cidadão pode ir contra a sua autoridade nacional para reivindicar uma violação de direitos perante instância supraestatal. É o lugar que tem o sistema mais avançado que existe em normas, em práticas e em legitimidade. Certamente, pela própria história, pelos mecanismos institucionais, pelo grau de consciência alcançada sobre respeito e proteção, a Europa conta com um sistema de forte proteção. Entretanto, ainda existem violações: basta ver o tratamento que os europeus fazem, como os norte-americanos, com os imigrantes clandestinos ou a supostos terroristas, com a suspensão dos seus direitos. É uma flagrante violação da própria lei internacional dos direitos humanos. Enquanto isso, existem outras regiões e países onde o desrespeito e as violações são sistemáticas. A começar pelo próprio Estado. Vendo como se dissemina a violência (de todo o tipo) pode-se concluir que esse panorama desigual tende a se acentuar.

Portal: Quais são essas “regiões e países do mundo” que praticam as violações sistemáticas?

JMG: Os cenários na África, na Ásia Central e no Oriente Médio certamente são sistemáticos. Esses têm os conflitos vinculados à própria natureza dos governos que são eminentemente repressivos. Mas não são apenas eles. Se pensarmos na América do Norte, os Estados Unidos, embora com fortes mecanismos de proteção, cometem inúmeras violações que acontecem no próprio país, além da questão dos supostos terroristas. Na América Central, veem-se países que viveram a tragédia de guerras civis, durante os anos 1970 e 1980. O que vemos hoje são regimes democráticos liberais precaríssimos, onde violência e corrupção são enormes.

Portal: E a América do Sul?

 Camila Grinsztejn JMG: Nos países da América do Sul, em toda a história está a violência – e, portanto, a negação de um dos direitos mais elementar – quase que constante e, às vezes, independentemente dos regimes políticos que se sucederam. Remontam à colonização e até hoje vão revelando formas de violência que não são como eram na década de 1960 e 70, ou seja, de natureza política explícita. Hoje, são violações onde a partir do próprio Estado, no seio da sociedade, acontecem sistematicamente, sobre grupos vulneráveis e grandes contingentes da população, seja na violação de direitos sociais, direitos culturais, de direitos mais elementares como a vida, a integridade física. Se mata muito na América Latina, se tortura demais como prática recorrente e isso é reflexo de culturas de ódio, de desprezo pela lei, de desprezo pelos próprios direitos humanos. Nós sabemos o quanto de preconceito existe sobre os direitos humanos, como estão disseminados, até pela própria mídia: dizem que “direitos humanos é direito de bandido”, “bandido bom é bandido morto” e qualquer um que levanta a bandeira dos direitos humanos, denunciando as omissões e as barbaridades feitas pelos próprios Estados, sob os regimes democráticos liberais, são considerados como cúmplices da bandidagem. Nossos países estão mostrando feridas enormes. Nesse sentido, a América do Sul está no ranking dos grandes violadores de direitos humanos. No plano da sociedade e por parte dos Estados. Não esqueçamos que a América Latina é a região mais desigual do planeta, assim como é uma das mais violentas, embora, felizmente, aqui não existam guerras entre os Estados ou um acúmulo de guerras civis como aquelas de outros lugares.

Portal: Como a comunidade internacional, na forma dos Estados ou ONGs, pode interferir nos países que violam os direitos humanos?

JMG: As violações em massa que acontecem por relações de poder, econômico, militar, enfim, as causa globais de violações, ou seja, desigualdade, pobreza, o mundo como se organiza tão desigualmente, tudo isso tem uma matriz global. Mas, geralmente, o grosso das violações são as que acontecem local e nacionalmente. As globais sempre se localizam, mas tem por responsabilidade direta atores da própria sociedade e os próprios Estados. Esse é o paradoxo dos direitos humanos: historicamente os Estados (por ação ou omissão) são os grandes responsáveis pelas violações, mas, sem os Estados, os direitos humanos não podem adquirir uma garantia e uma eficácia mínima. Você precisa deles, embora sejam (e por isso o paradoxo) um dos principais violadores. Aí está o grande problema. Através das normas jurídicas dos regimes globais, os Estados têm obrigações internacionais. Estas foram criadas para adequar sua própria legislação e assim realizar as condições de respeito e promoção dos direitos humanos. Mas isso não garante a eficácia e gera enormes constrangimentos. A tendência é aumentar o monitoramento e a fiscalização de órgãos específicos do próprio regime internacional cobrando relatórios, levando comitês de comissão de investigação para ver o estado dos direitos humanos – frequentemente nós vemos comissões aqui no Brasil para ver a condição do nosso sistema penitenciário. Além das normas jurídicas, há toda uma série de mecanismos específicos para monitorar e cobrar dos Estados suas obrigações jurídicas internacionais. Entretanto, isso tem eficácia muito relativa – a não ser que tenha uma intervenção humanitária pela força, que são casos extremados de conflitos armados e, na verdade, isso só acontece em Estados muito fracos.

 Camila Grinsztejn Portal: Então, quem são os atores fundamentais nesse processo?

JMG: Essa eficácia depende fundamentalmente menos da solução internacional – que, na verdade, pode fazer uma articulação do internacional com o nacional e não dar uma solução – e mais das dinâmicas das lutas, das pressões e da criação das condições internas. Claro que as pressões feitas por instituições internacionais ou por governos em que a política externa tenha uma posição pró-ativa dos direitos humanos podem constranger muito os Estados violadores, mas o elemento central, junto com esses órgãos e instituições específicas de respeito e monitoramento dos direitos humanos, da ONU, é o laço entre os movimentos e organismos de defesa interna com ativistas, movimentos transnacionais e ONGs internacionais de defesa dos direitos humanos. Essa aliança é um elemento fundamental. Porque os Estados estão sempre prisioneiros da seletividade e conveniência de seus interesses nacionais. Aquele que realmente desempenha um papel fundamental de solidariedade, de apoio e até de elemento decisivo para tocar e sensibilizar a opinião pública sobre certos casos esquecidos é essa trama muito densa e rica de militância de direitos humanos. Primeiro porque os militantes morrem diretamente na luta interna. Denunciando a prática predadora dos Estados, eles muitas vezes pagam com as suas próprias vidas. Além disso, há o suporte simbólico, moral, financeiro e a produção de verdade que isso produz. Enquanto os Estados omitem e mentem, as violações são mostradas pelas denúncias das vítimas e dos organismos de defesa e, a partir daí, surgem as campanhas em escala internacional. Isso é fundamental. Então, não é que os Estados não sejam importantes, nem que as organizações internacionais também não, mas é essa rede de militância que é o elemento central na luta. A militância é o cerne da luta pelos direitos humanos.

Clique e veja a segunda parte da entrevista.