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Rio de Janeiro, 28 de abril de 2024


Mundo

Scalércio: "A estabilidade do Líbano depende dos vizinhos"

Bruno Alfano - Do Portal

13/08/2010

Arte: Camila Grinsztejn

No último dia 03 de agosto, a instável fronteira entre o Líbano e Israel foi palco de novos confrontos, mais um capítulo da longa história de pendengas entre os vizinhos. De fato, o conflito árabe-israelense tem grande impacto sobre a história política do Líbano. Além de receber um grande número de palestinos refugiados em seu território, o governo em Beirute já teve que se deparar com a ocupação israelense por pelo menos duas vezes. Em 1982, uma grande invasão. Depois, em 2006, 34 dias de guerra entre o grupo paramilitar árabe Hisbolá e Israel deixaram, entre civis e militares, cerca de dois mil mortos. O Líbano, que antes era conhecido como a “Suíça do Oriente”, hoje pensa somente em reconstrução.

O mês de agosto, no entanto, não foi positivo nesse processo. Além do anúncio da nada honrosa 34° colocação no ranking dos Estados mais falidos do planeta, publicado recentemente pela revista Foreign Policy, um confronto na fronteira envolvendo tropas libanesas e israelenses gerou a trágica perspectiva de mais um grande conflito militar pela frente.

No dia 3, tropas israelenses na fronteira foram bodar árvores que atrapalhavam a visão da aldeia de Adaysseh. Os soldados foram atacados e o Exército de Israel respondeu com força. Beirute diz que os israelenses cruzaram a fronteira libanesa. Israel, que suas tropas estavam em zona internacional. O saldo ficou em cinco mortes: quatro libaneses, três soldados e um jornalista, e um oficial israelense. O grupo terrorista Hisbolá, que domina o Sul do país e parte da capital Beirute, já colocou armas e homens à disposição do Exército libanês em função do incidente.

Em entrevista ao Portal PUC-Rio Digital, o professor Márcio Scalércio, do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, explica a situação libanesa. Segundo Scalércio, as constantes disputas fora do território libanês influenciam na instabilidade do país porque alimentam desavenças internas.

Um exemplo disso é o próprio Hisbolá: a organização nasceu como resposta à primeira grande invasão israelense do Líbano. O grupo hoje atua como partido político e grupo terrorista, ao mesmo tempo. “O Hisbolá tem, muito provavelmente, os militantes mais bem treinados e agressivos do Oriente Médio”.

Portal PUC-Rio Digital: Qual o papel do Líbano nas disputas da região? O país tem influência ou a sua localização que o colocou nos conflitos?

Mauro Pimentel Márcio Scalércio: São as duas questões. O Líbano se notabiliza na região pela grande quantidade de água e pelas boas terras agricultáveis. Os mananciais de águas são importantes para a região e faz do país um grande produtor de comida, como frutas. Então, as terras do Líbano são valiosas sim. Além da cobiça dos países vizinhos, o Líbano sofre os efeitos das lutas na Palestina desde 1948 [ano da criação do Estado de Israel]. Muitos árabes da Palestina se refugiaram no Líbano e essa migraçãoa alterou o equilíbrio de forças entre as diferentes comunidades libanesas. Outra questão são as tropas israelenses nas Fazendas de Shebaa, que o Líbano considera seu território. A briga pelo controle da área gera um atrito entre Líbano e Israel – mesmo sendo um pedaço de terra muito pequeno [apenas 35km²]. Finalmente, há ainda a questão do Hisbolá.

P: Depois do incedente ocorrido no último dia 3, o Hisbolá colocou homens e armamentos a disposição do Exército libanês. Como é a atuação do grupo no país?

MS: O Líbano é um país dividido entre diferentes comunidades religiosas. Uma das mais numerosas [cerca de um milhão de pessoas] e a mais pobre são os muçulmanos xiitas. Essa comunidade se concentra, fundamentalmente, no Sul do país. Durante as invasões que ocorreram nos anos 80, os xiitas ficaram esmagados entre a invasão israelense e a reação das milícias palestinas e dos cristãos maronitas [outro grupo religioso do país]. Desse problema é que vai se constituir o Hisbolá. O grupo foi formado para proteger essa população do Exército israelense, dos cristãos maronitas e também dos palestinos. A força do Hisbolá cresceu com a revolução islâmica no Irã, em 79 – porque o Hisbolá criou um vínculo muito estreito com o governo iraniano, que o forneceu assessoria militar, armas e dinheiro, e com Damasco. Afinal, na Síria, o grupo tribal que comanda é o muçulmano Alauíta, que é uma versão dos xiitas. Enquanto isso, Israel entende que esse grupo, concentrado no Sul do Líbano e com presença na capital Beirute, é um adversário que ameaça o Estado judeu e assim vê necessidade em intervenções no Líbano para o controle do Hisbolá.

P: O Hisbolá possui representante no Parlamento libanês. Sendo assim, ele é um partido político ou um grupo terrorista?

MS: Os dois. Ele é um partido político e um grupo terrorista ao mesmo tempo. O Hisbolá tem representantes no Parlamento, mantém associações de caridade como creches e escolas, tem estações de rádio e de TV, presta ajuda financeira e técnica para as famílias arruinadas pelas guerras da região e também faz ações de guerrilha e terrorismo. Do ponto de vista do governo brasileiro, o Hisbolá não está na lista de grupos terroristas – que, a propósito, é uma lista curtíssima. Já do ponto de vista israelense e americano eles são terroristas – inclusive porque o grupo é acusado por um ataque contra a Associação Mutual Israelita Argentina, de Buenos Aires, em 1994. Do ponto de vista dos xiistas (do Líbano) eles são a resistência contra as agressões israelenses na região. E impõe respeito. O Hisbolá tem, muito provavelmente, os militantes mais bem treinados e agressivos do Oriente Médio. Essas são as duas faces do grupo: promove ações violentas, e, por outro lado, faz parte do governo – até porque, como a política no Líbano se organiza pelo equilíbrio das diversas comunidades religiosas, todo mundo faz parte do governo libanês. 

P: Existem, dentro do Líbano, numerosos grupos étnicos que compõe forças políticas como cristão maronistas, muçulmanos sunitas, xiitas e druso, gregos ortodoxos, armênios, protestantes e palestinos. Como é a atuação política desses grupos? Quais se destacam?

MS: Os grupos mais importantes são os muçulmanos sunitas – que têm prosperado bastante ao longo dos tempos  – e os cristãos maronitas – que também se destacam pelo poder econômico. Os maronitas são a comunidade mais próspera do Líbano. Os muçulmanos xiitas estão aumentando sua influência porque esse é o grupo religioso com o maior crescimento demográfico – inclusive, a influência deles está extrapolando o Sul do país e o grupo já domina bairros inteiros da capital Beirute. O que sempre se procura no Líbano é um equilíbrio entre esses grupos, para que todos tenham representação no governo.

P: Depois da guerra civil que durou de 1975 a 1990 – com a invasão de Israel, em 1982 – e o confronto de 34 dias entre Israel e o Hisbolá, em 2006, como está o processo de reconstrução do país?

Mauro Pimentel MS: É como acontece com a espécie humana em geral: logo depois do desastre a reconstrução acontece. Então, está acontecendo. O Líbano está sempre se reconstruindo. O país intensificou esse processo nos anos 1990, recuperou a estabilidade em algumas regiões, mas sofreu um outro abalo em 2006, e se reconstrói novamente. Na verdade, a estabilidade do Líbano passa necessariamente pela melhoria das relações dos vizinhos entre si. Não depende só dele. A instabilidade no Oriente Médio é que piora a situação no país – e não o contrário.

P: O incidente desse mês ameaça uma terceira guerra envolvendo o Líbano?

MS: Não ameaça diretamente, mas é um tijolinho no muro. Aquela área é instável mesmo e, ao mesmo tempo, a luta ali é muito difícil. Combater o Hisbolá é muito difícil. Acho que a grande preocupação israelense no momento não é Líbano, e sim o Irã. Ao mesmo tempo, o Líbano, com o Hisbolá, não tem como agredir Israel contundentemente porque não tem poder militar para isso, mas tem condições de retaliar os israelense com muita violência. É sempre muito complicado. Sempre pode suscitar um novo conflito. Há sempre uma tensão entre os governos israelense e libanês. Beirute está sustentada na composição, o presidente libanês [Michel Sleiman] apóia o Hisbolá.

P: Os problemas entre o Líbano e Israel têm efeitos no Brasil?

MS: Há mais libaneses e descendentes de libaneses em São Paulo do que no próprio Líbano. Nós temos uma grande comunidade libanesa e judaica, então quando acontece um problema, repercute por aqui. A ligação entre os libaneses no Brasil e seu país de origem é grande: eles continuam indo ao Líbano, visitando os parentes, contribuindo para instituições libanesas – o governo americano, inclusive, reclama disso, porque entende que muitas dessas instituições são de fachada, criadas para arrecadar dinheiro para o terror.