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Rio de Janeiro, 25 de abril de 2024


Esporte

Por que ídolos cultivam derrotas fora de campo

Carina Bacelar e Evandro Lima Rodrigues - Do Portal

12/08/2010

Mauro Pimentel

Casos como o do goleiro Bruno, acusado pelo assassinato da ex-amante Eliza Samudio, renovam o debate sobre o envolvimento recorrente de ídolos com o mundo do crime. As razões pelas quais figuras proeminentes, donas de prestígio e conta bancária confortáveis, sucubem ao ilícito são complexas. Envolvem aspectos morais, sociais, psicológicos, econômicos. Na opinião de especialistas, os "comportamentos desviantes" de esportistas célebres são explicados, em grande parte, pelo acúmulo acelerado de responsabilidades (agradar à torcida, manter o alto nível de desempenho, construir e conservar uma relação saudável com a mídia) e o despreparo para administrar o ônus e o bônus da fama.

Para Raphael Zaremba, professor do Departamento de Psicologia da PUC-Rio com especialização na área de esportes e coordenador da ONG Vem Ser, jovens das classes sociais mais baixas são os mais propensos a grandes choques quando conquistam grande reconhecimento. Pois, em geral, saem rapidamente de uma vida de privações, muitas vezes sem estudo, saúde e estrutura familiar, e passam a ter tudo o que sempre desejaram: dinheiro, fama, prestígio, paparicos, mordomias, pessoas dispostas a prestar favores em troca do acesso a parte desse mundo "glorioso". Zaremba conta que experimentou um pouco "essa vida" quando ficou responsável pela equipe de hóquei sobre a grama no Pan de 2007:

– Na Vila Olímpica, tínhamos de tudo: refeições de graça e a qualquer hora. Não precisávamos de automóveis para deslocamentos e os funcionários resolviam qualquer coisa para nós. Mesmo sendo um período curto, confesso que, quando terminou o Pan, senti falta das mordomias. Levou um tempo para me acostumar de novo com os problemas da “vida real”, como trânsito, violência... Imagine então como é para uma pessoa que sempre viveu uma realidade de pobreza e privação entrar, de forma rápida e definitiva, nesse mundo de regalias.

O professor acrescente que não raramente crianças pobres são impelidas pelos pais, desejosos de enriquecimento, a fazer a opção pela carreira esportiva sem refletir a fundo sobre a escolha, tampouco se preparar para as implicações que a cerca. Muitas vezes, só lhes é passado o lado supostamente bom: a fama, o reconhecimento, a possibilidade de estabilidade financeira a médio prazo. No entanto, alienam-se do "outro lado da moeda": assédio da mídia, responsabilidade de servir de exemplo para milhares de pessoas, risco de propostas e relações oportunistas.

O ideal, observa o especialista, seria que os jovens ingressassem na carreira esportiva acompanhados desde cedo por psicólogos que lhe ensinassem a lidar com situações novas, como dar entrevistas e dialogar com fãs; e pela família, que também deve estar preparada para as novidades que o atleta enfrentará. Segundo ele, a preparação adequada inclui um laboratório: o candidato a atleta de ponta (e a ídolo) deve conhecer de perto a rotina de um profissional de referêncial, até para entrar em contato com os problemas muitas vezes ofuscados pelo glamour.

Alberto Filgueiras, consultor da área de Neurociência Aplicada ao Esporte do setor de psicologia do Flamengo, alerta que a preparação psicológica do atleta é voltada para a "otimização do seu desempenho nas partidas e campeonatos, e não há um trabalho especialmente direcionado para o comportamento fora de campo. A exemplo da preparação física e tática e da fisioterapia, o condicionamento psicológico é voltado, prioritariamente, para a alta performance. Esta prioridade reflete-se também nas contratações, para as quais o rendimento esportivo tem um peso preponderante, em detrimento, por exemplo, de fatores comportamentais. Embora os grandes clubes tenham adquiro um perfil mais profissional, o paternalismo ainda não pode ser definitivamente descartado. Não é raro astros receberem tratamentos diferentes e desfrutarem de impunidade.  

– O pensamento de muitos dirigentes é: “A gente não pode punir porque isso deixará o atleta insatisfeito e ele vai querer mudar para outro clube. A gente não pode perder esse atleta, então pronto” – admite o psicólogo.

Filgueiras ressalta também a baixa escolaridade comum a grande parte dos atletas brasileiros profissionais. Como a carreira esportiva começa cedo e não há estratégicas efetivas de conciliação com os estudos, a maioria deles encerra precocemente a trajetória na educação formal. Nos Estados Unidos, por outro lado, a maioria dos atletas vem das universidades, que estimulam a profissionalização esportiva com bolsas de estudos aos jovens promissores. Nos clubes brasileiros, a fiscalização é  fraca: restringe-se à obrigatoriedade da conclusão do ensino médio, exigida pela federação, pelos jovens das divisões de base. O psicólogo acredita que a ausência de estímulo ao ingresso no ensino superior "faz falta", pois o ambiente acadêmico propicia a aquisição de sensos importantes, como os de civilidade e ética e a capacidade de debater certos assuntos. No entanto, ele ressalva que já é possível identificar uma mudança no perfil dos atletas:

– No Flamengo, a gente tem observado que os atletas hoje com 15, 16 anos, têm perfis diferentes. Eles estão mais preocupados com a educação, fazem cursos de idiomas. A maioria pensa em fazer uma faculdade.

O consultor do Flamengo discorda dos que culpam "a mídia" pelos escândalos com atletas famosos. Para, ele, a mídia "é só um alto-falante daquilo que o povo observa". O problema, segundo Filgueiras, deve-se, em parte, à fabricação compulsiva de ídolos, para os quais se entrega um salvo-conduto tácito. O endeusamento dos astros do esporte remonta às Olímpdas da Grécia antiga, onde se acreditava que os competidores eram agraciados pelas divindades.

– Uma vez que os colocamos nesse pedestal, eles também se colocam. Se 190 milhões de pessoas dizem que você é deus, você vai discutir com esse número? – observou.

Apesar dos chamados comportamentos desviantes habitarem com frequência o mundo dos ídolos – do esporte e de outras áreas -, vidas podem ser transformadas de uma maneira positiva pelo esporte, lembram os especialistas. Zaremba ressalta que a prática esportiva, especialmente a coletiva, ensina às crianças valores fundamentais para a formação do indivíduo – como o respeito às diferenças e a importância do  trabalho em equipe. Organizador de cursos e palestras para atletas, o psicólogo reforça a capacidade de programas esportivos promoverem a cidadania e colaborarem para a reduzir problemas como a evasão escolar.