Projeto Comunicar
PUC-Rio

  • Facebook
  • Twitter
  • Instagram

Rio de Janeiro, 27 de abril de 2024


Cultura

Livro conta a história dos “anjos da guarda” nos anos de chumbo

Clarissa Pains - Do Portal

24/06/2010

 Divulgação

Num ano de grande polêmica em torno de campanhas pela abertura dos arquivos da ditadura, da revisão da lei de anistia e de eleições presidenciais em que os três principais candidatos foram perseguidos políticos, a Editora PUC-Rio lança o livro Advogados e a Ditadura de 1964 – a defesa dos perseguidos políticos no Brasil, em parceria com a Editora Vozes. Organizada pelos professores da PUC-Rio Fernando Sá e Oswaldo Munteal e o professor da FGV Paulo Emílio Martins, a publicação reúne textos sobre 15 advogados políticos atuantes do período. Há também um bloco de anexos que traz o outro lado da moeda: depoimentos dos presos com enfoque no relacionamento deles com seus advogados. A pesquisa durou dois anos e envolveu mais de 30 pesquisadores de instituições de várias partes do Brasil.

Entre as histórias contadas no livro, está a de Antônio Modesto da Silveira, um dos advogados que defenderam perseguidos políticos, muito embora fossem por isso alvo de invasões de escritório, perseguições, sequestros. Em 1º de abril de 1964, ele viu duas pessoas caírem fuziladas ao seu lado e testemunhou, em meio à Cinelândia lotada, soldados de infantaria voltarem seus canhões e baionetas contra a multidão. Quando chegou ao escritório, no mesmo dia, já havia uma fila de pessoas querendo consultá-lo, entre elas militantes de esquerda, líderes sindicais, mães, irmãs e esposas em desespero porque seus filhos, irmãos e maridos tinham sumido.

Segundo os organizadores de Advogados e a Ditadura de 1964, falou-se muito sobre a ditadura militar sobre vários aspectos, mas a atuação desse grupo de advogados foi esquecida. De acordo com Fernando Sá, eles foram fundamentais para salvar vidas e impedir torturas, na medida em que as autoridades militares ainda procuravam uma aparência de legalidade. Camila Grinsztejn  

– Quando um advogado entrava com pedido de reconhecimento de um preso e, usando as brechas existentes na lei, fazia o Estado admitir que um órgão militar havia feito a prisão, o governo passava a ter de se responsabilizar pelo preso. Isso, na maioria das vezes, era decisivo para salvar a vida dele – disse. – Os advogados eram anjos da guarda, pessoas que davam esperança de vida. Eram o elo dos presos com a vida real.                                                 

De acordo com Fernando Sá, ainda há várias questões a serem resolvidas quanto aos direitos humanos. O professor defende que os arquivos da ditadura sejam abertos, os torturadores denunciados, as ossadas dos desaparecidos devolvidas a seus parentes.

– O país tem uma ferida aberta. A cicatrização será possível apenas com a verdade, a apuração dos fatos e a punição dos torturadores e assassinos. O Estado deve isso à sociedade, mesmo que os crimes estejam prescritos – afirmou. – Claro que não queremos que um velhinho de 80 anos vá para a cadeia, mas queremos saber que aquele velhinho matou e torturou.

Na ditadura, segundo Modesto da Silveira, há uma farsa de Justiça. Para ele, organismos como o Dops e o Doi-Codi eram “gestapinhas da ditadura” e os advogados da época não gostavam de defender perseguidos políticos “porque esses casos não davam nem pão, nem glória”.

– No Rio, chegamos a ter delegacias e quartéis abarrotados de presos políticos. Ilha Grande, Ilha das Cobras, navios... Todos cheios. Usaram até o estádio Caio Martins, em Niterói. Pelo que eu calculo, de acordo com a quantidade de perseguidos que eu defendi de Belém a Porto Alegre, creio que o número de vítimas, diretas e indiretas, é de meio milhão – contou.

O historiador Oswaldo Munteal, um dos organizadores do livro, ressaltou que, na história, as pessoas costumam ser esquecidas.  Camila Grinsztejn “É comum falar do aparato jurídico da ditadura, mas e os homens por trás disso?”, questionou. Segundo ele, no “estado de exceção”, os advogados passaram de defensores a réus.

– O que coloca esses homens numa posição diferenciada é a visão humanista, que abarca a luta pelos direitos civis, políticos e a ética profissional. São homens com profundo senso de solidariedade que levaram os seus princípios às últimas consequências – afirmou – Esse foi o trabalho mais importante da minha vida acadêmica. Tenho mais de 20 anos como professor da PUC-Rio e essa foi a pesquisa que mais me emocionou.

A propósito, uma das histórias mais tocantes para o advogado Modesto da Silveira é a do 2º sargento da Aeronáutica João Lucas Alves. Ele foi preso no Rio de Janeiro em novembro de 1968 e levado para o Dops/RJ. Em fevereiro do ano seguinte, foi transferido para o órgão repressor de Belo Horizonte que, pouco tempo depois, anunciou sua morte por suicídio na Delegacia de Furtos e Roubos da capital mineira. Nas torturas que sofreu, João Lucas teve vários ossos quebrados, olhos vazados e queimaduras generalizadas.

O laudo médico, requerido por Modesto, revelou unhas arrancadas, escoriações e equimoses, inclusive no rosto e nas nádegas, e não demonstrou qualquer indício do suposto suicídio por enforcamento.

– As autoridades disseram que ele havia se enforcado usando sua própria calça jeans, mas é impossível que um homem com cerca de 80kg se pendure em uma calça e ela não rasgue. Além disso, a altura em que a roupa estava pendurada era menor que a do próprio João Lucas – contou o advogado.

 Camila Grinsztejn

As histórias que Modesto tem para contar, porém, nem sempre são tão tristes como essa. Há alguns episódios curiosos e até mesmo cômicos, que denunciam certa fragilidade da Justiça Militar. Um deles se passou no tribunal do Inquérito Policial Militar (IPM), onde uma “testemunha de viveiro”, soldado obrigado a dizer o que fosse de interesse dos militares, era interrogada como suposta testemunha de uma “reunião comunista subversiva”.

– Como o soldado na verdade nem conhecia os réus, quando o perguntaram quem havia participado da dita reunião, ele acabou apontando um dos advogados. Então, sugeri que perguntassem se um tal de Edson Arantes do Nascimento também havia estado lá. O soldado confirmou e, claro, o testemunho foi totalmente desmoralizado – disse Modesto da Silveira.

Paulo Emílio Martins, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), outro organizador do livro, acredita que advogados como Modesto da Silveira “honraram a profissão e lidaram com o contraditório em um dos períodos mais difíceis do Brasil”. Para ele, a relevância de Advogados e a ditadura de 1964 – a defesa dos perseguidos políticos no Brasil se deve ao retrato que consegue compor de um período da história do país que a maioria dos jovens não conhece.

– O livro é um precioso material para debate nos cursos de direito, por exemplo – afirmou. – O Brasil tem uma longa história de autoritarismo, desde os tempos de colônia, o que torna a discussão sobre os direitos humanos sempre importante.