Projeto Comunicar
PUC-Rio

  • Facebook
  • Twitter
  • Instagram

Rio de Janeiro, 23 de abril de 2024


Cultura

"Machado de Assis foi um cientista da alma"

Clarissa Pains - Do Portal

21/06/2010

Camila Grinsztejn

“Matamos o tempo, o tempo nos enterra”, disse Machado de Assis em um de seus livros mais famosos: Memórias póstumas de Brás Cubas. O escritor, no entanto, se enganou: hoje (21/06), ele completaria 171 anos e, passados mais de 100 anos de sua morte, Machado não foi esquecido.

“Gago, epiléptico, mulato, canhoto, pobre e de origem favelada”, como define Ricardo Oiticica, pesquisador da Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio e doutor em Literatura Brasileira, Machado se tornou um expoente das letras e referência mundial. Inovador e ousado, "o bruxo do Cosme Velho" (o apelido se deve a um caldeirão de enfeite que ele tinha no jardim de sua casa) foi, segundo Oiticica, “um estudioso da alma humana”. Em entrevista concedida ao Portal, o professor afirma que a obra de Machado de Assis une literatura, filosofia e psicanálise.

Para Oiticica, é emblemática a importância da cidade do Rio de Janeiro para a vida e a obra do primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL). O professor arrisca afirmar que Capitu, uma de suas personagens mais conhecidas e polêmicas, tem seu nome inspirado na “capital”. “Se eu posso dizer que Capitu é Rio de Janeiro, Machado de Assis, um escritor cosmopolita, é também Rio de Janeiro”, disse Oiticica.

Portal PUC-Rio Digital: Como explicar a importância da obra de Machado de Assis na literatura brasileira e mundial?

Ricardo Oiticica: Nas duas últimas décadas do século XIX, Machado promoveu uma revolução em sua obra que, embora tenha recebido o rótulo de realista, eu considero uma revolução moderna. A novidade é que Machado inaugurou o realismo entre nós colocando aspas nessa expressão, uma vez que o seu primeiro narrador é um defunto-autor, o Brás Cubas. Daí até sua morte, em 1908, ele faz uma pesquisa que liga a literatura à filosofia e à psicanálise. No período que vai das Memórias póstumas até as memórias do conselheiro Aires – que, muitos dizem, é o próprio Machado –, não há mais altos e baixos, portanto é um período muito coerente. Na poesia, ele ainda tinha recaídas, porque essa não era a “praia” dele. Se considerarmos [os capítulos de Memórias póstumas] "De como não fui ministro", que apresenta uma página em branco, e "O velho diálogo de Adão e Eva", feito apenas com reticências e sinais ortográficos, como uma exploração visual da página, podemos dizer que Machado de Assis chegou a fazer experiências com a prosa no limite da poesia. Mas, na poesia ela mesma, ele continuou um escravo da forma, das musas, da inspiração. No conto e no romance, entretanto, Machado foi maior do que o gênero, revolucionando-o.

 Marc Ferrez

P: E quanto à relevância de Machado para a literatura mundial?

RO: Apenas na metade do século XX, ele passou a integrar o cânone ocidental. Muitos dizem que, se Machado tivesse escrito em língua inglesa, ele teria tido reconhecimento imediato. O diálogo com os ingleses se reflete na obra que fecha o século XIX, Dom Casmurro. Nesse romance, há uma relação curiosa com o tema do ciúme shakespeariano, fazendo crer que Machado tinha em mente o parâmetro internacional do ciúme, que está em Otelo. O personagem principal é “Bento”, “Santo”, mas também “Iago”: Bento Santiago. É como se o escritor dividisse o personagem entre características de Otelo e de Iago. Enquanto em certo momento ele é “beatificado” e chega a ser estudante de seminário, em outro ele cede às tentações do diabo. A traição, para Bento, era o retrato em que ele via no melhor amigo o rosto do próprio filho. Isso o leva a ter certeza da traição de Capitu. No romance de Shakespeare, essa fotografia funciona como o lenço de Desdêmona, peça fundamental para Iago convencer Otelo de que ela o traía, já que o lenço havia sido encontrado no quarto do suposto amante.

P: Que elementos nos permitem considerar inovadores o estilo e a forma da escrita machadiana?

RO: Memórias póstumas de Brás Cubas é um divisor de águas. Nesse livro, Machado usa o aspecto extratextual – que, no entanto, faz parte da narrativa –, com um pequeno prólogo em que o defunto adverte o leitor sobre o que vai encontrar nas páginas seguintes e dedica o livro ao verme que primeiro roeu suas entranhas. É uma narrativa apresentada de maneira realista, em que se desce a determinados detalhes na descrição de figuras, situações e mesmo ambientes, com a componente surrealista de se tratar de um defunto-autor. Não se busca os escritos deixados por um autor defunto, mas, ao contrário, se produz os escritos de alguém que se tornou autor depois da morte. De fato, isso era inovador, uma ousadia para um público que costumava levar a sério a literatura. A realidade interna da obra será o seu maior realismo. Machado de Assis praticamente anuncia que haverá no futuro o boom do realismo mágico. É curioso que Gabriel García Márquez, um dos criadores dessa escola literária, se referisse à Metamorfose, de Kafka, como uma lição de que tudo é possível. Isso é uma demonstração de que o Brasil ainda está, digamos, fora da literatura latino-americana, porque García Márquez poderia ter lido Machado de Assis antes de Kafka e ter chegado à mesma conclusão. Machado de alguma maneira antecipa essa tendência mágica, fantástica, na literatura.

P: Machado de Assis é considerado um dos grandes romancistas brasileiros – senão o maior –, mas não é muito valorizado por seus contos e crônicas. Qual a importância desses escritos para a sua obra?

RO: Eu reduziria a questão à crônica. O conto já tem um reconhecimento equivalente ao do romance, até porque o mais famoso de todos eles, O alienista, está na fronteira entre os dois gêneros. É verdade, porém, que, muitas vezes, não sabemos qual é o limite entre o conto e a crônica. A virtude da crônica é ser menor e talvez seja o gênero que sofre menos transformações ao longo da história da literatura exatamente por deixar a função jornalística prevalecer sobre a literária. A crônica não é o lugar da experiência formal. Nesse sentido, Machado foi muito bom cronista porque reconheceu a função referencial desse tipo de produção. A crônica só pode ser considerada “menor” se houver comparação entre os gêneros. Separadamente, ele fez uma crônica maior e um conto maior. Se há uma hierarquia, é muito mais em relação aos gêneros do que aos textos em si mesmos.

 Camila Grinsztejn

P: Machado desconhecia Freud e a teoria da psicanálise, mas, ainda assim, captava as sutilezas do discurso do inconsciente, principalmente nas personagens femininas. Podemos afirmar que Machado sinalizou pontos relacionados à teoria da psicanálise em sua obra?

RO: Sem dúvida. A sua busca de uma ciência para a alma humana, como ele chama no subtítulo do conto O espelho, é semelhante à que alguns psicanalistas fariam na passagem do século. O que interessava a Machado era como a literatura podia retratar de uma maneira nova assuntos como o sonho, o delírio, a loucura. Ele cria, então, uma “parafilosofia”, uma “parapsicanálise”. Há dois contos em que isso ocorre de maneira formidável: Uns braços e Missa do Galo. Os dois têm o mesmo enredo: um adolescente de 17 anos vai se hospedar na casa de uma jovem senhora e tece ilusões em relação a ela. No primeiro conto, a narrativa é em terceira pessoa e o narrador onisciente mostra como o protagonista sonhava com aquela mulher sem saber que, enquanto ele dormia, ela lhe deu um beijo. Depois, Machado escreveu Missa do Galo, em primeira pessoa, trabalhando nas brechas de Uns braços. Nos dois contos, existe a mesma situação – com paralelismo de nomes, idades, locais, circunstâncias. Mas, enquanto no primeiro sabemos que o personagem está sonhando, no segundo conto o que acontece parece real. Até hoje, os leitores confiam que, em Missa do Galo, houve o famoso encontro entre o adolescente e a senhora, “esperando tocar a meia-noite”. Apesar de as ações serem apresentadas do ponto de vista do narrador-personagem, até hoje lemos como se fosse o ponto de vista do narrador-onisciente. Machado mostra como a relação entre o sonho e a realidade tem uma fronteira que muitas vezes é possível romper sem que o leitor perceba. A obra de Machado de Assis é uma cartola de mágico, em que o leitor pode tirar diferentes coelhos.

P: Em que medida é possível afirmar a semelhança e influência de escritores como Edgar Allan Poe, Guy de Maupassant e Anton Tchecov na obra machadiana?

RO: Esses contistas do século XIX sem dúvida influenciaram Machado. Em determinados momentos, ele chega quase ao fantástico, com certa morbidez de Maupassant e Poe. Um pesquisador francês, Jean-Michel Massa, fez um belo trabalho sobre a biblioteca da casa de Machado de Assis, onde aparecem os nomes que você citou. Pode ser, no entanto, que ele nem mesmo os tenha lido, mas tenha se irmanado com pesquisas literárias e filosóficas da época. Assim como pode ter se impregnado de Freud sem nem mesmo saber de sua existência. Esse lado fantástico e mórbido dele, porém, é rapidamente particularizado pela “galhofa”, que está dentro de uma fórmula machadiana: “Escrever com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”.

P: Qual é a relação entre história e literatura na obra de Machado de Assis?

RO: Ele era romântico na sua primeira fase e a história, especialmente a brasileira, é uma reinvenção romântica. Machado de Assis usava não só a história do nosso país como a mundial para contextualizar determinadas passagens. Em Dom Casmurro, há várias referências clássicas da história, que era um legado do romantismo para a produção da época. Conseguir transitar com desenvoltura na história era um sinônimo de maturidade. Isso não escapou a Machado. No entanto, ele não fez propriamente um romance histórico ou cientificista, como alguns de seus contemporâneos. Ele usava a história sem cair no “historicismo”.

 Camila Grinsztejn

P: - O Rio de Janeiro também se fez personagem na obra de Machado, que contém, inclusive, referências biográficas. Como podemos perceber a relação do escritor com a cidade?

RO: Ele era um homem de poucas viagens, só as fez dentro do próprio estado do Rio: viajou apenas para Friburgo e Petrópolis. Mas falou sobre sua cidade e seu cotidiano não só na crônica, o que seria natural, mas em toda sua obra. Até ouso dizer que no nome escolhido para a sua heroína mais famosa, Capitu, de Dom Casmurro, há não só “cabeça” – “caput”, no latim -, como também “capital”. Para mim, Capitolina não é apenas a cabeça daquele casal [Bento e Capitu], mas também a personificação da República, que é concebida como uma personagem feminina, a Marianne [da Revolução Francesa]. Capitu parece ser uma imagem da capital, essa imagem sedutora, liberal e progressista do novo regime. Chiquinha Gonzaga, Ana de Assis [esposa de Euclides da Cunha] e, por que não, Capitu são representações da mulher republicana, que traz certa independência e erotismo social. O Rio também está presente no episódio da morte de Escobar, o melhor amigo de Bentinho, que acontece na praia da Glória. Ele morre afogado, uma “ressaca” o puxa para dentro do mar. Aliás, se houve traição nessa história, a grande dica de Machado está no paralelo entre a definição dos olhos de Capitu – “olhos de ressaca que arrastam para dentro” – e a circunstância da morte do possível amante. A personagem mesma é definida – “olhos de cigana, oblíqua e dissimulada” – em meio ao Passeio Público. Nesse romance em particular, que é de passagem do século, Machado usa bastante a geografia da capital federal. Em crônicas, ele até profetiza a construção de uma ponte entre o Rio e Niterói. Se eu posso dizer que Capitu é Rio de Janeiro, Machado de Assis é também Rio de Janeiro. Ele era um escritor cosmopolita, que recebia influências e as misturava num “caldeirão de bruxo”.

P: Pelo menos até a década de 1880, Machado sempre escreveu sobre mulheres e para mulheres. Até que ponto ele refletiu em sua obra a realidade feminina da época? No conjunto de seus escritos, como podemos avaliar sua própria visão da mulher?

RO: Sem dúvida, assim como hoje existe um público de novela feminino muito importante, naquela época o público de folhetim era formado por mulheres, que, por meio dessa literatura, tinham seu momento de evasão. Gustaf Flaubert, por meio de Madame Bovary, fazia a catarse daquela mulher certinha do século XIX. É como se Madame Bovary se entregasse ao amor em nome de todas as suas leitoras. As mulheres também encontram na obra de Machado uma espécie de “romance rosa”. Não que ele fizesse esse gênero diretamente, mas tinha atenção para com esse público. Machado não chegou a ser propriamente um “Don Juan”. Ele era gago, epiléptico, mulato, canhoto, pobre, de origem favelada – nasceu no Morro da Conceição. Isso não dava a ele um perfil de símbolo sexual. Ele também não era aquele poeta que brilhava nos salões, então a sua relação com o sexo oposto não era muito fértil. Ele se casou com uma mulher que veio, digamos, desonrada de Portugal e se tornou uma parceira formidável na atividade intelectual. Ela [Carolina Xavier] era uma mulher de conhecimento, com quem ele dialogava de igual para igual e que se tornou sua redatora quando ele tinha problemas de saúde que o impediam de escrever, como a perda temporária da visão. Machado teve uma fabulosa vida de cumplicidade intelectual e amorosa com ela, apesar de não terem tido filhos. Machado de Assis foi um estudioso da alma humana, incluindo aí a alma feminina. As amantes, as donas de casa, as alcoviteiras, as cartomantes, as viúvas machadianas que Nelson Rodrigues tanto admirava são muito bem compostas como personagens.

 Camila Grinsztejn

P: A obra machadiana também apresenta um olhar sutil – especialidade do escritor – sobre política e economia. Embora visto por muitos como um homem alheio a esses temas, Machado os discute em vários textos, como no romance Esaú e Jacó. É possível perceber sua própria posição política por meio de sua obra?

RO: Sim, Machado não aderiu de maneira explícita à República, já que era um alto funcionário do Império. Não era indispensável, no entanto, que ele pedisse demissão para ser considerado simpático à República. A sua posição simplesmente o deixava mais à vontade para ironizar tanto um quanto outro regime. Ele faz isso, por exemplo, quando cria em um de seus romances um episódio em que, durante a transição de regime, o dono de uma confeitaria no Catete refazia a placa de sua loja e não sabia se mantinha o nome “Confeitaria do Império” ou se trocava para “Confeitaria da República”, já que ainda havia a possibilidade de o Império voltar. Então, alguém lhe sugere o nome “Confeitaria do governo”. Essa brincadeira de Machado mostra bem que, mesmo entre aqueles adeptos ostensivos da República, havia muito oportunismo. Ele jamais teria uma visão cega desse ou daquele regime. Machado consegue ver a alma humana como uma alma suscetível a levar vantagem de acordo com as circunstâncias. Até por não se assumir como republicano, monarquista, abolicionista ou conservador, Machado se permitiu vários lugares. Não podemos reduzí-lo a um rótulo.

P: Ao criar novas formas de narrativa e de narrador, que muda de figura e de voz a cada frase, ou que muda de gênero literário – do romântico para o realista, do histórico para o poético –, Machado também criou um novo tipo de leitor?

RO: Sim, ele criou um interlocutor na figura do leitor, o que é uma novidade para a época. O leitor é alçado à condição de coautor do texto, na medida em que Machado exigia uma nova postura, a menos que o leitor quisesse se enquadrar na condição de leitor ingênuo, bobo. Como ele dizia, “se há um defeito neste livro, o defeito és tu, leitor”. Drummond, muito mais tarde, dirá: “Se você não gostou do meu verso, foi o seu ouvido que entortou”. Machado, numa atitude moderna, inaugurou a ideia de leitor ativo. Isso é uma conquista. Ou você aceitava esse não-lugar do leitor do século XIX e levava um peteleco a todo momento, ou você se tornava cúmplice de Machado e partia para a aventura da composição do texto como uma obra de mão dupla. Ao instituir um lugar para o leitor, ele criou um lugar permanente, por isso há uma combinatória infinita de significações em sua obra, que é incansavelmente vista e revista.

 

Veja adaptações de obras de Machado de Assis produzidas pela PUC-Rio:

Parceria entre a PUC-Rio e o Globo Universidade, um filme baseado no conto Noites de Almirante foi exibido no Canal Futura e no Estação Vivo Gávea. Clique aqui para assistir ao curta.

O conto Missa do Galo foi adaptado por estudantes de Comunicação Social. Para assistir, clique aqui.