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Rio de Janeiro, 18 de abril de 2024


Cultura

"Saramago via as coisas com um olhar nítido"

Juliana Oliveto e Luísa Sandes - Do Portal

18/06/2010

 Arquivo Pessoal

"Devo agradecer a Deus por ter conhecido Saramago, por ter usufruido de uma proximidade, pela qual descobrimos que éramos dois grandes amigos" - afirmou, emocionada, Cleonice Berardinelli, professora da PUC-Rio, especialista em literatura portuguesa, que ocupa a cadeira número oito da Academia Brasileira de Letras. A declaração foi feita ao fim da entrevista que dona Cleo, como é conhecida, concedeu ao Portal PUC-Rio Digital a respeito da morte de José Saramago.

O escritor português, que estava doente há algum tempo, tinha 87 anos e morreu por falência múltipla dos órgãos na manhã de sexta-feira (18/06), em sua casa nas Ilhas Canárias. Na entrevista, Cleonice presta homenagem ao autor e amigo e comenta sua vida e obra. Para ela, a maneira com que Saramago escrevia convida o leitor a participar da história. Além disso, a imortal ressaltou a importância das mulheres na obra do único escritor de língua portuguesa que ganhou o prêmio Nobel de Literatura, em 1998, e seu ímpeto de mudança e transformação social.

Portal PUC-Rio Digital: Para a senhora, quem foi José Saramago?

Cleonice Berardinelli: José Saramago para mim, talvez seja, em primeiro lugar, um grande amigo que estou perdendo. Era uma pessoa que me privilegiava com afeto, simpatia, com tudo de bom que possa se esperar de um amigo. Inclusive sabia dizer essas coisas como um grande escritor que é. Não digo que "foi", porque é e sempre será um grande escritor da língua portuguesa.

P: Qual o legado que Saramago deixa? Como a senhora define a obra de Saramago?

CB: Um autor da maior importância pela sua criatividade, pela sua capacidade de inventar histórias e criar personagens dentro delas. É um homem que dominava a língua com uma elegância extraordinária, com invenções como a de escrever quase sem pontuações, obrigando o leitor a participar da feitura da obra. Isso exige um leitor bastante inteligente. Tenho visto várias pessoas, as quais recomendei ler livros de Saramago, me dizerem que não entenderam nada. Essas pessoas não têm a capacidade de participar desta obra de criação com adesão total.

P: Então a maneira de Saramago escrever, sem usar pontos finais e travessões nas falas, não é apenas um recurso estilístico? O autor tinha alguma outra intenção ao fazer isso?

CB: Nós conversamos tantas vezes, mas nunca fiz essa pergunta a ele, poderia ter feito. Acredito que ele tinha uma intenção, não é apenas um recurso estilístico. Não pôr pontos nem travessões era nos deixar uma parte da responsabilidade da criação do seu texto. Fazer com que nós, leitores, não sejamos apenas passivos e receptores de uma mensagem. Nós participamos da feitura, mas não sei se essa resposta seria a dele.

P: Qual aspecto da obra de Saramago que mais a fascina?

CB: Certa vez, quando almoçávamos juntos, Saramago me perguntou: “Afinal, o que a encanta mais na minha obra?”. Eu respondi que era a maneira como ele apresenta as mulheres, que são sempre as principais personagens. Em torno delas, a ação decorre e, muitas vezes, a protagonista conduz a ação, como é, por exemplo, o caso do grande romance Ensaio sobre a cegueira. Há um mundo de cegos com uma mulher que vê e conduz a história. Os livros se movem à razão das mulheres e em motivo delas.

P: A senhora consegue eleger alguma obra favorita, que tenha te marcado mais?

CB: Consigo sim, não uma, mas duas. Uma delas foi a primeira obra pela qual me apaixonei completamente, que foi Memorial do Convento, que é belíssimo, muito bem narrado, com uma visão política séria. Neste livro, há uma personagem lindíssima que se chama Blimunda e tem qualidades mágicas. Ela carrega um saco onde guarda todas as vontades dos homens e pode trocá-las, por exemplo. Ela se apaixona por Baltasar Sete-Sóis e eles têm um caso de amor muito bonito, narrado por Saramago com muita delicadeza. Ele era um autor capaz de se utilizar do erotismo sem nunca descer à vulgaridade. Outro livro dele pelo qual fiquei e continuo apaixonada é Todos os nomes. É um livro que, quando começa, parece ser de uma banalidade atroz, mas de repente tudo muda. A partir daí, começa a ser um romance aliciante. O personagem central ganha em dimensão, beleza e força. Há inclusive passagens de uma poeticidade extraordinária. Gosto de tal maneira que, quando cheguei à última página, virei o livro e recomecei a ler. Foi a única vez que isto me aconteceu.

P: Para Saramago, um escritor deveria interferir e participar do processo político, econômico e social no mundo. Falta atitude para a literatura hoje?

 Renato Parada

CB: Acho que não, pelo menos a literatura portuguesa atual é muito interessada nos problemas do homem no mundo. O Saramago era e fazia questão de se afirmar um comunista, marxista. Por isso, via o mundo com todos os defeitos de má distribuição, pobreza, diferenças sociais. Isso o preocupava e, muitas vezes, escrevia pensando nisso. Mas ele não escrevia apenas em torno disso. A obra dele é muito variada e extensa.

P: Saramago disse que só escrevia quando tinha algo a dizer, tanto é que chegou a ficar 20 anos sem fazê-lo. Fala-se demais hoje?

CB: Talvez. Nunca pensei sobre isso mais seriamente, mas acho que sim. Tem muita gente que escreve que poderia calar-se, porque não traz nada. Mas esses não são aqueles que chamamos de verdadeiros escritores.

P: De que forma a literatura de Saramago consegue provocar reflexão nos leitores?

CB: A própria escolha que ele faz do tema que vai tratar, a escolha do personagem que vai ser protagonista, o desenrolar da história, tudo isso é dirigido. Nada é gratuito. Cada coisa tem sua intenção. Ele sempre me provoca reflexão, que pode ir desde o prazer estético, porque escrevia muito bem, até o prazer utilitário de ler o livro como um protesto contra situações em que o mundo se encontra. Nisso, em suas últimas obras, não digo que ele tenha se afastado, mas não insiste com tanta força. Os dois últimos livros, A viagem do elefante e Caim são livros muitos originais, mas diferentes dos outros que escreveu ao longo da vida.

P: A biografia do autor escrita pelo jornalista João Marques Lopes revela que Saramago pensou em migrar para o Brasil na década de 1960. Além disso, o livro A viagem do elefante foi lançado aqui. Qual a importância do Brasil na vida e obra de Saramago?

CB: Ele era um amigo do Brasil, tinha uma quantidade imensa de amigos aqui e sempre demonstrava uma grande simpatia pelo Brasil. Ele tem uma obra um pouco autobiográfica que se chama Cadernos de Lanzarote. É uma espécie de diário em que cita encontros com amigos brasileiros do mundo da cultura, como Oscar Niemayer, Ana Miranda, eu, José Aparecido e Leonor, Vera Costa e Silva, entre outros. Ele nunca teria dito mal do Brasil na nossa presença, mas acredito que nunca tenha dito mal do Brasil para ninguém.

P: Em entrevista à revista Época, em 2005, José Saramago afirmou que não era pessimista, mas que na verdade o mundo era péssimo. Na opinião da senhora, o escritor era um pessimista?

CB: Acho que não, nunca senti isso nele. Ele foi um homem que via as coisas com um olhar bem nítido, com uma visão muito segura e, naturalmente, o mundo não anda assim tão bem para nós só vermos coisas positivas. Então, ele identificava as coisas negativas e as apontava, mas fazia isso como quem diz “isso pode melhorar, isso pode ter conserto”. Não era um pessimista que lamenta que tudo está errado e nada vai melhorar. Ele acreditava que o mundo poderia ser melhor.

P: Então pode-se dizer que a obra dele queria mudar o mundo?

CB: Acho que em grande parte, porque sendo uma crítica do que está errado, ele está pelo menos chamando a atenção para o que precisa melhorar. Ele era alguém que pensava que, se algo está realmente errado, está errado. Se está péssimo, está péssimo. Por outro lado, tinha sua irreligiosidade total, não acreditava em nada, não tinha fé, declarava que não há Deus. Nesse ponto eu fico com pena dele e lhe disse isso pessoalmente, na última vez que estivemos juntos na Academia Brasileira de Letras (ABL). Ele não era um angustiado porque não tinha fé, dava a impressão de que era uma constatação, "não há Deus, ponto final, não vou procurar o que não há".