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Rio de Janeiro, 23 de abril de 2024


Cultura

Saramago deixa legado crítico da "ficção a serviço do real"

Lais Botelho e Lucas Soares - Do Portal

18/06/2010

Divulgação

"'Em seu Diário, no dia 3 de Dezembro de 1935, escreveu Miguel Torga: “Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje...' Hoje, agora há pouco, neste dia 18 de junho de 2010, chega-me pelo telefone a notícia de que morreu Saramago. Não tenho pinheiros nem fragas para meter-me entre eles e ir chorar minha profunda tristeza, mas posso, pelo menos, dizer que estou chorando a morte do maior  ficcionista de Portugal, um dos meus mais queridos amigos..."

A tristeza da escritora Cleonice Berardinelli, integrante da Academia Brasileira de Letras e professora emérita da PUC-Rio, sintetiza a perda de um dos maiores nomes da literatura e do pensamento crítico no mundo. José Saramago morreu na sexta-feira (18/06), aos 87 anos, por falência múltipla dos órgãos, em sua casa nas Ilhas Canárias, região autônoma da Espanha. “Foi o maior golpe dos últimos tempos”, lamenta Cleonice.

“Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória”. A frase do escritor português, Nobel de Literatura em 1998 (o único em língua portuguesa), resume um pouco o legado do próprio autor. Para os colegas de letras, acadêmicos e fãs, Saramago deixa, principalmente, a eloquência do olhar crítico – disparado, por exemplo, contra os regimes totalitários –, a lucidez dos grandes pensadores e o prestígio amealhado pela língua portuguesa por meio de suas obras. 

Na visão do professor Júlio Diniz, diretor do Departamento de Letras da PUC-Rio, “o lugar de Saramago não será facilmente ocupado”. A perda, lembra ele, ultrapassa as fronteiras de Portugal e atinge "dimensões que vão além da comunidade dos países lusófonos":

– Atinge todos os amantes da boa literatura em qualquer idioma, uma vez que sua obra foi traduzida para vários idiomas. Ele [Saramago] era um apaixonado pela sua cultura. Perdemos um importante militante contra o fascismo e todos os regimes totalitaristas. 

Diniz lembra que a inovação proposta por Saramago não foi só política, mas "ao mesmo tempo formal". A literatura dele representou uma revolução na escrita. Além de narrar as histórias numa forma de prosa peculiar, ele escreveu “uma obra fictícia a serviço do real”.

– Não acredito numa literatura sem poder crítico, sem discutir a realidade. E a obra de Saramago era exatamente isso: arte com poder crítico.

Para o professor Sérgio Mota, doutor em estudos de Literatura, o que diferencia o escritor português é a coerência. No estilo, na forma, na estética, nos argumentos, tudo isso fez da obra de Saramago um diferencial na prosa em língua portuguesa:

– Ele transforma o que não parece ser matéria de romance em romance. Ele foi precursor de um estilo que mistura história e ficção e ainda não há ninguém com a mesma pegada dele – observa.

A inovação na escrita – empreendida, por exemplo, na ausência de parágrafos e na linguagem direta – representa para a professora de Literatura Mariana Custódio, mestra em Língua Portuguesa, uma tentativa de aproximação com o leitor. A oralidade característica do texto facilitaria a fruição da leitura. As críticas e reflexões, a coragem temática, ajustadas à escrita peculiar, tornaram-se determinantes à beleza da obra e ao reconhecimento internacional de José Saramago.

– Livros de temas mais árduos têm a escrita acompanhada dessa aridez. Outros com temas míticos, como  fábulas, têm sua linguagem mais suave. Além disso, os objetos que Saramago trazia para sua crítica, como o Evangelho segundo Jesus Cristo, representam a coragem de enfrentar temas que geralmente queremos deixar de lado.

Expoente da literatura mundial

Grande nome da literatura contemporânea, Saramago era um profissional polivalente. Foi escritor, argumentista, jornalista, dramaturgo, contista, romancista e poeta. Único vencedor de língua portuguesa do prêmio Nobel de Literatura (1998), o autor ficou conhecido pela forma autêntica de escrever em prosa ao utilizar frases e períodos compridos, usando a pontuação de uma maneira não convencional. Os diálogos das personagens eram inseridos nos próprios parágrafos que os antecedem, de forma que não existiam travessões.

O autor português ganhou, em 1995, o prêmio Camões – a mais importante condecoração da língua portuguesa. Entre as obras mais importantes estão Levantado do chão (1980), Ensaio sobre a cegueira (1995) e Caim (2009), última obra publicada.