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Rio de Janeiro, 27 de julho de 2024


Cultura

"MPB é uma abertura do Brasil a suas textualidades"

Luísa Sandes - Do Portal

25/05/2010

Fotos: Camila Grinsztejn

Chico Buarque, Bossa Nova, chorinho, samba, tropicalismo, Roberto Carlos, Maracatu. A diversidade da música brasileira remete a uma questão: o que define a MPB? Ela se limita aos cantores que surgiram e inovaram o cenário artístico das décadas de 1960, 70 e 80 ou abrange uma manifestação cultural que se renova?

Na quinta-feira, 27/05, das 15h às 17h, o Departamento de Letras da PUC-Rio promove o debate Música Popular Brasileira Hoje, junto com o Núcleo de Estudos em Literatura e Música (Nelim), grupo que desenvolve o diálogo e pesquisas sobre esses dois campos da cultura nacional. Entre os participantes do encontro, estão músicos como Alberto Rosenblit, André Carvalho, Leoni e Mú Carvalho, além do pesquisador do Nelim Miguel Jost, que será moderador do debate. Também fará parte do encontro o coordenador-geral do Nelim e diretor do Departamento de Letras da universidade, professor Júlio Diniz.

Para ele, a MPB é algo restrito, "uma experiência urbana com sofisticação em termos melódicos, harmônicos e nas letras", mas que representa as muitas identidades brasileiras. Diniz acredita na renovação desse movimento cultural iniciado nos anos 1960. De acordo com o professor, o país tem cantoras extraordinárias que, de certa maneira, aprenderam a fazer música ao escutarem os grandes artistas da era dos festivais.

Portal PUC-Rio Digital: O que define a MPB hoje? A MPB pode ser caracterizada como um estilo musical específico ou um movimento cultural mais abrangente?

Júlio Diniz: Classicamente, qualquer música feita há mais de cem anos no Brasil, seja de natureza rural ou principalmente de caráter urbano, pode ser chamada de Música Popular Brasileira, que é um termo genérico. Alguns tentaram chamar de Música Popular no Brasil e outros de Música Brasileira, mas o que ficou foi Música Popular Brasileira. Entretanto, acho essa nomeclatura equivocada, mas não dá mais para modificar esse quadro. Críticos e mídia resolveram criar a sigla MPB para toda música feita a partir dos anos 1960 que tivesse algumas características básicas, como uma participação ativa da classe média, um filtro intelectual mais apurado, uma multiplicidade de gênero e uma relação com a literatura muito forte. Toda a geração que conhecemos hoje de grandes músicos e compositores brasileiros, como Chico, Caetano, Gal, Elis, Bethânia, Djavan e Gil, pertence à MPB. Há uma pluralidade na música brasileira que vai de música gospel até rap, passando por uma onda pós-bossa nova e pós-tropicalista, incluindo samba e música eletrônica. Porém, a MPB é uma sigla muito restrita e que confunde muito. Quando nos remetemos estritamente aos anos 1960, estamos falando de MPB.

P: As diferenças regionais não somem no conceito de MPB?    

 JD: Para a música popular brasileira some, para a MPB, não. A MPB é restrita, é uma experiência urbana, de classe média e classe média alta. Há uma sofisticação em termos melódicos, harmônicos, nas letras e tem um momento histórico muito preciso, ligado aos festivais. Tem a ver com movimentos contraculturais e com uma resposta à ditadura militar. É uma abertura do Brasil a suas musicalidades e textualidades.

P: Qual é, na sua opinião, a contribuição da MPB para a cultura brasileira?

JD: Tudo de bom. Muito do que a gente tem de melhor na cultura brasileira, não só na música, tem a ver com a MPB e com os filhos da Bossa Nova. A Bossa Nova tem um marco muito forte,  uma força solar afirmativa e vital, é extraordinariamente poderosa. Nos anos 1960, todo mundo é herdeiro da Bossa Nova, desde o tropicalismo até a Jovem Guarda e a canção de protesto, que mesmo sendo contra o aspecto solar da Bossa Nova e possuindo um aspecto muito lunar, por conta da ditadura militar, tem a referência da sofisticação da Bossa Nova.  

P: Então a MPB remete apenas a uma época passada, quando surgiram grandes nomes como Caetano, Gil e Chico.    

JD: Com certeza. Porém, acho que existem continuadores dessa tradição dentro de um clima MPB. Tem a Gadu, a Marisa Monte, Adriana Calcanhoto, Roberta Sá e tantas outras. Foi ouvindo essas vacas sagradas, como Gil, Caetano, Bethânia, e mais tarde a geração de Djavan e Edu Lobo, que essas vozes e compositores aprenderam, de certa maneira, a fazer música.

P: Não há um problema de renovação?

JD: Há poucos cantores homens que cantem e não sejam só compositores, mas as cantoras são incríveis, há uma explosão delas. Os meninos dos Los Hermanos também são muito talentosos. A geração do rock foi e ainda é ótima. Claro que perdeu potência, Renato Russo e Cazuza morreram, Arnaldo Antunes se separou dos Titãs, os Paralamas voltaram sem aquela força. Mas tem bastante gente boa, não acho que haja um problema de renovação. O mundo que é diferente, não dá para comparar. Na época de Graciliano Ramos, perguntaram se não ia aparecer um escritor como ele, quando apareceu Guimarães Rosa e, depois, Rubem Fonseca. Havia o mesmo questionamento em relação a Camões e depois veio Fernando Pessoa. Os novos não são melhores, mas diferentes. 

P: Até que ponto os grandes artistas da MPB podem ser considerados populares?  

JD: De uma certa maneira, a MPB atinge todo mundo. Quando Antônio Carlos Jobim, com ouvido apuradíssimo, ouvinte do jazz e da música erudita, faz uma música chamada Querida, que foi tema da abertura da novela de Gilberto Braga, O dono do mundo, todo mundo cantava a música do Tom. A Bossa Nova também voltou nas novelas de Manoel Carlos e o público canta. Uma outra novela das oito abria com Bethânia cantando Caymmi. Essa questão do popular é muito complicada em uma cultura de massa. Claro que a MPB, a Bossa Nova, um samba mais apurado e um reggae mais sofisticado, tudo que tem qualidade e é criativo, precisa de um público específico. É complicado alguém que está acostumado a ouvir Kelly Key e Latino, passar a gostar de Tom Jobim e João Gilberto.  

P: A MPB é uma forma de identidade nacional?

JD: Eu não acredito em identidade nacional, mas em uma forma de você potencializar as múltiplas identidades no Brasil. É claro que a MPB diz respeito às cidades brasileiras e à situação política brasileira e que tem a ver com um Brasil profundo, com nossos impasses e dilemas, máscaras constantes que usamos e tiramos para reafirmar determinados postulados de uma cultura completamente plural, híbrida e misturada. Mas não apenas uma identidade. Eu não sou um, você não é uma, ninguém é um. Somos muitos. Como diz Mário de Andrade, somos 300. E eu acho que a MPB potencializa isso.  

P: Enquanto nos anos 1960, 70 e 80 os jovens eram os maiores fãs da MPB, hoje as rádios jovens quase não tocam MPB, o gosto pelo estilo parece ter se tornado um comportamento alternativo entre eles. O que você acha disso? Por que o interesse dos jovens pela MPB diminuiu ao longo do tempo?

JD: Por causa do mercado. Eu vejo meus filhos, que começaram a ouvir muita porcaria e coisa enlatada da TV e do rádio, e hoje se sofisticaram. Estão ouvindo e assistindo a outras coisas. Então eu acho que é um processo. Não posso querer que alguém com 13, 14, 15 anos, que tem um contato direto com comunidades periféricas e com o funk, pare para escutar uma canção do Chico que seja difícil como Morro dois irmãos e Futuros amantes.

P: Você define músicos “mulatos” como aqueles que, como Caetano, transitam e mesclam diferentes ritmos e ousam ao não se limitarem a um mesmo estereotipo. Na sua opinião, que outros músicos podem ser considerados “mulatos”? Qual a contribuição deles para a MPB?

JD: "Mulato" aqui nada tem a ver com etnia ou aspectos raciais. Essa é uma discussão pós-racial. Mulato para mim é uma categoria que não é síntese do branco e do negro, que não é uma mistura harmônica e equilibrada e que na verdade não vai enfatizar, ratificar ou confirmar um aspecto da cordialidade brasileira. Mulato não tem nada a ver com isso, nem é um termo pejorativo, apesar da etimologia. Acho que temos que desideologizar a palavra "mulato" e entender que o termo não está ligado a um aspecto de mula, macaco ou escravo, temos que repensar essa conceito. Mulato para mim é esse lugar autoral, nômade, à deriva, errante, sem definição fechada, sem uma nacionalidade definida, sem um lugar de origem. Mulato é o lugar da rasura, da invenção. Por isso eu acho que o Caetano é tão esse "lugar mulato" dentro da música brasileira. Como Zé Celso é esse "lugar mulato" do teatro e Hélio Oiticica é esse "lugar mulato" das artes plásticas. Glauber também era esse "lugar mulato". Acho que existe uma coisa delirante nesse lugar que é muito interessante.

 P: O tropicalismo propiciou à música brasileira se sintonizar com vanguardas de outros países, tornando-a mais dinâmica e com uma estética mais transitória. Em que aspectos a influência tropicalista pode ser notada na MPB hoje? De que maneira a MPB incorpora outras vertentes artísticas na atualidade?

JD: Eu acho que o tropicalismo ficou para trás. Foi importantíssimo, fundamental, mas acabou. O Tom Zé é um pós-tropicalista, não abre mão do tropicalismo, mas também não vive da nostalgia desse movimento. O tropicalismo incorporou muita coisa, como a guitarra, a música latinoamericana, o rock internacional, do bolero aos Beatles e Rolling Stones. Foi da Bahia a Londres, da cultura de massa às referências eruditas. Uma grande parte da cultura contemporânea tem a ver com esse mix, seja de gênero, ritmo ou lugar cultural. Cada vez mais existe a estética da apropriação, que, diferente do que muitas pessoas pensam, tem critérios. Esse processo dentro da cultura brasileira continua.