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Rio de Janeiro, 16 de abril de 2024


Campus

Nazaré, a ‘mama-África’

Isabel Rocha de Siqueira - Da sala de aula

08/01/2008

“Os outros países dizem que o Brasil é ‘Terceiro mundo’ e até vocês se vêem assim, mas nós africanos, não. Sempre admiramos o Brasil. Para nós, o Brasil era ‘Primeiro Mundo Mundo’”. Matumona Nguizani tem motivos para conjugar o verbo no passado. Congolês de 46 anos, ele vive no Brasil desde 1994, para onde veio com a ajuda de Dona Maria de Nazaré Freitas, de 78 anos, funcionária do Departamento de Admissão e Registro (DAR) da PUC-Rio. E só com a ajuda dela.
Nas horas vagas, Nazaré é anjo-da-guarda e mãe adotiva de estudantes que vêm de muito longe e deixaram tudo para trás. Ela é um símbolo vivo da forte relação entre a história e a cultura brasileiras e a África, por mais que muitas vezes nos esqueçamos de que essa ligação existe ou do quanto ela é intensa. Matumona Nguizani e Mpasi Lutete, de 40 anos, nasceram no Congo, mas desde 1994 e 1993, respectivamente, vivem no Rio de Janeiro, para onde fugiram da guerra civil em seu país. Matumona era professor de Psicologia e Mpasi, formado em Pedagogia e cursando História, dava aulas para crianças. Ambos lutaram pela democracia ao lado de muitos estudantes e acabaram tendo que abandonar casa e família.
Da vida acadêmica pouco restou, porque, chegando aqui, sem dinheiro e sem apoio do Governo ou de organizações sociais, eles agora lutam sozinhos por emprego. Não há tempo para estudar, mesmo que consigam uma vaga em um curso. Aí entrou Nazaré. Ela ficou sabendo de suas histórias e decidiu ajudá-los com o que tinha e o que não tinha: divide com eles o dinheiro do almoço e da passagem, ajuda a pagar casa e providencia documentos. Eles a chamam de “mãe” e reclamam da falta de apoio e da desinformação no Brasil.
“Quando chegamos aqui, muita gente se assustava, achava que, na África, vivíamos com leões. Nós estudamos tudo sobre o Brasil na escola de lá, geoeconomia e história, e conhecemos os jogadores de futebol brasileiros muito antes de virmos para cá, mas o brasileiro não sabe nada da África. A África foi o berço da civilização, tem uma história linda, mas no Brasil, quase não se fala da cultura africana”, critica Matumona.
Para o jornalista Alexandre Santos, professor de Relações Internacionais da PUC-Rio, a mídia ainda mostra pouco da África e, quando fala do continente, deixa de lado o contexto e as raízes dos acontecimentos africanos. Enquanto hoje já se reconhece que grande parte do que nós, brasileiros, somos, é uma herança dos africanos, pouco sabemos deles. “Há muita desinformação. É preciso conhecer os costumes africanos puros. Quantos brasileiros sabiam sobre o casamento africano, por exemplo, até que a Regina Casé mostrou a cerimônia no programa dela (Central da Periferia)?”, questiona Matumona. Para ele e Mpasi, é preciso haver mais iniciativas como essa.
O Brasil deve à África muito de sua música, de suas religiões, de sua comida e de seu jeito de ser. Talvez a semelhança mais óbvia entre os dois povos seja justamente essa maneira de ver a vida com alegria e otimismo, recebendo bem e generosamente. Sempre que perguntado sobre sua opinião acerca de algum fato, Matumona não a coloca diretamente: começa com “vou te contar uma história”. Os africanos gostam de se socializar, gostam de se aproximar do outro, o que é conseguido, muitas vezes, através de relatos. Eles, como os brasileiros, são grandes contadores de histórias. Falar é muito importante em ambas as culturas. Na africana, a voz é considerada o bem mais precioso, explica Alexandre.
Todas essas semelhanças são enxergadas pelos africanos, mas eles se queixam de que os brasileiros não têm essa visão. Mpasi e Matumona fizeram vários cursos, mas nenhum deles consegue emprego, só trabalhos informais. Eles querem voltar a estudar, adoram ler e querem fazer parte de novo do mundo acadêmico, o que a Nazaré está sempre tentando conseguir. Sem ajuda oficial, eles agora estão buscando o apoio da PUC-Rio para ter uma oportunidade de retomar pelo menos parte de suas vidas. O vice-reitor Augusto Sampaio está tentando providenciar bolsas para eles nos cursos da Coordenação Central de Extensão (CCE) e no Rio Datacentro (RDC).
Para Mpasi, a implementação do ensino obrigatório de História e Cultura da África pode e deve ser utilizado para que o Brasil conheça mais do continente africano, de suas tradições, de sua cultura geral, passada e presente. A lei 10.639 foi aprovada em 2003, mas ainda não foi aplicada de fato. Para Matumona, “é preciso estudar a África como ela era antes de ser destruída por guerras, porque a África esconde muitas histórias”.
Acostumados a estudar em colégios onde os professores eram considerados pais e se relacionavam com as famílias, Matumona e Mpasi amam o ambiente de aprendizado e lamentam que não tenham conseguido ainda uma oportunidade de estudo e trabalho aqui. Nazaré e a PUC-Rio continuam tentando ajudar, mas talvez a transformação passe pela educação dos próprios brasileiros, pelo (re)conhecimento de seu passado, de suas raízes.