A Campanha pela Memória e pela Verdade, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ), e a audiência da Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) marcada para os dias 20 e 21 de maio, na Costa Rica, reacendem a discussão sobre a abertura dos documentos da ditadura militar no país. Na corte da OEA, o Brasil será submetido a julgamento por não apurar o desaparecimento, a tortura e a morte de guerrilheiros no Araguaia na primeira metade dos anos 1970. O Estado brasileiro negou-se por mais de 30 anos a iniciar uma investigação criminal para esclarecer os fatos e determinar responsabilidades, amparando-se na Lei de Anistia, promulgada em 1979 pelo governo militar.
A OEA quer uma definição sobre a lei até o início do segundo semestre, antes das eleições presidenciais. O caso contra o Estado brasileiro foi aberto há um ano e os países membros da organização não escondem que esperam uma condenação, o que pressionaria o Brasil a punir os acusados de crimes cometidos durante a ditadura.
Para o professor de Direito Constitucional da PUC-Rio José Ribas Vieira, a abertura dos arquivos referentes ao Araguaia é um dos pontos mais “pungentes” desse debate.
– É necessário efetivarmos uma justiça reparadora no Brasil. Países como a África do Sul e a Argentina, na medida de suas limitações, já fizeram isso. No entanto, a legislação brasileira dificulta a abertura dos arquivos – afirma – O problema é que muitos desses documentos desapareceram e muitos são particulares.
De acordo com Ribas Vieira, o Supremo Tribunal Federal (STF) consagrou a noção de "auto-anistia", como se a sociedade brasileira inteira tivesse aceitado os termos da Lei, o que, segundo ele, não aconteceu. Por isso, essa discussão deve ser levada à corte da OEA.
– Mesmo que não se consiga resultados positivos, a mobilização social é importante para que não haja mais impunidade – completa Ribas Vieira.
O presidente da OAB-RJ, Wadih Damous, afirma ser importante que venha à tona tudo o que sirva para elucidar o desaparecimento de cerca de 150 cidadãos brasileiros.
– Se a OEA entender que a revisão da Lei de Anistia é importante para os direitos humanos, a OAB vai solicitar novamente a sua revisão.
Damous afirma que os desaparecidos políticos são o foco da campanha da OAB, mas também é muito importante que casos misteriosos como o da bomba na própria sede da instituição em 1980 sejam revelados. Até o momento, o abaixo-assinado da campanha conta com mais de 20 mil assinaturas.
– De 1968 até o fim da ditadura, a repressão passou a ser feita quase exclusivamente pelos militares. Apenas os arquivos das polícias políticas foram revelados, mas os das Forças Armadas, sobretudo os do Exército, ainda têm que aparecer – diz – Existe a possibilidade real de abertura desses documentos, no entanto é preciso cooperação da sociedade civil.
Para o ministro Paulo Vanucchi, da secretaria Especial de Direitos Humanos, a Comissão Nacional da Verdade tem "apenas objetivos humanitários", já que é direito dos familiares "saber o que aconteceu com os seus entes".
– Espero que as Forças Armadas entendam que a sociedade espera delas um posicionamento humanitário. Em tempos de democracia, o melhor para os militares é a separação entre o joio e o trigo, para que essa culpa não pese para sempre sobre a instituição – argumentou Vanucchi, na Aula Magna de Direito da PUC-Rio, proferida no último dia 13 de maio.
O diretor do Departamento de História da PUC-Rio, Luís Reznik (foto), coordenou o grupo organizador do acervo do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) em arquivo público do Estado. Segundo ele, poucos documentos foram jogados fora nos arquivos das polícias políticas que foram abertos. Por isso, ele acredita que o Estado tenha também guardado grande parte dos referentes às Forças Armadas.
– Toda documentação organizada pelo Estado deve ser do conhecimento dos cidadãos a ela referidos e também do conhecimento histórico. Não se pode silenciar o que foi crime de Estado, pois tudo o que as pessoas fazem enquanto funcionárias do governo é público – ressalta – Na verdade, estou mais preocupado com o reconhecimento dos fatos do que com a punição dos culpados. Não se deseja reconhecimento para prender os torturadores, mas sobretudo para a sociedade conhecer a sua história mais recente e, assim, refletirmos sobre o que nós somos.
Para ele, a abertura dos arquivos pode ser importante para esclarecer episódios como a morte de Juscelino Kubitschek, o atentado ao Riocentro, a Operação Condor. Segundo ele, à medida que a importância do direito à informação para a cidadania é reforçada, a possibilidade de abertura geral dos arquivos se torna real.
– Em ano eleitoral, a abertura dos arquivos é conflitante com a agenda social do governo. Mas, espero que, a partir do próximo ano, o Congresso seja capaz de discutir bem essa questão – diz Reznik.
É preciso desburocratizar o acesso aos documentos que já são públicos, dizem especialistas
No Arquivo Nacional, há cerca de 16,5 milhões de páginas de textos sobre o regime militar, distribuídos em 43 fundos documentais – que reúnem documentos produzidos ou acumulados por um mesmo órgão. Os que procuram informações sobre familiares em meio aos documentos das polícias políticas têm os arquivos reproduzidos integralmente. No entanto, para pesquisadores acadêmicos e jornalistas, a reprodução é controlada. O acesso de jornalistas é sempre mediado por agentes públicos. Às vezes, é preciso autorização de alguns órgãos e ministérios, e, se for documentação pessoal, é necessário ter autorização da pessoa pesquisada.
O tema foi discutido no seminário Arquivos da Ditadura e Democracia: a questão do acesso, na sede do Arquivo Nacional no Rio de Janeiro, no dia 11 de maio. De acordo com o historiador americano James Green, por exemplo, que participou dos debates no Arquivo Nacional, mesmo nos Estados Unidos há uma certa dificuldade no acesso a documentos brasileiros considerados confidenciais. Ele afirma que algumas experiências pelas quais passou comprovam o quão absurdo pode ser esse tipo de sigilo:
– Pesquisando numa biblioteca americana sobre o governo de João Goulart, encontrei um documento com duas linhas censuradas. Mas, pouco tempo depois, encontrei o mesmo documento sem censura, o que prova que os arquivos públicos americanos também não são tão organizados assim. O que estava escrito era que, quando viajava ao exterior, a esposa de Jango, Maria Tereza, não gostava de falar em inglês e só queria fazer compras. O fato de não podermos ter acesso a essa informação porque alguém entendeu que poderia manchar a honra dela é ridículo – contou Green.
Segundo o vice-presidente da Comissão de Altos Estudos do Memórias Reveladas (Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil, da Casa Civil), Carlos Fico, o Brasil é o país da América Latina que possui o maior acervo da época da ditadura. Para ele, deve-se lutar por um mecanismo único e não-restritivo de acesso aos documentos dessa época. Ele acredita ser “imoral” fazer distinção entre cidadão, pesquisador e jornalista.
– Isso tudo é um delírio burocrático – disparou Fico – Se o governo da República já passou esses documentos para o arquivo público, os gestores desses acervos não podem ser mais burocráticos que o próprio governo.
Para ele, não se pode restringir o conhecimento desse tipo de informação por causa de questões como intimidade e honra. Quanto a isso, ele afirma que existe uma insegurança meramente administrativa, tanto é que os critérios de restrição mudam de acordo com o gestor do arquivo.
– Não compete aos arquivos públicos decidir que documentos podem ou não ter um mau uso. A responsabilidade é somente dos usuários – disse.
Paulo Knauss (foto), diretor do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, concorda que é preciso unificar o modo de acesso aos arquivos públicos do país. Ele afirma que estamos diante de um novo horizonte: a desclassificação geral dos documentos, que está prevista na emenda da Lei de Acesso à Informação. Porém, até que isso aconteça, as muitas “medidas de segurança” continuarão a ser tomadas.
– Nenhum arquivo público tem a intenção de constranger nem os pesquisadores nem os cidadãos comuns. O objetivo é dar mais conforto e segurança, mas ainda não conseguimos lidar bem com a regulamentação. Se existe insegurança da legislação em revelar assuntos do Estado, há ainda mais em relação à intimidade das pessoas. A grande questão é a do controle da divulgação da intimidade, inclusive em órgãos como o Instituto Médico Legal (IML) – afirma Knauss.
No entanto, o diretor geral do Arquivo Nacional, Jaime Antunes, confessa que a defesa da intimidade é, muitas vezes, um pretexto para dificultar o acesso a vários documentos.
– Se conseguirmos desburocratizar o acesso, e, ao mesmo tempo, resguardar as instituições, será a situação ideal – afirma.
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