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Rio de Janeiro, 20 de abril de 2024


Cultura

O Garrincha da arquitetura

Marcelo Chagas, Rafael Cavalieri e Luiza Cavalcanti - Da sala de aula

20/12/2007

Existem alguns paradigmas que ainda estão longe de ser quebrados. Um deles tem relação com Oscar Niemeyer. Prestes a completar 100 anos, ele é objeto de estudo de grande parte das pessoas que trabalham com arquitetura e dificilmente vai deixar de ser um referencial para os profissionais e estudantes dessa área. O arquiteto e coordenador acadêmico do Curso de Arquitetura da PUC-Rio, Otávio Leonídio, mesmo sendo um estudioso de Lúcio Costa – outro grande nome da arquitetura brasileira – conhece muito sobre a história de Niemeyer. Isto se dá pelo fato de as trajetórias dos dois arquitetos estarem lado a lado, pois Niemeyer e Costa trabalharam juntos em vários momentos.


Em entrevista ao Traços de Niemeyer, Otávio relembra fatos que marcaram a carreira de Niemeyer, conta histórias curiosas como a de um arquiteto francês que ficou nervoso ao conhecê-lo, e a da pesquisa de opinião feita pelo jornal francês Le Monde que o apontou como um dos arquitetos mais populares da França. Além disso, faz uma inusitada comparação do arquiteto ao jogador de futebol Garrincha. Confira abaixo estes e mais trechos da entrevista com Otávio.


– Seu trabalho é fundamentalmente baseado na obra de Lúcio Costa. No entanto, você também tem conhecimentos sobre Niemeyer. Por que a trajetória de um leva à trajetória do outro?
– Meu trabalho sempre foi mais sobre Lúcio Costa. Minha tese de doutorado foi baseada no pensamento dele, mas pesquisá-lo leva naturalmente ao trabalho de Niemeyer. O pensamento de Lúcio, sua obra escrita, suas formulações conceituais, estão diretamente veiculadas ao trabalho de Niemeyer e vice-versa. A história da arquitetura brasileira no século XX, a partir da década de 30, tem os dois como protagonistas. Um é o projetista que se celebrizou, tornou-se popular. Mas se quem projetou foi Niemeyer, o grande formulador, o grande teórico foi Lúcio Costa. Quem quer que pesquise Niemeyer, vai ter de estudar Lúcio Costa. E quem trabalha as idéias do Lúcio tem de ter conhecimento mínimo da obra de Niemeyer, é quase natural. Escolhi Lúcio porque queria abordar o pensamento sobre a arquitetura brasileira, em especial as formulações de Lucio Costa. Assim, optei por estudar sua obra escrita, procurando identificar o que, aparentemente, estava em jogo quando ele escrevia, e como, no campo da arquitetura, conseguiu resolver questões estéticas que existiam no Brasil.


– E como começou essa relação profissional entre os dois?
– O Niemeyer se forma em 1934, e, salvo engano, seu primeiro local de trabalho foi o escritório de Lúcio Costa. Ele quis trabalhar com alguém que fosse decisivo para a nova arquitetura do Brasil, e escolheu Lucio Costa. Para tanto, trabalharia de graça. Portanto, já há aí uma associação direta com Costa, logo no começo da carreira de Niemeyer. Após a polêmica sobre quem projetaria o edifício do Ministério da Educação, em 1936, Lúcio foi convidado para a tarefa, e definiu a equipe que fez o projeto (um marco na nova arquitetura brasileira). Um dos componentes da equipe era Niemeyer.


– Seu estudo é baseado nas formulações teóricas de Lúcio Costa. Como foram essas formulações no caso de Niemeyer?
– O Lúcio se dedicou mais à produção teórica, apesar de ter obras que despertam interesse. Mas se compararmos teoria e prática, elas se tornam desiguais. Niemeyer é o oposto de Lúcio, pois sua obra não depende em nada das formulações que produz. Sua obra independe do discurso do arquiteto, é mais sofisticada do que seu discurso. O que não é absurdo, visto que as obras falam por si. Niemeyer, como muitos grande arquitetos, não tem obrigação de dar conta verbalmente da própria obra. Alguns arquitetos conseguem fazer isso, outros não. Ele é muito prolixo, gosta de muito de escrever. No entanto, seu texto não ajuda a compreender a obra. A grandiosidade da obra de Niemeyer vai muito além de sua capacidade de explicá-la.


– Hoje, Niemeyer é um dos arquitetos mais populares do mundo. A que fatores você atribui isso?
– Se existe um arquiteto popular, é Oscar Niemeyer. Na década de 1990, na França, o jornal Le Monde fez uma pesquisa sobre arquitetura, e Niemeyer ficou em terceiro ou quarto lugar entre os arquitetos mais conhecidos do público francês. Sempre achei curioso o fato de as pessoas, muitas vezes, atribuem a ele projetos que não são seus. Ele começa sua carreira na década de 30, e “estoura” nos anos 40 e 50. Em 1960, há a inauguração de Brasília. Nos anos 70 e 80, ele passa por um momento de popularidade mais baixa, devido à resistência das idéias pós-modernistas, que por definição eram anti-modernas. Mas ainda na década de 80, dá novo impulso à própria obra com o Sambódromo e os Cieps, que se tornaram muito populares. Hoje, há uma nova onda valorização de sua obra, na esteira da inauguração de obras como o Museu de Arte Contemporânea (MAC), em Niterói. O MAC é uma obra impressionante, com tamanha aceitação, que se tornou logotipo da cidade; mostra que sua capacidade criativa foi renovada. Por conta da idade, vira hoje quase unanimidade, objeto de admiração e reverência. Chega aos 100 anos com grande popularidade, mantendo-se como uma grande referência nacional e internacional.

– Niemeyer quase não teve relação com a vida acadêmica, tendo apenas lecionado durante cinco anos na Universidade de Brasília (UnB). Ao que você atribuiria essa relação distante de Niemeyer com a academia?
– Primeiramente, é preciso dizer que ele poderia ter tido uma produção teórica sem passar pela academia. Mas a academia perdeu muito com a ausência de Niemeyer e de Lucio Costa, pois eles ficaram ausentes do ensino de arquitetura do Rio de Janeiro. O Rio se ressente dessa ausência. Por isso, há uma lacuna na arquitetura do Rio. Enquanto isso, a arquitetura de São Paulo vai bem, entre outras razões, porque os principais arquitetos paulistas, como Joaquim Guedes e Paulo Mendes da Rocha, estão nas salas de aula da Faculdade de Arquitetura da USP.

– Na sua resenha ao livro de David Underwood sobre Niemeyer, fala que muitos críticos de sua obra a julgam muito escultórica. Qual a sua opinião em relação a esse julgamento, a essa liberdade de Niemeyer para criar e sua "rejeição" ao ângulo reto?
– Devemos nos lembrar que Niemeyer é um discípulo direto do arquiteto francês Le Corbusier. Niemeyer captou bem e de maneira rápida a maneira de projetar de Le Corbusier, muito ligada ao desenho rápido, feito à mão, o chamado croquis. Tanto que associamos muito a obra de Niemeyer a seus desenhos. Porém, ele está longe de ser um escultor. Na verdade, é um péssimo escultor: sua escultura sequer incorporara o espaço cubista; funciona no papel, como desenho, mas não funciona no espaço. É o oposto de sua arquitetura. O arquiteto Niemeyer entendeu com rapidez extraordinária o espaço moderno pós-cubista. A arquitetura moderna surge junto com a pesquisa espacial do cubismo, contrapondo-se à ordem espacial mais estática do clássico. Outro aspecto importante é o uso do concreto armado, que é muito especial em sua arquitetura, pois ele usa o concreto armado de uma maneira original, diferente do modo como outros mestres da arquitetura moderna faziam. Um exemplo disso é a Casa das Canoas, aqui no Rio de Janeiro. Em termos do uso do concreto, ninguém fez o que Niemeyer conseguiu fazer, e a Casa das Canoas é um exemplo disso. Parafraseando o Darcy Ribeiro, daqui a 300 anos, quando se souber muito pouco sobre o Brasil, ainda se falará sobre a Casa das Canoas.

– Como professor de História da Arquitetura, como Niemeyer é citado no curso?
– Dou atualmente um curso de História da Arquitetura, aqui na PUC, que abrange sobretudo a arquitetura do século XIX e do início do século XX. Conseqüentemente, termino falando um pouco de Niemeyer, já que a obra de Niemeyer surge já nos anos 30 e 40, quando o movimento moderno já havia se consolidado na Europa. O estudo da obra de Niemeyer é aprofundado em uma outra disciplina, específica sobre arquitetura brasileira. Mas falo, em meu curso, sobre a obra dele para tratar da defasagem mais ou menos generalizada da nossa produção cultural em relação ao resto do mundo. E para destacar como o caso da arquitetura é especial. No Brasil, por força do nacionalismo, estamos sempre correndo o risco de permanecer constantemente voltados para nós mesmos. O que só se agrava com o fato de que escrevemos numa língua pouco lida. Provoco os meus alunos chamando atenção para o fato de que, ao escolherem a arquitetura, eles escolheram uma profissão que, de algum modo, os põem em pé de igualdade com o resto do mundo. É algo extraordinário num país que celebrizou internacionalmente por meio do samba e do futebol...


– A que fatores credita o sucesso de Niemeyer fora da esfera brasileira?
– É impossível dissociar o sucesso dele da "ressaca" cultural do período pós-2a. Guerra na Europa. Após a 2a. guerra Mundial, a Europa passa por uma grande crise – a crise do próprio conceito de civilização. Nesse contexto, a Europa e os EUA olharam para essa arquitetura jovial, leve, um pouco descompromissada, que era a arquitetura brasileira, e viram que talvez nem tudo estivesse perdido, viram nessa arquitetura um alento. Num período de horror – da descoberta de campos de concentração, do holocausto, surge a possibilidade de olhar para o que estava acontecendo nesse país louco e exótico que era o Brasil. Então, surge um personagem como Niemeyer, que vira repositário dessa espécie de esperança "partida" na Europa. E, também, essa doce expressividade da arquitetura brasileira moderna, esse uso peculiar do concreto armado. Tudo isso seduziu os europeus e norte-americanos. Ainda hoje, arquitetos do mundo todo celebram Niemeyer, querem conhecê-lo, aproximar-se dele, beijar sua mão. Eu mesmo trouxe até ele, uma vez, um desses arquitetos, que era francês. Ele, ao chegar perto de Niemeyer, ficou nervoso, muito emocionado. Dito isso, é preciso reconhecer a extraordinária competência de Niemeyer para a auto-promoção, algo que aprendeu com Le Corbusier.


– O estilo arquitetônico de Niemeyer tem influência nos arquitetos de hoje?
– O que vou dizer agora é um dado curioso: Niemeyer nunca fez discípulos. Se olharmos os bons arquitetos de minha geração, boa parte descende da arquitetura paulista, do Villanova Artigas, do Paulo Mendes da Rocha, etc. No caso de Oscar Niemeyer, é flagrante como todos os arquitetos que tentaram ser como ele, fazer uma arquitetura à sua maneira, fracassaram, arruinaram suas carreiras. É uma arquitetura extraordinária, mas que não deixa seguidores. O que ele fez só ele faz.


– Poderíamos nesse sentido compará-lo com o Pelé?
– Nunca havia pensado nesse tipo de comparação, mas tenderia a compará-lo, não com o Pelé, mas como o Garrincha. Não consigo me lembrar de algum jogador que tenha conseguido jogar como o Garrincha, e imagino que quem tentou fazer isso também fracassou. O Pelé foi um grande jogador, mas seu futebol não possuía a beleza plástica peculiar e inconfundível do Garrincha. O Pelé era, também, um grande “trombador”. O Pelé não tinha, por exemplo, aquele jeito de driblar no limite do caricato, do patético, mas que, feito por ele, Garrincha, e só por ele, era sublime.



PERFIL DO ENTREVISTADO: Otávio Leonídio, nascido em 1965, é formado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Santa Úrsula (1994) e doutor em História pela PUC-Rio (2005), onde também é professor de Projeto e de História da Arquitetura. Ganhou cinco prêmios, sendo um deles o Prêmio Padrão USU de Excelência, da Santa Úrsula. Teve artigos e resenhas publicados em importantes periódicos sobre arquitetura, como o periódico Arquitextos. No início da década de 1990, morou na França, onde teve parte de sua formação profissional.

 

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