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Rio de Janeiro, 1 de maio de 2024


Cultura

'O carnaval é uma inversão do cotidiano'

Luísa Sandes e Yasmim Rosa - Do Portal

11/02/2010

Arquivo pessoal

O carnaval é uma das épocas do ano mais esperada por milhares de foliões. A alegria irreverente dos blocos que circulam pelas ruas da cidade e o espetáculo do desfile das escolas de samba atraem pessoas de todo o mundo e fazem do carnaval carioca uma das festas mais populares. Mas o carnaval do Rio nem sempre foi assim. De festa do entrudo, passando pelo estilo veneziano até as escolas de samba, o carnaval passou por algumas mudanças e, hoje, é conhecido por sua diversidade.

Para falar sobre o assunto, o Portal PUC-Rio Digital trouxe a professora do Departamento de Sociologia e Política Santuza Naves. Autora do livro O violão azul: modernismo e música popular, a professora coordena a área de Antropologia e ministra cursos ligados à Antropologia da Arte e à Antropologia da Música. Hoje, pesquisa sobre A música popular e sua crítica no Brasil e é uma das coordenadoras do Laboratório de Teorias da Cultura. Em entrevista, Santuza fala sobre as mudanças que o carnaval carioca sofreu ao longo do tempo e a volta de uma tradição que estava esquecida.

Portal PUC-Rio Digital: O carnaval carioca está se descaracterizando ao longo do tempo?

Santuza Naves: Não existe uma essência única do carnaval carioca. Ele está sempre mudando e já passou por várias fases. Os historiadores mostram que aquele carnaval do estilo veneziano de confete, serpentina e fantasias só teve início no final do século XIX. Antes disso, só existia a prática do entrudo, que era uma brincadeira antiquíssima, uma herança da época medieval. As pessoas atiravam bombinhas de água, chamadas de laranjinhas, umas nas outras o tempo todo. Mas no afã de tentar civilizar os brasileiros, as autoridades resolveram proibir essa prática e importaram o carnaval europeu, de Veneza, com confete, serpentina, perro e colombina. Só algumas décadas depois surgiram as escolas de samba. Então, isso mostra que o nosso carnaval passou por mudanças ao longo dos anos e este é um processo natural.

P: Então o carnaval que conhecemos hoje tem características recentes?

S: Quem acha que o carnaval do Rio sempre foi de escola de samba, não conhece a história. Esse carnaval que conhecemos hoje começou no final dos anos 1920. Então, em termos históricos, é muito recente. As escolas de samba foram criadas em alguns morros do Rio de Janeiro, como a Mangueira e o Estácio. De lá para cá, o carnaval das comunidades passou por uma série de transformações e, hoje em dia, a festa do Sambódromo virou um espetáculo grandioso. É uma nova forma de lidar com o carnaval.

 Mauro Pimentel P: E a tradição dos blocos de rua e das marchinhas? Ficou esquecida por algum tempo, não?

S: As marchinhas carnavalescas estão voltando agora. Todo mundo estava dizendo que elas tinham acabado, mas agora estão fazendo até concurso. A cidade também ficou muito tempo sem os blocos e até pouco tempo atrás não era muito comum. Pouquíssimos ainda circulavam. E agora eles estão reaparecendo e proliferando em vários lugares. Então, eu acho que é assim mesmo. Essas festas mudam o tempo todo e algumas retornam.

P: E por que o carnaval de rua voltou com força?

S: Porque o sambódromo virou um espetáculo. Ou você participa da escola e se torna atuante, ou você assiste de longe. Já o carnaval de rua é uma modalidade diferente. Têm as marchinhas carnavalescas e tudo envolve humor, típico do carnaval carioca dos anos 1920. A começar pelo nome dos blocos, que são absolutamente humorísticos. Suvaco de Cristo, por exemplo, é um nome incrível e atrai pela irreverência. Então, eu acho que houve a necessidade de retornar essa tradição, mas ao mesmo tempo de recriá-la e de adaptá-la para a nova geração.

P: A cultura carnavalesca é caracterizada pelas diversas formas de manifestações em diferentes estados: há o frevo, o maracatu, desfiles, blocos... Você acredita em uma fragmentação no carnaval brasileiro?

S: Não existe uma única cultura brasileira. O que existe são várias manifestações culturais, que, às vezes, têm muito em comum, ou não. Essas diferenças aparecem não só nas manifestações carnavalescas, mas também se revelam nas músicas, e nas manifestações artísticas de uma maneira geral, além do comportamento. Então, o carnaval permite mostrar essa diferença cultural que existe no Brasil. Em cada região acontece um carnaval diferente que, às vezes, se misturam e geram um novo tipo de festa.

 Mauro Pimentel P: E esse carnaval de rua do Rio de Janeiro sofre influência do carnaval da Bahia?

S: Eu acho que não. Esses blocos que estão retornando agora estão optando por voltar também com a tradição das marchinhas, que é uma tradição carioca. Eu acho que é diferente do carnaval da Bahia porque não segue aquela coisa de uma equipe de som, um trio elétrico e um bando de gente dançando aqueles ritmos da Bahia, que, aliás, prevaleceram no Rio por algum tempo. Acho que esse retorno dos blocos no modo mais tradicional segue um estilo próprio.

P: O que você acha de, hoje, as madrinhas de bateria das escolas de samba serem famosas?

S: Eu acho que isso está relacionado ao mundo pop, midiático. O que está acontecendo nas artes, por exemplo, é o que acontece no carnaval. Todo mundo sabe quem é um ator de TV, mas ninguém sabe quem é um ator de teatro. É o que acontece nas escolas de samba. As madrinhas de bateria se tornaram uma figura bem forte e que chamam atenção, o que é benéfico para as agremiações. Elas geralmente são modelos ou artistas de TV. Antigamente, quem participava do desfile eram as pessoas da comunidade. Não havia essa mistura. E hoje, isso é comum, o que já é uma mudança muito grande. Geralmente as posições de destaque são entregues a pessoas da mídia, para que a escola tenha mais visibilidade.

P: Você acredita, então, que há mais igualdade entre as classes sociais no carnaval?

S: Há uma certa igualdade, mas não é de forma plena. A gente percebe uma hierarquia nas escolas de samba, nos vários setores. Para determinadas funções, por exemplo, são chamadas pessoas de fora da comunidade, como é o caso das madrinhas de bateria. O status que esses cargos criaram acabou gerando certa separação social. Porém, da mesma forma que você tem gente da comunidade, você tem gente de fora e há, também, uma certa democracia por estarem todos defendendo uma mesma bandeira. No caso dos blocos de rua, essa mistura acontece com mais facilidade.

 Mauro Pimentel P: O fato de as fantasias estarem cada vez menores também é um recurso midiático?

S: Tirar a roupa nessa época do ano é uma coisa muito antiga. As pessoas desfilam com pouquíssimas roupas há muito tempo. Mas as fantasias são recursos das escolas de samba para chamar a atenção do público e é também um recurso midiático.

P: Para você, qual é o significado do carnaval?

S: É difícil dizer de uma maneira geral porque há uma infinidade de manifestações carnavalescas no Brasil. Em diversos lugares você tem manifestações diferentes. Historicamente tem uma diferença muito grande. Agora, existe toda uma narrativa de que o carnaval seria uma inversão do cotidiano. Então, você se permite fazer coisas nessa época do ano que não faria nos outros dias do ano. E essa inversão seria uma forma de deixar aflorar os sentimentos sem muita preocupação.