Projeto Comunicar
PUC-Rio

  • Facebook
  • Twitter
  • Instagram

Rio de Janeiro, 30 de abril de 2024


Mundo

Sessenta anos de comunismo no país das contradições

Luigi Ferrarese - Do Portal

17/12/2009

 Wiki Commons

Na China de hoje, pouco se pode reconhecer daquela que viu Mao Tsé-Tung alcançar o poder, em 1949. Sessenta anos após a Revolução Comunista, o mundo testemunha o surgimento acelerado, algo incontrolável, algo contraditório, de uma gigante capitalista erguida entre imensas metrópoles e tradições seculares. Às previsões superlativas (segunda maior economia do mundo até 2011, sucessora da coroa do comércio mundial), somam-se  discussões ideológicas impulsionadas pela expansão da política de abertura empreendida a partir de 1978. Como definir o modelo chinês? Como explicar o capitalismo agressivo no regaço socialista? Perguntas cujas respostas exijam talvez mais 60 anos. “Eu conheço uma série de acadêmicos que acreditam que o país é socialista até hoje. Eu, particularmente, não vejo base para isso”, observa a professora de Relações Internacionais da PUC-Rio Isabela Nogueira de Morais. Diante da complexidade chamada China, analistas apontam uma certeza: contradições e paradoxos mostram-se tão característicos quanto os olhos puxados.

O processo de integração ao modo de produção capitalista é frequentemente visto como um divisor de águas na história chinesa. As políticas liberalizantes implementadas por Deng Xiaoping a partir de 1978 marcam o início de um período em que o país apresentou taxa de crescimento anual médio próxima a impressionantes 10%. Desenvolvimento tão acentuado durante tantos anos consecutivos não encontra precedentes em outra nação, em outro momento. Limitar o triunfo chinês à era pós-maoísta, no entanto, seria um erro, esclarecem os especialistas. As mudanças estruturais que permitiram tal processo podem ser verificadas ainda no governo do Grande Timoneiro.

– Ele [Mao] lança uma base industrial que até então não existia, era absolutamente irrelevante. Ou seja, o processo de industrialização se dá ainda durante o comunismo. Então, a partir de 78, começam as reformas liberalizantes e a China, aos poucos, ingressa no sistema global – explica Isabela.

Para a professora, Mao Tsé-Tung foi o artífice de outras importantes transformações, que prepararam o terreno para o salto econômico internacional: a expulsão dos dominadores estrangeiros, de diferentes nacionalidades, que controlavam diversas áreas do país; a proibição do ópio; a expropriação de grandes proprietários de terras, que permitiu uma divisão igualitária; a reabertura de escolas, hospitais e fábricas.

A guinada econômica empreendida por Xiaoping trouxe a China para o centro das atenções comerciais, mas também para o centro do embate ideológico que opõe comunismo e capitalismo. Renato Rabelo, presidente do Partido Comunista do Brasil (PC do B), nega ter havido um desvio no caminho proposto por Mao Tsé-Tung. Para ele, não há contradição, pelo contrário:

– A China é um exemplo da vitória de um projeto nacional de caráter socializante que chegou ao poder em 1949, renovou-se em 1978 e constrói o que eles mesmos chamam de fase primária do socialismo. Adotou-se métodos capitalistas em parte da produção para o desenvolvimento das forças produtivas em um país que tinha uma economia muito atrasada. O socialismo em sua fase plena só é possível com uma base material altamente desenvolvida, sendo este o objetivo perseguido pelo Partido Comunista Chinês – argumenta. 

O avanço mais eloquente da empreitada chinesa é, para boa parte dos analistas e da comunidade internacional, a redução massiva das taxas de pobreza. O projeto implementado por Pequim tem rendido elogios da Organização das Nações Unidas (ONU). Em novembro, a diretora executiva do Programa Mundial de Alimentação, Josette Sheeran, ressaltou o caso chinês como "exemplo de que o problema da fome pode ser erradicado de uma geração para outra".

– Segundo o Banco Mundial – que com certeza não guarda simpatia em relação à causa socialista – cerca de 400 milhões de chineses foram retirados da linha da pobreza para a condição de consumidores. Este dado, por si só, já diz muita coisa, principalmente se percebermos que no mesmo período (1979-2005) a pobreza aumentou no mundo. Se tirarmos a China dos levantamentos sobre combate à pobreza, o mundo estaria em déficit de 200 milhões – analisa Rabelo.

As tintas do salto chinês incluem, no entanto, cores menos doces do que o rosa encontrado nos discursos de apoio econômico ou ideológico – como indica, por exemplo, a fatura climática resumida na etiqueta de país mais poluidor. Apesar dos resultados expressivos rapidamente conquistados, a guinada da China fundamentou-se de maneira gradual. A entrada de capital externo foi rigidamente controlada no início. Para se estabelecerem comercialmente na China, estrangeiros eram obrigados a constituírem parceria com empresa local. A companhia indicada era, na maior parte das vezes, estatal. A estratégia mostrou-se eficiente na absorção de tecnologias e conhecimentos que o país não detinha.

– Não é um modo de produção capitalista liberal ao extremo. Por exemplo, não tem livre fluxo de capitais. Há uma série de controles. Mas o fato de se ter uma série de controles ao capitalismo não significa que deixe de ser capitalismo. Existem modelos muito controlados, como a França, e modelos liberalizados, como os Estados Unidos. Isso não desqualifica o modo de produção – pondera Isabela.

Nos últimos cinco anos, a China liberou o investimento estrangeiro em quase todos os setores de sua economia. Não há mais exigência de que empresas tenham ao menos metade do controle acionário nas mãos de um parceiro local. Em 2005, a WEG S.A., líder latinoamericana na produção de motores elétricos, tornou-se a primeira companhia de investimento 100% brasileiro a se instalar no país. O empreendimento justifica-se pelos salários cerca de 30% mais baixos e como uma forma de estabelecer uma base no Extremo Oriente.

– As oportunidades para estrangeiros são enormes. A China, em sua história, sempre foi interessada em comércio. Pode-se observar o tipo de relação que mantém com outras nações desde a antiguidade até hoje – avalia Bernardo de Souza e Silva, de 23 anos, estudante da Universidade de Língua e Cultura de Pequim desde fevereiro.

Apesar da crescente presença estrangeira, a indústria nacional segue predominante. Correspondente da TV Globo em Pequim em 2007 e 2008, o jornalista Pedro Bassan credita parte das relativas dificuldades de penetração das empresas ocidentais à falta de proteção dos direitos autorais. Essa permissividade favorece o rápido surgimento de similares chineses aos produtos estrangeiros.

– É claro que existem marcas ocidentais que fazem sucesso na China e são objeto de adoração da chamada nova burguesia. Porém, essas marcas encontram na China resistências que não enfrentaram ao entrar em outros mercados. O consumidor chinês valoriza muito as marcas nacionais. O mercado automobilístico é um exemplo: há 39 marcas chinesas de automóveis, todas com uma fatia de mercado considerável. Outro exemplo é o McDonald's. Avança a passo de tartaruga e só a custo de grandes adaptações na receita dos sanduíches – compara Bassan.

A indústria chinesa ocupa uma posição central no mercado asiático. Metade de suas importações corresponde à aquisição de bens primários para produtos posteriormente vendidos às grandes economias, em especial Estados Unidos e Europa. O país ainda funciona como um mediador entre as periferias e o centro do mercado mundial. Na busca por reforçar a integração regional, foi firmado em 2002 um acordo entre China, Japão, Coreia do Sul e os dez integrantes da ASEAN (Associação das Nações do Sudeste Asiático). O documento prevê a criação, em 2010, de uma zona de livre comércio.

O estágio inicial da ASEAN+3 incluiria China, Japão, Coreia do Sul e os seis fundadores da ASEAN (Brunei, Cingapura, Filipinas, Indonésia, Malásia e Tailândia). Em 2015, passariam a integrar o bloco Camboja, Laos, Mianmar e Vietnã. Esse movimento corrobora uma tendência verificada nas últimas décadas. A participação da Ásia nas importações chinesas passou de meros 15% em 1980 para 41% em 1990. O índice (de 55% em 2003) continua a crescer. 


A necessidade de construir

Quando deixou Pequim em 1996, o aluno de Cinema da PUC-Rio Zhai Sichen já desfrutava da modernização chinesa. Assistir a seriados americanos e comer fast food faziam parte de sua rotina. Tinha 10 anos quando se mudou para o Brasil. Ele lembra o caráter nacionalista da educação que recebera na terra natal:

– Aprendia-se a língua, a cultura, coisas do cotidiano. Mas nada muito voltado para fora. Sempre textos sobre a história da China. Alguns especialmente sobre guerra, para glorificar o exército chinês.

Os pais de Sichen haviam se transferido para o Brasil seis anos antes. Em 1990, era ainda difícil precisar o potencial de crescimento chinês. Com o fim do Guerra Fria e a iminente derrocada da União Soviética, o destino era uma incógnita.

– Naquele tempo, a China não tinha a melhor perspectiva. Eram poucas oportunidades de trabalho, não representavam uma perspectiva de futuro. Surgiu uma oportunidade de trabalhar fora, eles vieram. Quem ficou lá nesse período acabou se beneficiandon com a abertura da economia. A geração dos meus pais enriqueceu, cultivou o crescimento – constata.

O retorno a Pequim em 2007 o fez confrontar-se com uma nova realidade, de altos prédios, viadutos e empreendimentos grandiosos. O jovem não foi capaz de reconhecer o bairro em que vivera a infância. Derrubar edificações antigas para instalar outras maiores tornou-se a principal atividade chinesa. Das doze maiores fortunas do país, oito pertencem a empresários do ramo da construção.

A China está atrás só dos Estados Unidos no número de bilionários: são 130. A razão para tamanha riqueza está centrada em um sistema altamente polarizante. Isabela define a economia local pelo princípio de que “o vencedor leva tudo”. Para cada vencedor há, no entanto, um número muito maior de perdedores. Um país que, à época de Mao Tsé-Tung, era um dos mais igualitários do mundo migrou para um patamar alarmante de concentração de renda.

– Ainda não está pior do que o Brasil, mas está chegando muito rápido perto desse nível, porque a nossa desigualdade está caindo. No ranking da desigualdade, a China já passou o México, por exemplo,  e países do Sudeste Asiático extremamente desiguais. Isso é preocupante, não só por questões humanísticas, éticas e de justiça social, mas por estabilidade social. E o Partido Comunista sabe disso – alerta Isabela.

O governo chinês tenta inverter, ou pelo menos conter,  esse processo, com programas públicos para beneficiar a população do interior, economicamente inferiorizada em relação à urbana. Foi instituído um sistema de saúde para os campesinos e abolida a taxa para as crianças frequentarem as escolas na zona rural. Também foi criado um seguro desemprego.

– O governo tem tentado corrigir a desigualdade, principalmente eliminando o grande nó da economia chinesa: a baixa taxa de consumo. Os chineses poupam muito, poupam demais, porque não têm um sistema de saúde gratuito e nem uma previdência social estatal que os garanta na velhice. Criando esses dois sistemas, o governo quer injetar recursos da própria população na economia, recursos estes que estão, muitas vezes, guardados literalmente debaixo do colchão – afirma Bassan.

O ritmo alucinante de crescimento gera distorções, mas Rabelo acredita que os percalços são naturais do processo. O mais importante, segundo ele, é tentar otimizar as benesses e minimizar os danos:

– O desenvolvimento é movido por contradições de variadas ordens, entre elas o problema da concentração de renda. O governo chinês tem enfrentado com seriedade este problema. Prova disso são os US$ 900 bilhões investidos nos últimos dez anos no interior do país. Trata-se da maior transferência territorial de renda da história. Esse tipo de intervenção só é possível pelo fato de não existir um sistema bancário privado no país – considera Rabelo.

Nem a especificidade da economia chinesa a permitiu atravessar incólume a crise financeira internacional. No ano passado, a variação do Produto Interno Bruto (PIB) ficou na faixa de 9,1%. O índice é fabuloso em comparação à retração verificada em diversas nações. No entanto, representou a quebra de uma sequência de cinco anos consecutivos com crescimento de dois dígitos. Isabela enxerga a conjuntura adversa como uma “bênção”:

– O impacto mais imediato da crise para a China foi sobre as exportações. Era preciso compensar de alguma forma a perda de mercado consumidor externo. A saída foi investir no mercado consumidor interno. Foram transferidos muitos recursos para as zonas rurais consumirem mais. Pela primeira vez em muito tempo, o PIB da região Oeste cresceu muito acima da média nacional. Isso é uma excelente notícia.

Ainda assim, a diminuição no ritmo de crescimento deve vir acompanhada de impactos negativos. O aumento na taxa de desemprego é o que mais preocupa. Se por um lado, por exemplo, os US$ 2 trilhões em reservas internacionais deixam a China em um patamar inimaginável até mesmo para os Estados Unidos, por outro o país apresenta alguns índices típicos de países médios, como o baixo PIB per capita. Segundo Isabela, esta dualidade reforça o ineditismo do caso chinês, em que uma economia tão grande na comparação internacional não pertence a um país plenamente desenvolvido:

– O fato de sermos brasileiros nos ajuda a entender, pois convivemos, por exemplo, com uma São Paulo próspera, moderna, e com regiões nordestinas extremamente atrasadas. A China é um pouco isso, só que mais radical: o avanço é ainda mais avançado do que o nosso e o atraso, ainda mais atrasado.