Projeto Comunicar
PUC-Rio

  • Facebook
  • Twitter
  • Instagram

Rio de Janeiro, 27 de julho de 2024


Mundo

Massacre reforça a urgência do olhar profundo para a África

Bruna Smith e Luigi Ferrarese - Do Portal

13/11/2009

 Angela Sevin/CC Attribution 2.0

O massacre de civis organizado pelo Exército da Guiné no dia 28 de setembro evidenciou o estado de desrespeito aos direitos humanos verificado em muitos países africanos –  e ignorado, em grande parte, pelos holofotes da mídia. Em um estádio de futebol na capital Conacri, militares dispararam contra a população desarmada. O saldo de 157 mortos e mais de 1.200 feridos em uma manifestação popular pela democracia indica que a fome e a aids não são os únicos problemas graves enfrentados no continente. Indica também a complexidade por trás das lutas de classes e da segregação racial, cuja compreensão exige, portanto, reflexões além das leituras maniqueístas. 

O Exército da Guiné esforçou-se em remover rapidamente os corpos, a fim de evitar uma contagem precisa e ocultar o extermínio. A ação estendeu-se pelos dias seguintes, com ataques menores contra a população. Mais um capítulo da sina africana de regimes despóticos, onde o poder dos mais ricos e influentes prevalece.

Segundo o coordenador de organização do Movimento Negro Unificado do Brasil (MNU), Reginaldo Bispo, o problema enfrentado pela África "não passa por uma questão racial", mas por um conflito de classes:

–  Na época da colonização, os europeus dividiram a África em etnias. O conflito entre elas, instigado pelas elites que não querem abrir mão do poder, permanece até hoje. Nós, do movimento negro brasileiro, condenamos esse tipo de conduta que envolve violência e opressão. Todas as manifestações populares são legítimas. Não se pode excluir o povo da participação da construção de uma democracia.

O ministro da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Edson Santos, reforça a necessidade de democratização do continente africano, para que episódios como o recente massacre na Guiné não se repitam.

– O que acontece na África é uma falta de estrutura política, jurídica e econômica. É preciso que se torne um ambiente democrático, onde seja permitida a alternância política e a vontade da maioria prevaleça – observa.

Segundo o ministro, deve haver um melhor entendimento sobre o continente:

–  A lei que obriga as escolas a ensinarem sobre a história da África está em vigor desde 2003, mas estamos propondo um Plano Nacional para colocá-la em prática em todo o sistema de ensino até o fim deste ano. No momento, estamos publicando e traduzindo livros didáticos escritos por autores africanos. É preciso disseminar isso na rede de ensino e formar professores capacitados.

Alexandre dos Santos, professor de História da África Subsaariana na PUC-Rio e produtor da Globo News, lembra que, no continente, golpes de Estado foram arquitetados não apenas para a instauração de regimes militares, mas também pela ação líderes civis.

– O massacre na Guiné mostra uma face cruel de desmandos e aposta na falta de punição, como nos casos do Zimbábue, do Gabão e, recentemente, da Mauritânia – avalia o professor.

Em entrevista ao jornalista americano Philip Gourevitch, autor do livro Gostaríamos de informá-lo de que amanhã seremos mortos com nossas famílias, o presidente de Ruanda, Paul Kagame, afirmou que o panorama político e cultural africano exige que, na transição para a democracia, sejam estabelecidas ditaduras. Embora discorde do ponto de vista, Alexandre dos Santos pondera:

– É preciso mão-de-ferro quando um governo assume o controle do Estado e a reconstrução social, política, econômica e cultural de um povo, na mesma situação que Kagame exerce o poder desde a retomada do país pós-genocídio, em 1994.

O professor refere-se a um dos fatos negligenciados pela grande mídia, a despeito de ter sido a maior tentativa de limpeza étnica no mundo desde o Holocausto dos judeus na Segunda Guerra Mundial. Em 1994, os hutus, grupo social de 85% da população local, promoveu o massacre de tutsis e simpatizantes. Em cem dias, foram mortos ao menos 800 mil ruandeses. O ritmo da ação de extermínio foi muito mais rápido do que o liderado por Adolf Hitler. A barbárie só foi interrompida quando um exército de refugiados em Uganda e na República Democrática do Congo invadiu o país e derrubou a junta militar que o governava.

 – No caso de Kagame, ele fez valer os direitos de igualdade entre tutsis e hutus à força. Em parte, a situação é mantida com a vigilância ostensiva de Estado, para que os cidadãos obedeçam à lei. Mas é sempre bom lembrar que um déspota, mesmo, digamos, "esclarecido", não deixa de ser um déspota  – ressalta Alexandre. 

Credenciada por série de reportagens produzidas em Angola e Moçambique, a jornalista Beatriz Bissio critica a precariedade da cobertura de mídia no continente:

 – A cobertura sobre a África é muito escassa. Quase não há espaço e se privilegia temáticas discutíveis. Por exemplo, se dois trens se chocam e há trinta mortos, vira notícia. Tudo bem, é um acontecimento relevante. Mas será que era isso que a África tinha a dizer naquele dia? Há propostas de democratização, da luta da mulher, uma cultura riquíssima. E nada disso tem espaço.

Para Beatriz, há ditaduras em toda a parte. Ela lembra que a América Latina também teve esse problema durante muito tempo:

 – A opressão é tão antiga quanto a humanidade, mas também a luta contra a opressão. É um caso de disputa de poder. Há muitos interesses envolvidos e alguns deles até de fora da África  – observa a jornalista, que, no entanto, acredita na mudança deste cenário:

–  Existe um movimento republicano em evolução. Basta observar o último Fórum Social Mundial, realizado na África. Houve debates de todo tipo, dos quais participou uma juventude engajada. Vejo avanços enormes. Mas não se pode esperar, em 30 anos, passos que não foram dados nos últimos 500 anos.

Assim como o coordenador do MNU, Reginaldo Bispo, o professor de Comunicação Social e editor do jornal universitário Ações Afirmativas, Carlos Nobre, responsabiliza a elite africana pela violência praticada contra a população:

–  A própria elite instiga lutas e guerras entre tribos distintas. Ela limita a democracia porque está no poder e não quer perdê-lo.

Carlos Nobre aponta caminhos para a solução:

–  A única reprodução que vemos na mídia é a de uma África degradada, faminta. A humanidade tem que mudar o foco e canalizar recursos para ajudar esse continente, que deve buscar ajuda em organizações multilaterais e em países que tenham grande número de descendentes africanos, como os Estados Unidos e o Brasil. Os negros americanos têm uma política de restauração da África, de recuperação o solo africano. Devemos tê-los como exemplo.

Guiné

O palco do massacre de 28 de setembro fica no noroeste da África. Faz fronteira com Guiné-Bissau, Gâmbia, Mali, Costa do Marfim, Libéria e Serra Leoa. Sua extensão territorial é de 245 mil km², semelhante à do estado de São Paulo. Segundo levantamento da ONU, reúne 9,6 milhões de habitantes, dos 85% são da religião muçulmana. Os recursos minerais, especialmente a bauxita, poderiam tornar a Guiné um dos países mais ricos do continente. Entretanto, grande parte da população vive com menos de um dólar por dia.

Ex-colônia francesa, a Guiné tornou-se independente em 1958 e associou-se politicamente à União Soviética, desenvolvendo uma agenda socialista. O regime de Ahmed Sekou Toure persistiu até a sua morte, em 1984, sem conseguir reverter a pobreza no país. O governo passou para as mãos de outra ditadura, liderada por Lansana Conte, com apoio militar. Em dezembro de 2008, ele faleceu. Assumiu o poder, poucas horas depois, o capitão Moussa Dadis Camara, então com apenas 44 anos, sob a promessa de promover eleições democráticas e não concorrer à presidência. Sua recente disposição em candidatar-se é a principal causa dos recorrentes protestos nas ruas do país.

Em 2005, foram instaladas uma embaixada brasileira em Concrari e uma guineense em Brasília. A Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, vinculada ao Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, desaconselha veementemente o turismo na Guiné. O órgão cita a crescente insegurança nos últimos meses e a “ausência de perspectivas de melhoria a curto termo”.