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Rio de Janeiro, 7 de maio de 2024


País

Especialistas discutem os limites da liberdade de imprensa

Clarissa Pains - Do Portal

12/08/2009

 Lucas Landau

“Liberdade de expressão é o direito de manifestar livremente opiniões, ideias e pensamentos. É um conceito básico nas democracias modernas, nas quais a censura não tem respaldo moral”. Assim explica a Wikipédia, que se define como “a enciclopédia livre” na internet: todos podem interferir em seu conteúdo. Justamente por isso, é uma rica fonte de informações e, ao mesmo tempo, não muito confiável. Existe, afinal, limite para a liberdade de expressão? A questão foi retomada, recentemente, com o veto judicial à reportagem de O Estado de S. Paulo sobre supostas irregularidades do empresário Fernando Sarney, filho do presidente do Senado, José Sarney. No dia 31 de julho, o desembargador Dácio Vieira, que seria amigo de Sarney pai, proibiu o jornal de publicar informações referentes à investigação de Sarney filho na Operação Boi Barrica, da Polícia Federal, que corre sob segredo de Justiça. (Fernando Sarney foi indiciado em 15 de julho por formação de quadrilha, gestão de instituição financeira irregular, lavagem de dinheiro e falsidade ideológica. Ele nega as acusações.)

Embora o segredo de Justiça revele-se, digamos, efêmero em outros casos, como sugerem as operações amplificadas pela mídia, o veto ao conteúdo jornalístico é um dispositivo legal. Não deve ser considerado censura, garantem especialistas. Segundo a professora do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio Leise Taveira, também graduada em Direito, a liberdade de expressão e o direito à privacidade têm, em tese, o mesmo grau de importância na democracia brasileira. Cabe ao juiz, esclarece a professora, decidir qual deve prevalecer de acordo com cada situação.

Se a privacidade e o segredo de Justiça são prerrogativas contempladas pela lei, necessárias ao exercício democrático - o que torna a acusação de censura tecnicamente infundada -, por outro lado o episódio levanta uma dúvida quanto à imparcialidade da decisão:

- Se a amizade do desembargador com Sarney for comprovada, houve uma corrupção gravíssima que não pode passar sem punição - afirma Leise.

Em que pesem os argumentos técnicos, a Associação Nacional de Jornais (ANJ), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj) classificaram a liminar de censura prévia e "agressão à liberdade de imprensa". O ministro da Justiça, Tarso Genro, e o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, discordaram. Lembraram que a proibição representa um mecanismo legal.

- Se há a possibilidade de recorrer, como, aliás, o Estadão já está fazendo, não é censura - observa Leise.

O professor Leonel Aguiar, coordenador de Jornalismo da PUC-Rio, defende a total liberdade de expressão. Ressalta que todas as pessoas públicas e empresas, públicas ou privadas, são passíveis de serem investigadas pela imprensa, na defesa do interesse público:

- A liberdade de expressão e, consequentemente, de imprensa são pilares da democracia. Sou contra a censura prévia em todas as circunstâncias possíveis.

Leonel considera que, se uma investigação corre sob segredo de Justiça apenas para preservar a boa imagem de uma figura pública, não há motivo para que notícias sobre o assunto não sejam publicadas:

- Um jornalista com boa fonte no Judiciário consegue informação mesmo sendo segredo de Justiça - afirma. - E isso, na maioria das vezes, colabora para o avanço na transparência da investigação.

Para o professor, a interpretação da “letra fria da lei” pode servir a interesses nem sempre comprometidos com a justiça e o exercício democrático:

- Casos como este levantam alguns paradoxos da democracia. Ou admitimos que o Poder Judiciário dá a última palavra, ou que também é campo de disputa política.

O assessor jurídico da PUC-Rio, Fábio Leite, explica que, geralmente, não se pode considerar uma proibição judicial como censura. Esta ficaria restrita à ação do poder administrativo do Estado. Entretanto, ele pondera: uma vez que se combate a proibição prévia, seria coerente combater também a condenação posterior, pois também é uma forma de censura:

- A multa ou a indenização querem dizer que determinada informação não poderia ter sido publicada, ou seja, de qualquer maneira, está se proibindo o assunto - afirma. - Proibir depois também é proibir, e deveria ser encarado com o mesmo espanto com que encaramos uma proibição prévia.

Segundo Fábio Leite, há, no Brasil, uma quantidade enorme de indenizações, e não se percebe que "elas também estão relacionadas à censura":

- No nosso país, há uma supervalorização da imagem e da honra, e a liberdade de expressão perde com isso. É uma equação difícil de resolver.

Quanto à polêmica do segredo de Justiça, o assessor jurídico da PUC afirma que o direito à liberdade de expressão não pode ultrapassá-lo:

- O segredo de Justiça deve ser respeitado, inclusive por jornalistas. Porém, não existe um posicionamento coerente sobre isso nem por parte da mídia, nem pelo Poder Judiciário. No fundo, é uma grande confusão, o que é ruim, pois traz insegurança.

Grande parte dos processos que correm sob segredo de Justiça está relacionada à vara de família, com o objetivo de preservar crianças e adolescentes envolvidos. Para o professor do Departamento de Direito da PUC-Rio José Ribas Vieira, o “caso escandaloso” de Fernando Sarney ainda precisa ser muito bem apurado:

- Não tem sentido esta investigação correr sob segredo, e é muito grave que isso tenha acontecido. A família de Sarney, mesmo sendo dona do Grupo Mirante (conglomerado de Comunicação), tem mais de 30 acusações de tentativa de impedir transmissão de notícias.

Ribas discorda do ponto de vista do ministro Gilmar Mendes, para o qual a decisão do desembargador Dácio Vieira "faz parte do jogo democrático". Na opinião dele, o direito à privacidade não deve necessariamente se sobrepor à liberdade de expressão.

O professor de Direito propõe quatro frentes de discussão para o avanços dos mecanismos que resguardam a liberdade de expressão e de imprensa: o novo perfil da mídia, o diploma de Jornalismo, o papel do Poder Judiciário após a revogação da lei de imprensa e a TV Justiça.

- A liberdade de expressão suscita grandes debates: como será a mídia no século XXI? Em plena era digital, como será tratado o direito à informação numa sociedade que não tem tradição de valorizar a liberdade?

Segundo o professor, é importante para a democracia que os jornalistas tenham uma formação universitária e um compromisso com a apuração e a ética. Para ele, também é fundamental a manutenção da TV Justiça, que "oferece maior transparência aos processos judiciais".

- A Constituição não contempla tudo. Assim como há a necessidade de um Código de Defesa do Consumidor e de um Estatuto da Criança e do Adolescente, também há a da regulamentação de uma nova lei de imprensa. O direito à informação merece atenção especial - argumenta Leise.

Para os três professores, embora remonte à ditadura, esta lei é um tópico importante no debate sobre a liberdade de expressão. O que se propõe é que sua reelaboração aborde a complexidade da mídia atual, para que, por meio dela, se possa de fato expressar-se livremente e com responsabilidade.

- A sociedade deve refletir sobre a imprensa que deseja. O povo precisa exigir que os veículos de comunicação transmitam informações de qualidade e bem apuradas, senão existem apenas leis mortas - afirma Leise. - O episódio do Estado de S. Paulo é também uma oportunidade de vigiar e discutir os posicionamentos dos magistrados.

Nos últimos 12 meses, a ANJ registrou 16 outros casos de possíveis ameaças à liberdade de imprensa. Segundo Leonel Aguiar, o fundamental é que toda polêmica em torno do assunto seja analisada publicamente:

- O processo de discussão é mais importante que o ponto final do debate, pois é isso que proporciona o avanço democrático. Não existe democracia sem contradições e conflito de opiniões, mas, quanto mais vozes se expressando e mais transparente a discussão, melhor.