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Rio de Janeiro, 28 de abril de 2024


País

A renovação diária do desejo de relatar as coisas

Ana de Almeida Bastos - Da sala de aula

07/10/2009

 Divulgação

Vaidade, falta de juízo, espírito de aventura e “uma coisa difícil de definir”, chamada vocação. Estas são as qualidades que compõem um jornalista exemplar, segundo José Hamilton Ribeiro. Qualidades que o acompanham em mais de cinco décadas de ofício. Aos 73 anos, José Hamilton Ribeiro acumula sete prêmios Esso, um prêmio internacional e uma marca forjada na pele de repórter internacional: o “gosto da guerra” – título de um de seus mais de 15 livros.

Ao cobrir a guerra do Vietnã pela revista Realidade, o repórter experimentou um amargo brutal. Perdeu a perna esquerda em acidente com uma mina terrestre. Nem os horrores do Vietnã conseguiram abalar a obstinação do jornalista pela notícia. Zé Hamilton – como gosta de ser chamado pelos amigos – não pensa em se aposentar e exibe boa forma na tela da Globo, toda semana, no programa Globo Rural. Faz o que mais gosta: reportagens.

Nesta entrevista, José Hamilton conta bastidores da vitoriosa carreira e expõe as dificuldades de conciliar o jornalismo com a vida pessoal.

Ana Bastos – Quando o senhor descobriu que queria ser jornalista?

José Hamilton Ribeiro – Eu devia ter uns 10 anos. Morava em Santa Rosa, uma cidadezinha no interior de São Paulo, onde nasci. Apesar de naquele tempo avião ser coisa rara, principalmente em uma cidade pequena, houve um que passava por ali que teve uma pane e caiu perto da cidade. Toda a molecada saiu atrás desse avião, para ver o que tinha acontecido. Eu, nessa época, estava andando de muletas, porque tinha um problema na perna, mas, mesmo assim, fui até o avião. Quando cheguei lá, o avião era pequeno e só havia o piloto que, apesar de ferido, estava vivo. Então pude conversar um pouco com ele, ouvi-lo contando o que tinha acontecido. Enfim, quando eu voltei para minha casa, toda a vizinhança estava lá, esperando para eu contar o que havido acontecido com o avião. Eu acho que foi a sensação de contar para outras pessoas uma coisa que só eu tinha visto que me despertou para esse negócio de jornalismo de reportagem. Mas o encaminhamento mesmo, o direcionamento para a profissão, se deu quando eu fui escolher a universidade, e escolhi a Escola de Jornalismo Casper Líbero, que era a única que existia no Brasil, na época.

Ana Bastos – Em entrevista à ABI online (Associação Brasileira de Imprensa), o senhor disse que ser jornalista de reportagem é uma “vocação impositiva”. Que imposições a carreira de jornalista trouxe para sua vida pessoal?

José Hamilton Ribeiro – A escolha da reportagem implica um modo de vida que sacrifica muito a família, sacrifica muito você nesse sentido de ficar muito tempo fora de casa, muito tempo sem apoio familiar, sem apoio afetivo das pessoas mais próximas. Além dos riscos eventuais de cada reportagem.

Ana Bastos – Se o senhor fosse abrir um jornal de impresso hoje, o que não poderia faltar?

José Hamilton Ribeiro – Eu ia pensar muito, porque o jornal de papel está passando por um momento de mudança. Eu acho que para o jornalismo de hoje, principalmente para o “de papel”, não há outra saída senão a reportagem de profundidade, de investigação. O jornalismo de manchete, de notícia, isso a televisão e a internet fazem. O jornalismo de papel precisa de mais análise e sempre de algum fato novo, ou de um jeito diferente de ver um fato conhecido.

Ana Bastos – O senhor trabalha há muitos anos com jornalismo e já passou por vários tipos de veículos: já trabalhou com rádio, impresso e agora trabalha com televisão. Dentre essas formas de mídia, qual é a sua favorita?

José Hamilton Ribeiro – A reportagem de televisão é muito agradável de ser feita. É um trabalho de equipe, então tem esse lado quase lúdico. A reportagem escrita, de “jornalismo de papel”, vamos dizer assim, é mais solitária. Às vezes você trabalha com o apoio de um fotógrafo, às vezes nem isso. Então, muitas vezes é um trabalho solitário, pessoal e você acaba fazendo o produto final, um produto mais próprio, mais seu, mais de autor do que um produto de televisão que acaba sendo um produto em equipe.

Ana Bastos – O senhor já escreveu mais de 15 livros, ganhou 7 Prêmios Esso e, em 2006, recebeu o prêmio internacional Maria Moors Cabot. Qual o segredo para tanto sucesso?

José Hamilton Ribeiro – Eu estava lendo, hoje, um trabalho dizendo o seguinte: se você tiver QI alto, quociente intelectual alto, é uma vantagem. Se você nasceu numa família de QI alto e que te proporcione boa educação e te oriente desde cedo, além de favorecer o QI é um fator de sorte. Mas, só o QI, só a sorte, só o talento, não respondem, cada uma delas, sozinha, por uma carreira de êxito. Parece que, segundo essa pesquisa, o fundamental é a quantidade de horas que você dedica à sua tarefa, a capacidade de concentração no trabalho que você está fazendo. Então, se duas pessoas de mesmo QI fizerem o mesmo trabalho, seguramente, aquela que dedicar mais atenção ao assunto se sairá melhor. Talento é necessário, mas é necessário também muito trabalho e muita concentração.

Ana Bastos – Qual foi o fato mais marcante da sua vida profissional?

José Hamilton Ribeiro – Do ponto de vista físico foi a reportagem do Vietnã, porque tirou parte do meu corpo. Mas do ponto de vista psicológico, moral, ético, existencial, aí eu tenho vários momentos, vários estados de encantamento de trabalhos que fiz ao longo da minha carreira.

Ana Bastos – Você poderia descrever um desses momentos de encantamento?

José Hamilton Ribeiro – Vou contar um que é muito simples: Fui para o estado do Tocantins, na beira do Rio Araguaia fazer uma reportagem sobre pirarucu. Ficamos vários dias no local e não conseguimos ver nenhum, até que no último dia, na hora de ir embora, um camarada que vivia lá se aproximou da gente e disse: “olha, em tal lugar tem uma lagoa com um pirarucu parido”, quer dizer, um pirarucu com os filhotes todos em volta. Uma vez que os filhotinhos de pirarucu nascem, eles ficam vários dias em volta, do pai e da mãe e é uma coisa muito bonita. Então, no último dia a gente correu lá e, de fato, o lago era muito bonito e o pirarucu estava lá com talvez mais de uma centena de filhotes, todos em volta dos pais. E eles saiam para respirar ao mesmo tempo. Foi uma imagem que até então eu ainda não tinha visto e até então a televisão brasileira também não. Foi um grande momento de alegria. Na última hora, quando a gente já estava desistindo, aconteceu. Então, coisas desse tipo mostram que a gente não pode desanimar ao fazer uma reportagem. Se você não caça por aqui, tem que ir por ali.

Ana Bastos – José Hamilton, o que leva um jornalista a assumir o risco de cobrir uma guerra?

José Hamilton Ribeiro – O que leva o jornalismo a trabalhar numa situação dessas é um pouco do perfil psicológico da profissão. Então, um pouco é vaidade, um pouco é espírito de aventura, um pouco é ambição profissional, - você quer subir na carreira- um pouco é falta de juízo e muito, mas muito mesmo, é uma coisa assim, difícil de definir, mas que é a vocação, que é o ideal, a sensação que você tem de estar fazendo uma coisa importante e, por duas razões: primeiro, porque você se torna testemunha de um fato da história e, segundo, porque você, testemunhando o fato, é capaz de denunciar o que vê de violência, de iniqüidade, de preconceito, de crueldade e de abuso de força. Então são esses componentes que levam uma pessoa a trabalhar numa situação de risco, e que, seguramente, levaram a mim à guerra do Vietnã.

Ana Bastos – Qual foi a reação dos seus familiares ao saberem que você cobriria a Guerra do Vietnã?

José Hamilton Ribeiro – A reação da minha mulher foi a seguinte: “olha, esse convite que te fizeram é uma loucura e você vai ser um louco se for. Mas como eu te conheço, sei que não vai adiantar nada eu falar, porque você vai acabar indo”. De fato eu acabei indo e o detalhe é que a conversa que a minha mulher teve comigo, acabou se repetindo, trinta anos depois, com a nossa filha Tetê. A Tetê é casada com o Sérgio Dávila, que é correspondente da Folha em Washington, atualmente. Mas ele foi convidado, há oito anos, para ir cobrir a guerra do Iraque, então a minha filha veio chorando, falar com a minha mulher: “Mãe, o Sérgio foi convidado para ir à guerra. O que eu faço?”. E ela respondeu: “diga para ele que é uma loucura, que ele é louco se for, mas que você sabe que ele vai acabar indo’. E foi. Foi e felizmente fez uma bela cobertura, que rendeu um livro chamado Diário de Bagdá. Um dos melhores livros brasileiro de correspondente de guerra. Ele voltou inteiro, muito bem e, hoje, é um jornalista muito conceituado.

Ana Bastos – Como ocorreu o seu acidente no Vietnã?

José Hamilton Ribeiro – Eu fui testemunha - uma testemunha muito próxima, afinal, porque acabei me ferindo também - de um momento da guerra do Vietnã. Durante um enfrentamento do exército americano contra as forças do Vietcongue eu fui ferido por uma mina terrestre. Isso, depois de outros soldados da mesma companhia terem morrido naquele mesmo dia e outros mais ficarem feridos depois de mim. Foi então um acidente, numa mina terrestre, acompanhando uma patrulha do exército americano.

Ana Bastos – O senhor perdeu algum colega jornalista na guerra?

José Hamilton Ribeiro – O fotógrafo que estava comigo, um japonês chamado Keishaburo Shimamoto. Quando sofri o acidente, ele ficou três dias no hospital. Só saía para beber e voltava. Depois, ao longo de duas semanas que eu fiquei internado, ele ia me visitar todo dia. Praticamente suspendeu qualquer trabalho para ficar do meu lado, era um amigo muito querido. Aí eu vim embora para o Brasil e, dois anos depois, o Shimamoto estava num helicóptero e foi atingido por um tiro antiaéreo. Explodiu no ar e o Shimamoto morreu lá. Tem um livro chamado Réquiem, sobre os jornalistas que morreram no Vietnã, que conta também a história dele. Eu perdi um amigo, mas, morreram mais de 50 jornalistas na guerra do Vietnã. Foi a guerra em que mais se perderam colegas na história da humanidade.

Ana Bastos – Em 1996, o senhor retornou ao Vietnã, dessa vez em um ambiente de paz. Qual foi a sensação?

José Hamilton Ribeiro – A primeira viagem para o Vietnã foi de muita dor física. A segunda, foi de muita dor psicológica, porque aquele país que tinha feito uma guerra heróica, cheia de idealismo, cheia de romantismo, no sentido de construir um mundo melhor, transformou-se num país de ditadura comunista, ditadura policial. O povo estava escravizado debaixo de um regime primitivo de comunista, que só agora está saindo daquela treva que se meteu depois da guerra. E está saindo com a ajuda daqueles que eles combateram tanto, que eram os americanos.

Ana Bastos – O que o senhor diria para um jornalista que fosse cobrir uma guerra hoje?

José Hamilton Ribeiro – O medo é uma coisa natural do ser humano. Então, uma pessoa que vai para guerra tem que administrar bem o seu medo, de tal maneira que não a iniba, que permita fazer o trabalho, mas que, ao mesmo tempo, sirva de orientação para que ela não se machuque e nem morra. Cobrir uma guerra é uma coisa nobre, mas o correspondente tem que se cuidar, para não se deixar perder fisicamente ou moralmente.


* Texto produzido em sala de aula para a disciplina Laboratório de Jornalismo Impresso, ministrada pelo professor Leonel Aguiar.