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Rio de Janeiro, 26 de abril de 2024


Mundo

Crise migratória: efeitos políticos desafiam equilíbrio da UE

Luisa Oliveira* - aplicativo - Do Portal

28/09/2015

 Winkler/Forças Armadas da Alemanha

A maior onda migratória desde a Segunda Guerra Mundial traz implicações tão complexas e difusas quanto às razões que a deflagraram, sobretudo o caldeirão político no Oriente Médio, em particular na Síria, e norte da África. Países banhados pelo Mar Mediterrâneo, como Itália, Hungria e Grécia, receberam, ao longo do verão europeu, mais de 225 mil imigrantes, estima a Organização das Nações Unidas (ONU). A marcha em busca de paz, emprego, dignidade já soma, ainda segundo a ONU, 60 milhões. Embora nem todos sejam qualificados oficialmente como refugiados (veja as categorias, em quadro no fim do texto), é provável que todos se sintam representados pelo menino sírio Aylan Kurdi, de 3 anos, morto numa praia da Turquia depois da fracassada tentativa de refúgio da família rumo ao Canadá. A emblemática tragédia despertou a União Europeia (UE) para a necessidade de soluções humanitárias, econômicas e geopolíticas, como prega a premier alemã Angela Merkel, mas não chegou a aplacar divergências. Nem as cotas de acolhimento revelam-se suficientes para debelar tensões e polarizações no bloco, tampouco para conter o avanço de correntes extremistas, inclusive da chamada extrema-direita. De acordo com o professor da PUC-Rio Maurício Parada, doutor em História Social, “a grande questão é como manter a unidade na União Europeia para que essa crise migratória não gere um racha entre os países que querem atender esses refugiados e os que não querem”. Na avaliação do especialista, os principais impactos geopolíticos estão ligados à solidificação do grupo:

– Mesmo envolvendo política e economia, os impactos políticos se sobressaem. Pois esse deslocamento maciço de pessoas é sempre um problema, e envolve muitas políticas públicas. Os países precisam abrigar e alimentar o grande contingente. Isso gera alterações na política, atingindo todos os setores. Existem ainda problemas humanitários difíceis de lidar, já que esses países também se preocupam com um possível desequilíbrio que essa quantidade de pessoas poderia trazer.

Para o também professor da PUC-Rio Bruno Magalhães, doutor em Ciências Políticas e Relações Internacionais pela Open University, a crise migratória gera “um verdadeiro impasse geopolítico, uma vez que refugiados se tornam responsabilidade de países onde não são bem-vindos”. A solução, sugere Magalhães, é sair do meio-termo: “Ou a União Europeia abre mão da possibilidade de livre circulação ou o processo de harmonização de políticas migratórias se aprofunda”. Esta segunda perspectiva foi defendida pelas conferências de Bruxelas e de Berlim.

Epicentro da crise, conflitos na Síria expõem jogo de forças complexo

Sedat Suna/EPADesde 2012 – depois que os esgarçamentos políticos decorrentes da Primavera Árabe mergulharam a região, principalmente a Síria, em intermináveis conflitos e privações – milhares de nativos atravessaram as fronteiras em busca de melhores condições de vida. Fogem de regimes ditatoriais, da guerra, da fome. O epicentro simbólico e material desta crise migratória é a Síria: o peso geopolítico se reflete nos embates políticos, étnicos e econômicos cuja complexidade extrapola a guerra civil deflagrada pelo presidente Bashar al-Assad contra os opositores ao governo. A violência sistemática e o desamparo jogaram na pobreza 60% da população síria. Quatro milhões já deixaram o país neste ano.

Desde 2011, auge da Primavera Árabe, mais de 210 mil pessoas morreram por repressão da família Al-Assad, no poder há 44 anos. O conflito se desdobra em desalinhos na União Europeia e entre americanos e russos. Enquanto os Estados Unidos de Barak Obama apoiam os rebeldes sírios, a Rússia de Vladimir Putin mantém-se fiel a Assad. Neste tabuleiro difuso, pesam a influência numa área geopolicamente estratégica e o risco de, no caso de queda do ditador sírio, o vácuo ser aproveitado por extremistas. Enquanto esse delicado xadrez se desenrola, milhares de refugiados aguardam, desesperadamente, que parâmetros humanistas prevaleçam sobre disputas religiosas, geopolíticas e econômicas. Países como França e Inglaterra, observa Magalhães, condicionam a saída da crise à destituição de Bashar al-Assad e ao combate ao Estado Islâmico:

– O primeiro-ministro britânico, David Cameron, e o presidente francês, François Holland, já declararam que a solução para o fluxo massivo de refugiados na Europa é terminar o que foi começado na Síria (Primavera Árabe), com a remoção do regime Assad. É difícil prever que forma terá o aumento da participação britânica e francesa no combate ao Assad e ao Estado Islâmico vai assumir. Até o envio de soldados foi cogitado. Mas esse é um exemplo de choque diplomático em meio à crise.

Multiplicada por agências e redes sociais mundo afora, a foto de Aylan morto desencadeou diversas reações, não raramente antagônicas. Se por um lado a imagem acordou a União Europeia para a urgência de acolher – com formas e cotas específicas – a multidão de refugiados em busca de asilo, por outro lado revolveu a maré xenofobia comandada por grupos de extrema-direita. Caso do alemão Patriotas Europeus contra a Islamização do Ocidente (Pegida), que tenta impedir a entrada desses imigrantes na Europa e hostiliza asilados no país. Na outra ponta, a primeira-ministra Angela Merkel lidera a derrubada dos muros visíveis e invisíveis impostos aos migrantes. “Não tememos os estrangeiros porque muitos de nós já fomos estrangeiros”, argumentou ela, dirigindo-se não só aos compatriotas, mas também aos demais europeus. Entre frases de efeito e cotas recém-estabelecidas para acolher os refugiados, o ambiente político está longe de arrefecer, avalia o professor Murilo Meihy, doutor em Estudos Árabes pela USP: 

– A Europa vem passando por um movimento interno de aumento da xenofobia, da rejeição a estrangeiros. Quando a União Europeia assina um acordo de livre fronteira entre os países que compõem o bloco, estabelece limites para pessoas de outras nações de fora do bloco entrarem e trabalharem nos países. Alguns destes afirmam que a chegada dos imigrantes altera o equilíbrio populacional, interfere nas questões econômicas e sobrecarrega o Estado por conta da necessidade de auxílio econômico. Por considerá-los pessoas que não fazem parte do bloco, aumenta a rejeição tanto da sociedade civil europeia, como dos próprios governos europeus em relação a esses estrangeiros.

Analista: liderança no acolhimento de refugiados reforça capital político da Alemanha

Marcelo Camargo/EBCMediadora da crise dentro da União Europeia, a Alemanha tenta o consenso entre os países-membros do bloco. A abertura das fronteiras para 20 mil refugiados barrados na Hungria indica um importante reposicionamento: em agosto, Merkel apontado caminhos mais restritivos, ao responder a uma imigrante palestina de 15 anos em TV aberta: “Vocês não podem vir todos”, ponderou, referindo-se aos imigrantes que, assim como a jovem Reem, buscavam no país melhores condições de vida. Mudaram os fatos, o jogo geopolítico, o posicionamento quanto aos estrangeiros. A flexibilização das políticas de asilo na União Europeia aumentaram a popularidade e a influência da Alemanha no bloco. Em outras palavras, reforçaram o capital político alemão, ressalta o professor Daniel Etcheverry, doutor em Antropologia Social pela UFRGS:

– No que diz respeito à distribuição do poder, a União Europeia está longe de ser um bloco homogêneo. A política do bloco sempre foi restritiva em relação à chegada de extracomunitários, e a Alemanha, por ser a primeira economia dentro da UE, é a que sempre está dando as cartas. Isso pode parecer contraditório, mas não é, porque a aceitação de refugiados implica em uma forma de capital dentro do bloco, ou seja, reafirma a supremacia da Alemanha no bloco e fora dele, enquanto os países menores e mais periféricos, como a Hungria, fazem o papel sujo, barrando a entrada de refugiados.

Regime de cotas enfrenta resistência e divisões na UE

O professor Maurício Parada acredita que os alemães estão preparados para receber os refugiados. Ele ressalva, contudo, que o regime de cotas enfrenta resistência e divisões internas no bloco:

– Há uma resistência grande ao projeto de cotas proposto pela Alemanha, especialmente de países como a Hungria, que é governada pela direita. No entanto, acredito que os alemães estão aptos e podem segurar esses refugiados durante um bom tempo, dando algum tipo de vitalidade e estabelecendo-os no mercado de trabalho.

Fluxo migratório afeta cenário da Grécia em busca de recuperação econômica  

Países banhados pelo Mediterrâneo lideram, pelo acesso mais fácil, a rota dos refugiados. Até a Grécia, atolada no maior colapso econômico de sua história, está inserida no fluxo migratório. A professora da PUC-Rio Paula Sandrin, doutora em Relações Internacionais (Universidade de Westminster), destaca as raízes históricas e geográficas da procura, mas acredita que a Convenção de Dublin deixa o país numa sinuca de bico:

– A Grécia tem uma procura migratória histórica porque é um dos principais países de entrada no continente, assim como a Itália. Mas a maior parte dos imigrantes não quer ficar na Grécia, pois há poucas oportunidades de emprego em função da crise. Eles querem ir para outros países europeus. O problema é a Convenção de Dublin, que determina que os pedidos de asilo sejam processados pelos países de entrada dos imigrantes. Desta forma, a Grécia tem que protocolar muitos pedidos, e os imigrantes precisam permanecer em solo grego enquanto se desenvolve esse processo. Isso afeta a economia e até o turismo – alerta.

ONU: refugiados beiram a marca de 60 milhões

O volume de migrantes deslocados por guerras revela-se seis vezes superior ao do ano passado, estima a ONU. Já beira os 60 milhões, o que impõe entendimentos em torno de soluções humanitárias. Etcheverry atribui à Europa uma responsabilidade sobre os refugiados:

– Os países europeus têm uma dívida ética com os cidadãos dos países de onde vêm os refugiados. O Ocidente sempre foi o grande desestabilizador nas regiões periféricas do capitalismo e nos países que não aderem ao sistema capitalista.  É um dever moral receber essas pessoas – opina.

Sven Hoppe/DPAO professor reitera que, a despeito de condutas xenófobas, parte da população europeia se posiciona a favor do acolhimento:

– Os ingleses, por exemplo, saíram às ruas para pedir maior apoio aos refugiados. Nos países do Leste, que são ao mesmo tempo os mais pobres e por onde está chegando a maioria dos refugiados, a população se mostra receptiva, mesmo que seus governos não sejam.

Sob liderança alemã, alguns países europeus adotaram iniciativas alinhadas às propostas da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR). Paula esclarece que o papel da ACNUR de proteger os refugiados depende da cooperação da UE:

– A ACNUR presta assistência para evitar perda de vidas na travessia do Mediterrâneo, para que os refugiados sejam recepcionados de acordo com padrões internacionais, dentre outras iniciativas.

Papel da Europa precisa ser revisto, diz professor

A participação da ONU no socorro aos refugiados intensifica o apelo à harmonização de acordos entre os países do bloco. Mais que isso, avalia Meihy, impõe “uma revisão do papel da Europa no jogo político internacional”:

– O continente europeu sempre foi visto como uma região de forte defesa dos direitos humanos. Isso agora é colocado à parte quando a Hungria, por exemplo, põe a polícia e o exército na fronteira para fechar a entrada aos refugiados em situação de miséria. Isso exige que o mundo reveja, do ponto de vista geopolítico, o papel libertário que a Europa sempre assumiu ao longo da História.

Parada: “Não se pode isolar pessoas como se fossem números”

Para Magalhães, há uma “clara” polarização entre os países europeus quanto à aceitação dos refugiados:

– É possível notar pontos de divergência em torno do tema na Europa principalmente na abordagem: dificultar ou facilitar o acesso de potenciais solicitantes de refúgio às jurisdições? Nesse debate, a França e principalmente a Alemanha defendem que o continente deve se preparar para receber mais gente. O ministro francês Manuel Valls destacou que é preciso abordar a crise sob uma ótica humanitária. Angela Merkel descreveu a crise como o desafio mais importante do seu mandato. Entretanto, do outro lado dessa discussão estão países como Áustria, Hungria, Suíça, Reino Unido e Espanha, que têm defendido uma abordagem centrada em mais policiamento de fronteira e mais restrição à entrada.

Líderes da União Europeia se reúnem nesta semana em Bruxelas para traçar estratégias que dissipem os impasses associados à crise migratória. A ACNUR fez um apelo, dia 22, para que prevaleçam soluções humanitárias. Parada ressalva: “Não há uma receita para a saída desta crise”, e lembra: “Não se pode isolar pessoas como se fossem números”.

 

Imigrantes, refugiados, exilados e asilados

Entre as motivações que fazem as pessoas saírem de seus países de origem está a crise econômica, os problemas históricos de integração e a islamofobia (sentimento de ódio ou de repúdio em relação aos muçulmanos e ao Islamismo em geral). A doutora em Relações Internacionais Paula Sandrin afirma que a questão da integração de comunidades com identidades diferentes já vem sendo debatida na Europa muito antes da atual crise migratória. Para entender melhor a distinção entre imigrantes, refugiados, exilados e asilados, o Portal ouviu especialistas que explicaram as diferentes denominações.

Imigrante – “O imigrante é aquele que toma a decisão de sair do país por razões distintas, como crise econômica e questão política. Ele não precisa necessariamente estar envolvido a uma questão de conflito armado” (Murilo Meihy, doutor em Estudos Árabes pela USP e professor de História Contemporânea da UFRJ).

“Imigrantes são pessoas que, por vontade própria, chegam a um país diferente do seu país de nascimento com a intenção de fixar residência nele” (Daniel Etcheverry, doutor em Antropologia Social pela UFRS).

Refugiado – “Na Convenção de Genebra, em 1951, ficou definido o refugiado como o indivíduo que já estava fora de seu país ou que se viu obrigado a fugir por medo de sofrer perseguição causada por religião, raça, nacionalidade, grupo social ou opinião política. Entre os países que assinaram o acordo estava o Brasil, que se comprometeu a proteger os refugiados. Inclusive, usamos essa definição com o adendo de que o indivíduo também é chamado assim se estiver fugindo de uma situação grave e generalizada de violação dos direitos humanos” (Bruno Magalhães, doutor em Ciência Política e Relações Internacionais pela Open University e professor da PUC-Rio).

Exilado – “Exilado é o indivíduo que, de certa maneira, é expulso do país. Ele perde, portanto, os direitos políticos de sua nacionalidade” (Murilo Meihy, doutor em Estudos Árabes pela USP).

Asilado – “O direito ao asilo está previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos e se inscreve no âmbito do Direito Internacional clássico, mas, diferentemente do 'refugio', não está regulamentado. O 'asilo' se encontra no âmbito das decisões do Estado ou, mais especificamente, no âmbito das decisões da principal figura do governo do país ao qual se pede asilo. Ou seja, uma pessoa que se considera em situação de perigo pode pedir asilo ao governo de um determinado país e este o concederá ou não. Com exceção da América Latina, os termos 'refugiado ' e 'asilado' são usados indistintamente” (Daniel Etcheverry).

*Colaborou: Juliana Reigosa