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Rio de Janeiro, 28 de abril de 2024


Cultura

Hoineff: liberdade às biografias vai beneficiar documentários

Guilherme Bianchini - aplicativo - Do Portal

15/06/2015

 Divulgação Comalt

O Supremo Tribunal Federal (STF) acatou, no último dia 10, o pedido de liberação das biografias não autorizadas, em ação promovida pela Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel). De caráter histórico, a decisão representa um avanço democrático e um marco à literatura do país. Viabiliza a publicação da história e das histórias de figuras proeminentes, polêmicas, emblemáticas, sem a necessidade de consentimento dos biografados ou familiares. Ao assegurar aos autores o direito constitucional à liberdade de expressão, o veredito do Supremo traz, por tabela, uma esperança ao cinema nacional, em particular ao documentário. Diretor de documentários como Alô, alô, Terezinha e o recém-lançado Cauby - começaria tudo outra vez (ouça reportagem de áudio), Nelson Hoineff acredita que a extinção da censura prévia para biografias tenda a oxigenar o segmento. Em entrevista ao Portal, o jornalista, diretor e produtor audiovisual afirma que “vitória judicial tira o documentário brasileiro de uma situação de chapa-branca”, e vislumbra um maior interesse do público pelo gênero – ausente da lista dos 20 filmes nacionais mais vistos no ano passado, liderada pela comédia Até que a sorte nos separe 2, com quase três milhões de espectadores. Hoineff ressalva, contudo, que o crescimento das produções nacionais nacionais, para além dos renitentes 10% de participação no mercado, exige mais do que mudanças legislativas ou judiciais: "Precisamos reinventar o cinema brasileiro, hoje muito centrado em comédias de estéticas televisivas. Precisamos fazer com que o cinema brasileiro seja atraente ao público, como foi em muitas outras épocas".

Portal PUC-Rio Digital: Quais as implicações da queda da exigência de consentimento para biografias nos mercados editorial e audiovisual?

Nelson Hoineff: De modo geral, é um grande avanço. O que havia era uma censura, uma coisa completamente anticonstitucional. Havia um conflito: a legislação feria a Constituição, instituindo uma censura prévia. O que o Supremo fez foi restituir uma situação constitucional do país. Isso, evidentemente, traz imensas vantagens aos mercados editorial e audiovisual. Ao mesmo tempo em que passam a ser feitas biografias sem anuência prévia dos biografados, passam também a ser feitos documentários e filmes da mesma forma. Esta é uma prática no mundo inteiro. É completamente absurdo que não se possa falar sobre figuras públicas.

Portal: Falando mais especificamente dos documentários, o que muda com a decisão do Supremo?

Hoineff: A grande diferença é que, até agora, para se fazer um documentário sobre uma pessoa qualquer, ou que envolvesse uma pessoa qualquer, era preciso a anuência da pessoa. Não apenas para fazer o documentário, mas a aprovação de tudo que se fizesse. Se você quisesse fazer um documentário, por exemplo, sobre Fernandinho Beira-Mar, precisava ter a autorização dele, e a autorização dele sobre o conteúdo.

Portal: Em relação à Lei do Audiovisual, quais são os ajustes necessários para se beneficiar da decisão do STF?

 Divulgação Comalt  Hoineff: A lei simplesmente tem que deixar de exigir um documento, que é a anuência do biografado. É apenas uma linha.

Portal: A novidade pode ser considerada um marco revolucionário no cinema brasileiro?

Hoineff: Pode, sem dúvida. Tira o documentário brasileiro de uma situação de chapa-branca, de uma situação completamente conflitante com a Constituição brasileira, que existia há muitos anos e colocava o documentário brasileiro na retaguarda da tendência internacional. Quando se tomam como exemplos os grandes documentários americanos, israelenses, são documentários muito críticos em relação ao documentado.

Portal: Documentários respondem por cerca de 25% da produção nacional, e estão ausentes da lista dos 20 filmes brasileiros mais vistos no ano passado (dominada por comédias, como o líder do ranking, Até que a sorte nos separe 2, que atraiu 3 milhões de espectadores). Com a suposta maior liberdade de produção, o senhor acredita que os documentários ganhem mais volume e audiência no mercado verde-amarelo?

Hoineff: Não há a menor dúvida. Mas há outro fator a ser considerado: a tendência de o documentário brasileiro, muitas vezes, ser feito para o próprio umbigo do realizador. Isso leva a documentários mais fechados, cifrados. Em outra palavra, chatos. Essa tendência nada tem a ver com a legislação. Agora, quando a legislação permite que o documentário seja mais crítico, cumpra a função de retratar a sociedade de uma forma mais ampla, é claro que o público tende a acompanhar mais perto o documentário. O documentário é considerado palavrão pelos exibidores porque, em geral, a resposta ao documentário é baixa, e tem que ser mesmo. Alguns documentários são feitos para serem vistos por duzentas, trezentas pessoas, no máximo. Tenho certeza de que os documentários mais críticos, polêmicos, serão mais aceitos pelo público. Vai haver um crescimento do mercado para documentários em cinema.

Portal: O senhor confia na mudança no perfil e na imagem dos documentários, sobre os quais paira ainda o estigma de filme chato”?

Hoineff: Sim, com 100% de certeza. O documentário, para o público brasileiro, é uma coisa chata. Feita, como disse, para o próprio umbigo, ou chapa-branca, quase institucional. Ninguém gosta de documentários assim. À medida que se amplia o espectro de interesse de documentários, isso vai ampliar o espectro de interesse do público pelo documentário.

Portal: Produções brasileiras ainda respondem por cerca de 10% do total de espectadores de cinema no país. Que outros fatores são necessários para aumentar esta participação?

Hoineff: Este é um número muito, muito baixo. É um absurdo que, dentro do próprio país, a gente tenha uma fatia de 10%. E é um absurdo maior ainda que, desses 10%, um número considerável se deva a três ou quatro comédias feitas com uma estética televisiva, com uma narrativa televisiva. Precisamos reinventar o cinema brasileiro, precisamos fazer com que o cinema brasileiro seja atraente ao público, como foi em muitas outras épocas.

 Divulgação Comalt Portal: Se por um lado a estética televisiva invade a produção cinematográfica nacional, por outro lado o documentário não pode ganhar mais espaço na TV? 

Hoineff: Sem dúvidas. A televisão trata muito mal o documentário, de um modo geral. Quando se fala de um documentário em televisão, o recall que se tem, imediatamente, é Discovery Channel, por exemplo, National Geographic. Isso é uma parte dos documentários. Os documentários investigativos, sociais, não são muito bem recebidos na televisão. Agora, à medida que haja condições de aumentar o número de documentários, e aumentar o teor polêmico desses documentários, acredito que a televisão possa recebê-los bem melhor.

Portal: O senhor teria feito algum documentário sem o consentimento da pessoa abordada?

Hoineff: Pelo menos dois me vêm à memória, mas prefiro não revelar, porque um deles ainda vou fazer. Os documentários que eu fiz para cinema, cinco ou seis, por enquanto, são, em geral, sobre pessoas das quais obtive autorização. Mas foquei num vetor dessas pessoas que me interessa muito: a transgressão. Casos de Santos-Dumont, Paulo Francis, Chacrinha, Cauby Peixoto, em que sempre estou falando sobre a transgressão. Acabei de fazer um documentário sobre a Portela, mas com outro viés. É um documentário sobre a preparação de uma escola de samba para um grande desfile. Houve um ou dois temas que não pude abordar. Consultei meus advogados e eles disseram "nem pensar". Agora, com a mudança na lei, vou consultá-los de novo.

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