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12/06/2015O diagnóstico
Em 2003, quando meus pais comemoraram bodas de ouro, eu e meus irmãos percebemos que nossa mãe estava muito tensa e nervosa, mas não achamos que fosse nada de anormal. Ela morava com minha irmã e seus filhos, e começou a ter atitudes estranhas, como esconder coisas da família. Não sabíamos, mas já era a doença. Ela começou a implicar muito com os netos, e minha irmã acabava se irritando. Minha mãe me ligava às vezes para dizer que “não aguentava mais morar naquela casa”, algo um tanto sem sentido. Nosso médico de família recomendou que eu a levasse a um neurologista, e não a um psicólogo, o que me assustou. Depois de alguns testes, foi diagnosticado o Alzheimer. Ela tinha 76 anos.
A família
Na época, não consegui aceitar, queria fazer tudo que pudesse curá-la, tirá-la daquela situação. A impotência é muito grande, e eu, que sempre quis ter o controle de tudo na vida, entrei em parafuso. Chorava no trabalho, comecei a fazer terapia, e entendi que não podia fazer nada além de aceitar e fazer com que ela sofresse menos.
As crises que ela tinha no início da doença eram horríveis. Lembro uma vez em que ela encostou-se à parede e começou a gritar “Vocês querem me matar!”. Ela sentia alguma coisa muito forte, que nem ela entendia.
Aluguei um apartamento, perto do meu, para meus pais, para tentar cuidar deles – meu pai tinha diversos problemas de saúde, e minha mãe não conseguia mais ficar com minha irmã. Nessa época eu trabalhava o dia inteiro num banco, dava aula, minha rotina era cheia, mas pelo menos eu conseguia visitá-los todos os dias, levava comida, minha empregada cozinhava.
Um dia o porteiro me chamou porque minha mãe quis sair do prédio “atrás do marido”. Meu pai não tinha saído de casa, mas ela deixou de reconhecê-lo, e queria sair para procurá-lo. Ela podia ter sumido, e na hora entendi que eles não podiam mais ficar sozinhos. Fiquei com medo de acontecer de novo e me sentir culpada por isso para o resto da vida. Não queria, mas tive que colocá-los em uma clínica, até ela se adaptar aos remédios e meu pai voltar a andar – ele tinha um problema nas pernas. Voltaram para casa um tempo depois.
A perda da irmã
Em 2003, meses antes da festa de 50 anos de casamento, a irmã que era mais ligada a minha mãe, tia Terezinha, teve um AVC e ficou entre a vida e a morte. Nessa época minha mãe tinha muito sono, dormia muito, de tristeza. Acordava desesperada achando que a irmã tinha morrido. Depois de um desses sonhos horríveis com a irmã, ela acordou e me disse: “Sinto uma dor vindo, parece que estou tendo câimbras na cabeça”. Ali eu percebi que ela estava passando por algum processo, mas não existe nada que comprove que foi o que originou a doença. Acho que foi uma defesa do organismo dela, porque ela simplesmente dormia, como se não quisesse viver aquilo. Minha tia acabou falecendo antes das bodas, e minha mãe sofreu muito. A dor para ela era intensa, ela não sabia lidar com o sofrimento.
Anos antes, meu pai teve um tumor cerebral benigno, ficou com a mobilidade comprometida, tinha vários lapsos de memória e curiosamente era minha mãe quem o lembrava de tudo, da carteira, do telefone, tudo. Criou-se uma dependência. Ela fazia tudo pra ele, levava até a toalha na hora do banho, ele dependia muito dela. Quando minha mãe ficou doente, meu pai perdeu o suporte dele, e também com quem conversar. Ela não reconhecia a casa em que morava, queria ir embora, e meu pai se magoava com isso.
Em 2010 a saúde do meu pai piorou, e minha mãe, já com Alzheimer, parou de comer. A cuidadora demorou três dias para me avisar que ela estava recusando a comida, e ela ficou muito desnutrida e fraca. Quando me dei conta, tive que levá-la para o hospital, e a meu pai também, porque o inchaço de suas pernas estava muito grande. O oncologista confirmou que o câncer dele tinha voltado. Sinto que ele reapareceu pela tristeza de meu pai em ver a doença da minha mãe. Ele teve que ser internado, e conseguimos colocar os dois no mesmo quarto: de um lado, minha mãe, apagadona com uma sonda gástrica, e meu pai do outro, piorando, mas ainda lúcido. Até morrendo estavam juntos, mas ela, sedada, não viu meu pai morrer. Ela não viu nada. Alguma coisa a fez perceber, por instinto, que ele iria morrer. A mesma reação que teve com minha tia, ela teve com meu pai: dormir e não ver nada.
Em janeiro de 2011 não teve jeito, me aposentei. Já tinha trabalhado 30 anos, e percebi que precisava me aposentar, ou eu é que iria ficar doente. Tinha que fazer tudo pela minha mãe, mas estando bem.
Aprendi a lidar com ela. Não adianta pedir nada, que ela não obedece. Adianta sentir o que está acontecendo, aprimorar os sentidos, reconhecer os sinais de que ela não está bem. Aprendi que, sozinho, ninguém aguenta fazer tudo. Temos que saber das nossas limitações e que precisamos das outras pessoas. O Alzheimer precisa da ajuda das outras pessoas. Alguns dão o tempo, outros o dinheiro, e assim vamos.
Ela, por exemplo, não consegue esperar em filas de hospital, quer sair da cadeira de rodas, começa a gritar. Eu parei de levá-la para não deixa-la exposta a situações que ela odiaria. Mas o convênio não cobre o home care, a cama hospitalar, nem as fraldas – o que é um absurdo, porque o doente de Alzheimer precisa muito, e essas coisas são caras.
Antes da doença éramos muito próximas e hoje, apesar de falar pouco, ela percebe a minha ausência. Moramos juntas eu e ela, e as cuidadoras que se revezam. Uma vez, quando eu saí, mamãe perguntou: “Cadê todo mundo?”.
Márcia é tudo para sua mãe.
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Acordo toda manhã e penso: “Mãe, hoje é mais um dia nosso”
A nutricionista carioca Patrícia Della Noce, 55 anos, cuida da mãe, Rina Latini, ex-cabeleireira, portadora de Alzheimer há 10 anos.
“Ela é uma estrela que se apaga lentamente, mas ainda consigo ver sua luz”
Augusto Alves, 78 anos, contador, cuida da esposa, Thereza, 76, há pelo menos 10 anos com Alzheimer.
“Para minha mãe, foi mais fácil esquecer-se da própria vida.”
Eliana Faria, 58 anos, presidente da Abraz-RJ, cuidou da mãe, Zélia, que morreu em 2014, após quase 20 anos com Alzheimer.
“As pessoas não se informam sobre essas doenças, acabam descobrindo só quando acontece com elas"
Leo Arturius, cineasta de 32 anos, fez o filme "Impossível esquecer" a partir da doença do pai, Dilcio de Souza, morto em 2013, aos 74 anos, diagnosticado com Alzheimer oito anos antes.
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