Marina Ferreira e Maria Clara Parente - aplicativo - Do Portal
12/06/2015Tinha 20 anos quando conheci minha loura linda, Thereza. Estudávamos juntos, e ela é que começou a namorar comigo. Eu era muito calmo, ela mais decidida. Na faculdade, se sentava sempre atrás de mim e tentava chamar minha atenção me cutucando com um lápis. Nós fazíamos ciências contábeis – eu queria ser médico, só que na minha cidade, Manaus, não tinha medicina. Eu tinha mesmo que entrar nesse curso, tinha que conhecer a minha mulher.
O início da doença
Por volta dos anos 2000, ela começou a achar que eu estava vendendo suas joias para dar a alguma mulher na rua. Eram os primeiros sinais do Alzheimer: essa desconfiança é característica. Thereza sempre gostou de joias, e com a doença não foi diferente, ela parava em frente a joalherias e queria levar tudo para casa. Eu dizia que já voltaríamos ali para comprar, dava meia volta no shopping e ela esquecia. Nesse sentido, se assemelha a uma criança, que fica zangada, mas logo se esquece, e sorri.
Houve muitos momentos estressantes, principalmente no início. Ela me acordava no meio da noite querendo que a levasse para casa, brigava com o espelho quando via seu reflexo, achava que era outra pessoa. Ela parou de se reconhecer e, quando eu ia ajudá-la, também não reconhecia meu reflexo, eram dois vultos para ela.
De 2007 a 2010, viajei com ela várias vezes para Manaus. Fomos a lugares que marcaram nosso namoro, nossa juventude, lugares que ela adorava. Foi muito triste quando ela parou de reconhecê-los.
Aceitar é o primeiro passo para transformar. Percebi que aceitando que não podia cuidar da Thereza sozinho, que eu não era o super-homem, ela ficaria melhor. Contratei cuidadoras, fui aprender tudo que podia sobre a doença, e assim a ajudei muito mais.
É estranho ela não ter a menor condição de olhar para mim, como vai se fragmentando o cérebro de maneira tão atroz, a ponto de ela não reconhecer alguém que está com ela há mais de 50 anos. É uma dor muito grande, que só consigo vencer pensando que devo cuidar dela como ela sempre cuidou de mim e de nossas quatro filhas.
Ainda jovens, eu esperava o resultado de um concurso para ser professor da rede estadual e sabia de um concorrente com ‘padrinhos’ importantes. Thereza me arrastou à sede do Governo do Estado e lá exigiu da secretária que o governador nos atendesse. Ele veio realmente nos atender, e descobrimos que eu tinha sido aprovado, mas não convocado. Thereza conseguiu convencê-lo e consegui a vaga. Isso era a Thereza. Enfrentava o governador, enfrentava qualquer um para ajudar quem precisasse.
Durante a entrevista, Eliana, sua amiga e colega de trabalho comentou: “Ele é viúvo de uma mulher viva”.
Evito pensar em “por que isso está acontecendo com a gente?”, mas sim “para quê?”. Talvez seja para eu amar melhor a minha mulher, unir nossa família ainda mais, juntar todos em torno da pessoa que era o centro de tudo. Acredito que as coisas acontecem com algum propósito, e que temos que melhorar sempre.
Enquanto contava sua história, Augusto, 78 anos, mantinha um brilho no olhar. Como se fosse ontem tudo que lhes aconteceu.
Minha Thereza está cada dia mais linda, e eu cada vez mais apaixonado. Muitos acham que estou brincando quando falo isso, mas não estou. Ela é uma estrela que se apaga lentamente, mas ainda consigo ver sua luz. Quando ela tem pequenos momentos de lucidez, eu escrevo o que diz. Uma vez, entrei na cozinha e ela estava lá. Disse: “Quem é esse homem tão bonito?”. Guardei esse momento.
Se não existir um amor muito profundo, como cuidar de uma pessoa que a sociedade considera inútil? Thereza é uma pessoa muito amada que se tornou inútil, e não podemos “jogá-la fora”. Temos que dar valor ao passado, a tudo que ela representou e representa.
É dar amor sem esperar reciprocidade, porque a doença de Alzheimer acaba com qualquer relação de troca. Muitas vezes em que você só dá amor, a pessoa lhe trata agressivamente. A única arma que uso nessas situações é o abraço. Ela me bate, e eu a beijo, até se acalmar. Amar tem que ser até o fim.
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Acordo toda manhã e penso: “Mãe, hoje é mais um dia nosso”
A nutricionista carioca Patrícia Della Noce, 55 anos, cuida da mãe, Rina Latini, ex-cabeleireira, portadora de Alzheimer há 10 anos.
“Para minha mãe, foi mais fácil esquecer-se da própria vida.”
Eliana Faria, 58 anos, presidente da Abraz-RJ, cuidou da mãe, Zélia, que morreu em 2014, após quase 20 anos com Alzheimer.
“As pessoas não se informam sobre essas doenças, acabam descobrindo só quando acontece com elas"
Leo Arturius, cineasta de 32 anos, fez o filme "Impossível esquecer" a partir da doença do pai, Dilcio de Souza, morto em 2013, aos 74 anos, diagnosticado com Alzheimer oito anos antes.
“Minha mãe nunca soube lidar com o sofrimento"
Márcia Martorelli, 59 anos, professora aposentada, cuida da mãe, Maria Cecília, 88, com Alzheimer há 11 anos.
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