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Rio de Janeiro, 25 de abril de 2024


Cidade

Condutoras de transporte público relatam discriminação

Renata Spolidoro - aplicativo - Da sala de aula

05/03/2015

 Renata Spolidoro

Dirigido por uma mulher, o Brasil reconduziu Dilma Rousseff ao governo por mais quatro anos. Mas a presidente é a representante de um país que ainda se espanta com mulheres que ocupam o banco do condutor. O preconceito faz parte do dia a dia delas. No Rio de Janeiro, as motoristas de ônibus são minoria, não são nem 2 mil mulheres, cerca de 3% dos 57.880 condutores registrados no estado, segundo dados da Fetranspor atualizados em agosto.

Fátima Souza, 36 (foto), trabalha na linha 460, que vai de São Cristóvão ao Leblon. Ela sabe que nos dias de jogos no Maracanã, o movimento no túnel Rebouças costuma ser intenso. Pelo engarrafamento da Lagoa é difícil chegar à terceira marcha. Num dia desses, um casal de torcedores fez sinal e Fátima para o veículo em um ponto da Avenida Epitácio Pessoa.

– Ao entrar, a passageira reclamou: “Tinha que ser mulher, não vamos chegar tão cedo”, virando-se para homem que a acompanhava – ressente-se Fátima.

Há três anos, Fátima trocou a Paraíba pelos volantes cariocas. Ela veio, com o filho de 7 anos, visitar a família e se inscreveu para ser motorista de ônibus. Passou a trabalhar como trocadora na empresa durante os nove meses de treinamento.

– Foi uma gravidez! Eu tinha que tirar o carro da vaga, com um copo cheio de água aqui em cima do painel. Se derrubasse, era reprovada – ela conta com um sorriso e, garante que foi fácil.

No transporte rodoviário do Rio, as mulheres representam apenas 1%. No serviço de fretamento, muito utilizado em condomínios, são 9%, a maior porcentagem feminina do estado. O projeto “Mulheres de Direção”, de 2013, criado pelo Detran-RJ, em parceria com a Fetranspor e o Conselho Regional do Serviço Social do Transporte (Sest) e o Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (Senat), ofereceu curso profissionalizante e encaminhamento para empresas de ônibus para mulheres interessadas em seguir a carreira.

Segundo a responsável, Cristiane Paladino, não há explicação para os números, mas geralmente as mulheres preferem a jornada de trabalho que não envolva dormir fora de casa, como em viagens rodoviárias. Para explicar a “alta” porcentagem feminina no serviço de fretamento, ela relaciona o comportamento mais atencioso das mulheres quando se trata de um atendimento ‘VIP’.

Apesar de algumas histórias de discriminação, Fátima fez bons amigos no trabalho. Antes de ser transferida para São Cristóvão, trabalhou em Santa Teresa. Ela conta sobre passageiros idosos cativos, que levavam lanches no meio da tarde e conversavam sobre o gato que havia sido resgatado no dia anterior. Para ela, é um privilégio dirigir ônibus pela cidade:

– Além de ser profissional e trabalhar fora, eu trabalho em casa. Sou mãe, dona de casa, esposa, e aí? Meu filho adora falar para todo mundo: “Minha mãe é motorista, minha mãe é motorista!”. Ele tem muito orgulho de mim. Ele me diz: “Mãe, meus colegas acham ‘maneiro’ que a senhora é motorista”. Muita gente não acredita, aí tem que mostrar o vídeo e a foto. E isso eu gosto, porque ouvir o filho falar isso, que tem orgulho da mãe por ser motorista, é muito bom – ela revela.

O gosto de Fátima pela direção não é de hoje. Vendeu a moto há pouco tempo, mas ainda é apaixonada pelo veículo de duas rodas. Ela faz cursos de especialização sempre que pode e batalha por seu próximo objetivo: trabalhar no BRT. Além do salário ser melhor, a possibilidade de dirigir na faixa exclusiva é atraente. No futuro, Fátima sonha em aprender a comandar grandes máquinas usadas em obras, como guindastes e escavadeiras. Parece que, para ela, lugar de mulher é no volante.

De grosserias a serviço exclusivo

Maria do Carmo Dias, 55, “Carmem para os próximos”, é uma das 1,2 mil taxistas mulheres que trabalham no Rio de Janeiro. Na Secretaria Municipal de Transportes (SMTR), são cadastrados um total de 33 mil motoristas de táxi. Há 18 anos, Carmem estava casada e com filhos pequenos. Por problemas financeiros, que refletiam no cotidiano da família, ela resolveu trabalhar com o marido, que era taxista havia pouco tempo. Ela conta que ele não achou a melhor ideia, mas foi a saída para evitar o divórcio.

– Ele me disse: “O que é isso, está ficando maluca? Você, trabalhar com táxi? Você não conhece rua, não conhece nada! Mal sabe dirigir daqui para ali. Eu vou deixar você ir, você vai ficar três meses só, e depois você vai desistir e eu continuo”. Quer dizer, ele fez muito pouco da minha imagem. Aí eu comecei a trabalhar. Arrumei um carro e pagava mil e pouco por mês de autonomia – lembra Carmem.

A taxista veterana hoje já tem filhos criados e o próprio carro, um Zafira. Ela trabalha todos os dias, desde as 8h da manhã, quando sai de casa, em Inhaúma, na Zona Norte, sempre com a mente tranquila, para não se irritar com o trânsito. Apesar de já ter passado por situações desagradáveis (como quando uma senhora desistiu de entrar no táxi por ser uma mulher no volante), Carmem acredita que somente uma minoria tem preconceito em relação à mulher motorista.

– Hoje em dia eu observo que o próprio homem fica feliz quando pega o carro de uma mulher. Muitos já comentaram “graças a Deus, peguei o táxi de uma mulher”. Eles dizem que a mulher é mais centrada numa direção, numa velocidade constante. Não tem aquele negócio de dar fechada, tranco no carro... Então eu observo que, em geral, a mulher é muito bem aceita na direção – conta.

Ela lembra situações em que passageiros se sentiram no direito de ir além dos limites. Cantadas leves, como ser chamada de bonita, ela leva “na esportiva”, acha que faz parte e se sente bem. Mas em outros casos, “mais grosseiros”, ela acredita que a mulher deve se impor. Uma vez, um homem entrou no carro e disse que ia pagar o dobro do que ela ganhasse por dia para que eles fossem para um hotel:

– Ele tirou do bolso um bolo de dinheiro e disse: “Mulher gosta de dinheiro, se eu botar isso na sua mão, eu faço o que eu quiser com você”. Eu respondi: “O senhor está me ofendendo, me agredindo com palavras. Pare com o comentário ou você vai descer do meu carro”. Ele ficou me dizendo que eu ia levar ele para onde ele quisesse, porque ele estava me pagando, e perguntando “quem é você para me mandar descer do carro?”. Eu disse: “Sou Maria do Carmo, dona do carro. Vou encostar e o senhor vai descer, por favor”. Encostei o carro e falei “desce do meu carro”. Ele gritou “não vou descer!”. Mas eu insisti e ele bateu a porta com força, só faltou quebrar. Essa foi uma das histórias mais grosseiras que eu já vivenciei – Carmem revela.

Quando percebeu que tanto motoristas como passageiras se sentiam mais confortáveis entre mulheres, a taxista Ioneide Silva resolveu abrir o próprio negócio. Ela criou, em 2013, a Miss Drive, uma empresa exclusiva para elas. As corridas são agendadas e os valores tabelados, independentemente de engarrafamento. A clientela é fixa e as motoristas de confiança, contratadas por indicação. A ideia de Ioneide é que o serviço seja seguro para os dois lados.

– As minhas clientes são desde jovens que vão para festas até senhorinhas que marcam para ir ao médico, com meses de antecedência. Algumas mães me ligam e dizem que as filhas só vão para a festa se eu for levar e buscar. Às vezes eu não posso, aí tem que negociar. Eu digo que não posso às 20h, mas posso às 22h. E elas dizem “Tá bom. Eu espero, Neide!” – ela conta.

Segundo Raphael Bispo, pesquisador no Centro de Estudos Sociais Aplicados do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, com experiência na área de antropologia urbana e gênero, o comportamento das pessoas no trânsito reflete a sociedade como um todo:

– O trânsito não está fora da sociedade, pelo contrário. O que acontece nela repercute no trânsito, como ocorre também na televisão, nas empresas. A violência e agressividade típica de sociedades machistas como a nossa aparece nos xingamentos, na violência na condução dos veículos.

Bispo alerta para a separação de feminino e masculino por características:

– É preciso também tomar cuidado e evitar que estereótipos sejam consolidados a fim de se justificar a presença feminina em certas atividades, ditas masculinas. Ao dizer que a mulher deve se tornar motorista porque "é mais sensível" estamos reforçando, por outro lado, certas retificações em torno do gênero e impedindo, por exemplo, que elas avancem em outras áreas profissionais em que a falta de sensibilidade, a dureza, sejam necessários, por exemplo, atividades ligadas à construção, ser pedreira. A mulher pode ser motorista ou pedreira porque é tão apta quanto os homens a exercer essa profissão e não por ter uma personalidade específica para elas. É assim que devemos encarar.