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Rio de Janeiro, 27 de julho de 2024


Cultura

"Black Music" cria personagens a partir da música

Guilherme Costa - Do Portal

03/11/2008

Um menino negro americano é seqüestrado no Cosme Velho por homens armados vestindo máscaras de Osama Bin Laden, em meio ao trânsito criado pelas festas em homenagem a São Judas Tadeu, e ninguém percebe. Uma situação absurda que, no entanto, poderia muito bem acontecer em uma cidade como o Rio de Janeiro. “O Rio é uma cidade surreal sob vários aspectos. A gente vai se acostumando com as coisas mais malucas, que não são pra se acostumar”, afirma o jornalista e crítico musical Arthur Dapieve, autor de Black Music (Objetiva,112 p, R$24).

O romance - segundo do professor da PUC-Rio - começa com a narratica da situação descrita acima e conta uma situação inusitada. Um menino negro americano, de família rica, que toca no trompete seus ídolos do jazz e sonha ser jogador de basquete, é mantido em cativeiro por um traficante loiro, que almeja ser um rapper e namora uma mulata que fala aos berros e se solta ao som do funk carioca. O livro, que traz citações musicais diversas, como que vão do jazz de Duke Ellington e Miles Davis a Marcelo D2 e Eminem, passando por Ary Barroso e Tati Quebra-Barraco, contudo, não é sobre música.

“O livro é sobre sonhos. São vidas sofridas, na violência”, explica Dapieve, que se utilizou de sua maior especialidade na hora de construir o perfil dos principais personagens. A música funciona como um dos três pilares que regem a obra, calçada também na vida, representada aqui pela sensualidade.

“Pra mim, não só na hora de escrever, mas na vida, é importantíssimo saber o que as pessoas escutam pra criar uma imagem delas na cabeça”, conta o jornalista. Para ele, as escolhas que são no limiar do consciente e do inconsciente, como o tipo de música se escuta, podem revelar um pouco da personalidade de cada um. “O fato deles gostarem de tipos de música distintos era um dado da personalidade, tão importante quanto a classe social, ou a raça, a cor da pele.”

A construção da narrativa conta com um artifício interessante: cada capítulo é contado por um dos personagens, que afetam, inclusive, no projeto gráfico do livro, como é o caso de um rap, escrito para mostrar a perspectiva do traficante loiro He-Man. “Foi a parte mais difícil. Eu sabia qual era a história que ia contar ali, os eventos que ele estava narrando, mas a construção dele, que precisava ficar nem curta demais pra ele ficar insignificante, nem longa demais pra ficar cansativo. Precisava ser bom o bastante pra segurar a leitura, mas não bom o bastante para parecer fora de propósito, como se o cara fosse um poeta e não um rapper”, confessa Dapieve, que quando começou a escrevê-lo não sabia se iria conseguir escrever no estilo.

“Eu comecei a ler e escutar com atenção aqueles caras que, sobretudo em português, eu considero bons rappers. Os óbvios: D2, o Gabriel, os Racionais. E aí você vê que não é pobre como talvez você ache num primeiro momento. A rima quando aparece tem uma função. Tive que pensar se aquilo cantado iria funcionar, o efeito final de cada estrofe.”

Black Music aproveita também para fazer uma crítica social por meio da funkeira Jô, namorada de He-Man, que não se considera uma mulata por não ser uma mulher bonita. Segundo Dapieve, a linguagem popular confunde o significado da palavra “mulata”, que só é empregada ao se referir as negras bonitas. “Essa é uma palavra que a gente não percebe, mas sempre se usa com essa conotação. As pessoas não têm coragem de falar ‘é uma negra bonita’. Aí falam assim com eufemismos, ‘é uma bonita mulata’, ou então, ‘é uma bela morena’. Então, a Jô pensando é isso: “eu não, eu não sou mulata, porque eu sou mulata e não sou bonita, e toda a mulata que eu vejo sendo chamada de mulata é bonita.”, esclarece o autor, que ressalta o poder de palavras cotidianas na identificação dos nossos preconceitos. “Essas estratagemas mentais que a gente usa sempre me fascinaram um pouco, são meio perversos.”