Projeto Comunicar
PUC-Rio

  • Facebook
  • Twitter
  • Instagram

Rio de Janeiro, 19 de abril de 2024


Cultura

Aleijadinho: gênio do barroco transfigurado em herói nacional

Caio Lima* - aplicativo - Da sala de aula

18/11/2014

 Reprodução

Duzentos anos após a morte de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, muitos aspectos sobre a produção artística e biografia do mineiro escultor, entalhador, arquiteto ainda são obscuros. As dúvidas em torno do precursor da arte barroca no Brasil nos séculos XVIII e XIX tornam-se temas de debates, dando margem a diferentes opiniões de especialistas em História da Arte sobre o artista. Entre os pesquisadores que se debruçam em estudos sobre a arte barroca, há quem afirme que Aleijadinho é uma “mistura de realidade e mito” ou que sustente a ideia de que parte das incontáveis obras atribuídas a ele foram, na verdade, frutos de uma produção coletiva.

A mitificação em torno de Aleijadinho, cujo bicentenário de morte se completa neste 14 de novembro de 2014, se explica muito pelo fato de ele ter sofrido uma doença degenerativa por volta de seus 40 anos, levando-o a ter que amputar os dois braços. A enfermidade, aliás, é o motivo do apelido. Mesmo com a capacidade física limitada, o talento brilhante do mineiro mulato teria feito com que continuasse sua produção artística, com próteses manuais que, atadas a seu corpo por seus aprendizes, lhe permitiram esculpir com traços singulares, até hoje reconhecidos pelos especialistas em arte barroca.

Reconhecido por muitos especialistas como o autor de diversas esculturas de santos e obras no interior do Brasil, principalmente em Minas Gerais, em cidades como Ouro Preto, São João del Rei e Congonhas do Campo, Aleijadinho passou a ter sua história contada tal como é conhecida hoje em 1858, quando o escritor e político Rodrigo José Ferreira Bretas publicou a primeira biografia do artista. O trabalho de Bretas é um dos mais lidos e citados em pesquisas, embora tenha sido escrito 46 após a morte de sobre Aleijadinho, baseada em relatos de pessoas que supostamente teriam conhecido o escultor.

A versão da primeira biografia de Aleijadinho, morto em 1814, porém, é posta em xeque pela pesquisadora e professora do Instituto de Filosofia, Arte e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto (Ifac/Ufop) Guiomar de Grammont, autora de uma tese que desconstrói a imagem de “herói nacional”. Para Guiomar, a biografia de Bretas é marcada por “fantasias”.

– Essa biografia foi baseada em informações orais pouco confiáveis, e escrita com os critérios “científicos” da época. Assim, contém muitos aspectos fantasiosos, como o de que Aleijadinho ficou doente por ter tomado uma substância chamada cardina, com o fim de aumentar a potência e os dotes artísticos.

  Divulgação IphanA pesquisadora também põe em dúvida a paternidade do artista, atribuída por Bretas, sem documentação, a Manuel Francisco Lisboa:

– Manuel Francisco Lisboa foi o arquiteto mais famoso em seu tempo. Era branco e português. Em uma sociedade escravista, sob a égide do Império português, essa paternidade conferia mais importância e legitimidade a Aleijadinho – explica a pesquisadora, que também cita passagens que remetem à vida de outros grandes artistas da história: – Muitas histórias dessa biografia são recriações de episódios das biografias de Rafael e Michelangelo que circulavam no século XIX. É importante destacar que o texto se destinava ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), então regido pelo próprio imperador – observa Guiomar, cuja tese se transformou no livro Aleijadinho e o aeroplano – O paraíso barroco e a construção do herói colonial (Civilização Brasileira, 322 páginas).

Moderno e nacionalista

No livro, Guiomar sustenta a ideia de que, ao longo do tempo, a história de Aleijadinho foi contada e recontada de forma a criar um personagem para solidificar a ideia nacionalista de cada tempo, não levando em consideração o período em que o escultor propriamente viveu. Na esteira da primeira biografia, escrita em tom romântico característico da época colonial, no início do século XX os modernistas também usaram a imagem de Aleijadinho, criador de uma arte típica do Brasil, para dar ênfase ao nacionalismo e à produção local, sendo responsáveis por parte da construção do mito Aleijadinho. Em 1935, Mário de Andrade escreveu o livro Aleijadinho e Álvares de Azevedo, em que classifica o artista como herói miscigenado, uma espécie de gênio, que rompeu com os padrões europeus para criar arte caracteristicamente brasileira.

E, no Estado Novo de Getúlio Vargas, documentos sobre o artista na criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (atual Iphan) foram escolhidos pelo governo com o interesse por sua imagem heroica. Guiomar destaca, entretanto, que a construção da imagem de Aleijadinho “não foi de má fé”; “Apenas tem a ver com as motivações de cada época, não daquela em que viveu o escultor”.

Reprodução  Em relação à produção artística de Aleijadinho, há obras de arte cuja autoria é atribuída ao escultor somente com base no estilo. Segundo o professor da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Carlos Antônio Leite Brandão, especialista em Cultura e Arte Barroca, porém, “nem tudo que existe e é dito como obra de Aleijadinho é dele de fato”.

– Aleijadinho é uma realidade e também um mito ao mesmo tempo, que serve para a construção de um herói nacional. Realmente construímos o Aleijadinho conforme o interesse da nacionalidade que emergia no passado, assim como foi com Tiradentes como mártir da República – compara Brandão.

Briga na Justiça

Após a morte de Aleijadinho, houve polêmicas entre especialistas a respeito do acervo verdadeiro do artista. Uma delas foi parar na Justiça. O livro O Aleijadinho e sua oficina – Catálogo das Esculturas Devocionais, de autoria de Myrian Andrade de Oliveira Ribeiro, Antonio Fernando Batista dos Santos e Olinto Rodrigues dos Santos Filho, apresentou algumas obras que não seriam de fato do artista. Por conta disso, um colecionador particular, temendo que sua coleção perdesse valor, acionou a Justiça e conseguiu retirar o livro de circulação, temporariamente.

O especialista ressalta, no entanto, que a construção de uma imagem fantasiosa sobre Aleijadinho não abala os reais feitos do artista:

– Ele é tratado como uma espécie de mito porque é o símbolo do que seria talvez a primeira manifestação artística capaz de trabalhar conceitos artísticos importados dentro de um contexto local, e combiná-los de forma que se constituísse em uma obra de arte autenticamente nacional.

* Reportagem produzida para a disciplina Laboratório de Jornalismo.