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Rio de Janeiro, 26 de abril de 2024


País

Casos recentes renovam debate sobre liberdade de imprensa

Felipe Castello Branco - aplicativo - Do Portal

04/11/2014

 Felipe Castello Branco

A discussão em torno do direito à liberdade de imprensa e o direito à privacidade – recorrente desde que os dois princípios foram protegidos na Constituição Federal de 1988 – ganhou novos capítulos recentemente. Em setembro, o governador do Ceará, Cid Gomes, ajuizou uma ação para proibir de circular a revista IstoÉ que denunciou supostos esquemas de corrupção na Petrobras associados ao chefe do Executivo estadual. No mês seguinte, o relatório da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) sobre o Brasil registrou aumento no volume de assassinatos de jornalistas em trabalho e na quantidade de sentenças que vetam a publicação de informações sobre candidatos. Ainda em outubro, quatro dias antes do segundo turno das eleições, a revista Veja antecipou a edição semanal com uma reportagem segundo a qual o doleiro Alberto Youssef, apontado como principal operador de esquemas de corrupção envolvendo empresas públicas e parlamentares, teria revelado à Polícia Federal e ao Ministério Público que o ex-presidente Lula e a presidente Dilma Rousseff sabiam da suposta operação irregular na Petrobras. O Partido dos Trabalhadores (PT) avaliou que a publicação antecipada da revista produziu, deliberadamente, uma propaganda eleitoral negativa e ingressou com ações contra a revista no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Ministério Público Eleitoral (MPE). Também evocou direito de resposta, concedido pelo TSE, e "pediu providências" à Procuradoria Geral da República (PGR) quanto à eventual quebra de sigilo da delação premiada de Youssef. Logo depois, a Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação Política (Compolítica) divulgou nota na qual reprova a conduta da revista, considerada "irresponsável e incompatível com o grau de amadurecimento de nossas instituições". Mais do que uma crítica à Veja, esses especialistas reiteram parâmetros necessários à livre expressão, como a pluralidade de visões e a responsabilidade nos meios de comunicação:

"(...) Para que a vontade popular possa se expressar, é necessário garantir que o respeito ao processo democrático seja um limite ao arbítrio dos controladores dos meios de comunicação. É necessário, também, que o Brasil avance na direção de um sistema de mídia mais plural e mais democrático, com mais respeito à divergência e espaço para o debate. O direito democrático da livre expressão pública implica responsabilidade política – além de jurídica. (...)"

Episódios assim dividem os especialistas sobre as fronteiras entre liberdade de expressão, liberdade de imprensa, direito à privacidade e sigilo judicial. Pesquisa coordenada pelo assessor jurídico e professor de Direito Constitucional da PUC-Rio Fábio Carvalho Leite, em agosto do ano passado, levantou decisões no Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre os conflitos entre a liberdade de expressão e os chamados direitos da personalidade (intimidade/privacidade, honra, imagem), no período de 2002 a 2010. De 58 casos, só em 12 o tribunal entendeu que deveria prevalecer o direito à liberdade de expressão. O estudo confirma o lugar de destaque do Brasil em quantidade de ações ajuizadas e de condenações do gênero. As indenizações, que em 2003 tinham valor médio de R$ 20 mil, hoje chegam a R$ 80 mil.

Apesar dos números eloquentes, as posições sobre o assunto, entre juristas, pesquisadores e jornalistas, são diversas. Para Fábio Leite, proibições sistemáticas da veiculação de informações pela imprensa aproximam-se de censura, e desta forma ameaçam a liberdade de expressão. Já a jornalista e professora de Comunicação da PUC-Rio Leise Taveira, também formada em Direito, lembra que leis são necessárias para conter eventuais excessos dos veículos de comunicação:

– No Brasil, um país onde a cidadania está longe de ser plena, existe uma prepotência dos veículos de comunicação, que não admitem qualquer tipo de cerceamento. Acontece que todos precisam de leis, inclusive os meios de comunicação. Pois recebem concessões do Estado para transmitir informações consistentes à população – argumenta a professora.

Jurista: autocensura também ameaça debate livre, plural e aberto, como exige a democracia

A Justiça brasileira não prevê censura prévia à liberdade de imprensa. Aquele que produz notícia considerada falsa está sujeito a responder judicialmente por eventuais prejuízos à privacidade e à reputação de terceiros. O sistema, alerta Fábio Leite, aumenta a chance da autocensura:

– Há garantia de ausência de restrição prévia, mas aquele que exerce a liberdade pode sofrer uma condenação posterior, que, dependendo do valor, faz com que o cidadão prefira não mais se manifestar. Isso é autocensura, e pode gerar o mesmo problema que a censura: a ausência de um debate livre a aberto.

Para a também professora de Direito Constitucional da PUC-Rio Caitlin Mulholland, é necessário ponderar entre uma reportagem comprometida com o interesse público, como deve ser, e uma "notícia abusiva", ou seja, "a que divulga uma informação que não traz uma relevância social (interesse público) frente ao dano causado à pessoa mencionada na reportagem". Ela ressalva:

– Se por um lado uma reportagem pode defender o interesse público que justifica a publicação, por outro lado uma reportagem pode ser abusiva ao violar algum direito fundamental de alguém ali retratado.

Os direitos à liberdade de imprensa e à privacidade estão protegidos pela Constituição Federal. Como não há sobreposição, os conflitos concretos entre tais princípios acabam, não raramente, nos tribunais, apreciados caso a caso. De acordo com Fábio Leite, é preciso uma "análise mais generalista" para que se construa "orientação sobre o assunto". Se a apreciação fica limitada ao caso concreto, justifica o especialista, "não se pode saber ao certo o que é ou não proibído":

– Se o juízo fica restrito ao caso concreto, ou seja, referente a determinadas palavras, em determinado contexto, dirigidas a determinada pessoa, não há compromisso jurídico com eventos e discursos futuros. Não se sabe ao certo o que pode ser dito, publicado ou divulgado.

Para o jornalista e pesquisador Leonel Aguiar, coordenador do curso de Comunicação da PUC-Rio, a ausência de censura prévia pode ser prejudicial aos que têm a privacidade agredida publicamente, quando as informações publicadas revelam-se equivocadas e até difamatórias. O professor pondera que, em tais circunstâncias, retratações mostram-se, em geral, desproporcionais às consequências do erro de informação:

– O grande problema desse sistema é que, se for provado que as informações divulgadas são falsas, fica muito difícil voltar atrás e reparar eventual dano à privacidade.

O professor de Direito Pedro Paulo Cristófaro concorda com a avaliação de Leonel, e acrescenta: às vezes, "os danos causados são irreversíveis". O jurista reforça a importância do equilíbrio entre aqueles princípios:

– Liberdade de impressa e direito à privacidade são valores constitucionalmente privilegiados, sem peso hierárquico entre eles. Assim, deve-se ponderar, no caso concreto, em que medida um princípio pode ser sacrificado para que o outro prevaleça. Esse sacrifício deve ser o menor possível – explica Cristófaro.

Nos casos em que há um "evidente interesse público", diz Caitlin, deve prevalecer a divulgação da notícia. Na eventualidade de a publicação gerar "uma repercussão negativa para alguém", a Justiça brasileira prevê direito de resposta ou retratação pública. Para ela, a prevenção de conflitos desta natureza e de danos à intimidade e à reputação de terceiros passa por compromissos básicos do jornalismo: a defesa do interesse público, não de interesses particulares, e o rigor na apuração dos fatos:

– Deve haver a responsabilidade daquele que faz uma reportagem de apurar corretamente o que está publicando – sintetiza.

Neste sentido, o ministro do STJ Raul Araújo considera que a liberdade de expressão, compreendendo informação, opinião e crítica jornalística, encontra algumas limitações ao exercício, compatíveis com o regime democrático. Ele aponta, por exemplo, o "compromisso ético com a informação verossímil", a preservação dos direitos de personalidade (direitos à honra, à imagem, à privacidade e à intimidade) e a vedação de veiculação de "crítica jornalística com intuito de difamar injuriar ou caluniar a pessoa".

"É preciso separar interesse público de interesse do público", pondera Leonel

Apesar das visões controversas em torno dos limites entre liberdade de imprensa e o direito à privacidade, boa parte dos analistas acredita que, na queda de braço entre Cid Gomes e a revista IstoÉ, o interesse público justifica a decisão do STF de revogar a liminar que proibia a circulação da revista. Caitlin argumenta:

– A divulgação da notícia contemplava, claramente, o interesse público. O suposto envolvimento de um governador em esquemas de corrupção dispensa a discussão sobre a presença do interesse público nesse caso.

Leonel explica que é preciso identificar e separar o interesse público do interesse do público. Para ilustrar a necessidade deste cuidado, o professor compara o recente episódio da IstoÉ com o do menino Sean Goldman, hoje com 13 anos, cuja disputa pela guarda, entre o pai, o americano David Goldman, e a família da mãe, Bruna Bianchi (morta em 2008), ganhou contornos de Fla-Flu na mídia nacional e internacional. Neste caso, o processo tramitou em segredo de Justiça e a imprensa ficou proibida de divulgar informações.

– É necessário separar o interesse público do interesse do público – frisa Leonel – No caso do menino Sean, é coerente que o processo corra em segredo de Justiça e que a imprensa fique proibida de publicar informações, para a proteção da criança e da família. Aí não está presente o interesse público, mas o interesse do público, que aprecia esse tipo de notícia. É o interesse da corporação jornalística. Pois a empresa sabe que reportagens que mexem com uma lógica de sensação, principalmente no âmbito familiar, costumam render grande audiência.

O professor Fábio Leite esclarece que a revista IstoÉ tem o direito de publicar a reportagem porque as informações veiculadas foram fornecidas pelo delator, ou seja, é um "discurso protegido". O jurista lembra, contudo, que este não foi o motivo que levou o ministro Luís Roberto Barroso a liberar a circulação da revista:

– O ministro segue a linha convencional, que privilegia a condenação posterior. Logo, a revista não poderia ser censurada antes da veiculação. Observo que isso pode não ser problemático para grandes jornais e revistas, mas é desastroso para blogueiros, que talvez preferissem a proibição judicial prévia a uma condenação no valor de R$ 80 mil, por exemplo.

O diretor de Núcleo da IstoÉ, Mário Simas, alega que as informações divulgadas tinham origem "absolutamente confiáveis" e, como estão, por princípio, associadas ao interesse público, "não podiam ser deixadas de lado":

– A reportagem revela o que o delator do esquema (de corrupção) na Petrobras, o ex-diretor da estatal Paulo Roberto Costa, havia dito. Do ponto de vista jornalístico, não se pode negligenciar uma testemunha do peso do Paulo Roberto, ou seja, capacitada, em tese, para dizer o que estava dizendo.

Simas assegura que a reportagem reúne os compromissos com a correção jornalistica. Portanto, não vê razão para que deixasse de ser veiculada:

– Todos os pilares que movem o jornalismo estavam ali. Quer dizer, a informação tinha origem confiável (o delator do suposto esquema de corrupção) e o Cid Gomes foi ouvido pela reportagem. Os argumentos dele são, inclusive, destacados em legenda de foto e texto, em negrito, no qual o governador nega o envolvimento e diz que nunca esteve com o Paulo Roberto.

Segredo de Justiça: nunca se deve desobedecer a ordem judicial

Na esferas civil e criminal, é senso comum que se deve preservar a divulgação de imagens, gravações, escritos, ou qualquer outra veiculação que possa atrapalhar a investigação de um caso. O Código Civil estabelece, no Artigo 20, a proteção da privacidade e de informações "para a boa administração da Justiça". Caitlin explica que no âmbito civil o segredo deve ser determinado pelo juiz, enquanto no criminal esse sigilo é tácito. Uma vez decretado o segredo de Justiça, a decisão deve prevalecer, mesmo que não seja considerada "a mais adequada", esclarece Cristófaro:

– Se o juiz decretou que o processo deve correr em segredo de Justiça, então deve-se preservar a decisão. Pode ser até que a determinação se mostre equivocada, mas é preciso cumpri-la até que seja, se for o caso, revogada por recurso judicial.

Apesar da proteção judicial, documentos sigilosos não raramente acabam eventualmente divulgados pela imprensa. Para o professor e desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, que em 2011 lançou o livro O STF e o Direito de Imprensa: Análise e Consequências do julgamento da ADPF 130/2008, esse sigilo não é formalmente cumprido. Em entrevista ao boletim eletrônico Consultor Jurídico (ConJur), ele exemplifica: "A lei que trata de sigilo fiscal, por exemplo, estabelece responsabilidade criminal daquele que recebe e divulga os dados. Só que isso não é cumprido. Já saiu na capa da Veja a declaração de renda de um político e ninguém se insurge contra essa divulgação. Não é assim... A quebra de sigilo só é justificada para efeito de apreender o documento para servir de prova no processo".

Pesquisadores da área e especialistas em Direito reconhecem, no entanto, o legítimo trabalho investigativo da imprensa. Respeitados os limites éticos e os direitos coletivos e individuais, a fiscalização responsável dos serviços e entes públicos é essencial ao avanço democrático, concordam os analistas. O desembargador José Marcos Lunardelli, diretor da Associação dos Juízes Federais (Ajufe), observa, entretanto, que, às vezes a imprensa, no exercício deste importante papel investigativo, descuida-se na apresentação de evidências, o que atropela princípios como a presunção de inocência e precipita avaliações sobre fatos e pessoas. Assim, a chance de equívocos, alguns desastrosos, torna-se maior. "Às vezes, a prova utilizada é a promovida pela imprensa. Quando isso acontece, a mídia acaba fazendo um julgamento, sem se preocupar com valores fundamentais, como o direito de defesa e a presunção de inocência. Não pode haver essa interferência", opinou o magistrado no seminário A Democracia Digital e o Poder Judiciário, promovido, em São Paulo, pelo jornal GGN, com apoio da Ordem dos advogados do Brasil (OAB).

Assunto está longe de consenso nos tribunais superiores, avalia professora

Calçada pelo compromisso com a defesa do interesse público e por interesses referente ao concorrido mercado de informações, a veiculação de reportagens que tratam de irregularidades ou supostas irregularidades envolvendo figuras públicas (políticos, empresários, magistrados, por exemplo) é quase diária. Algumas delas viram alvos de processos, que algumas vezes vão parar no STJ. No segundo órgão mais importante do Judiciário brasileiro, a discussão sobre a existência de dano, e consequente necessidade de reparação civil, provocado pelo confronto entre dois direitos fundamentais garantidos na Constituição (acesso à informação e inviolabilidade da intimidade e da honra) divide os ministros. Para Caitlin, o assunto está longe de um consenso. Por um lado, o STJ apresenta tendência a priorizar o direito à privacidade. Por outro, o STF, em especial o ministro Luís Roberto Barroso, indica inclinação oposta, observa a professora: 

– Não há entendimento consolidado sobre o tema. O STJ tem uma tendência, muito evidente, em proteger a honra, a imagem e a privacidade das pessoas frente à liberdade de expressão. Não há uma censura prévia, mas a posteriori. Por outro lado, o STF, agora com a presença do (ministro) Barroso, segue tendência oposta. Barroso mostra inclinação a priorizar a liberdade de expressão em relação à defesa da imagem e da privacidade. De acordo com o ministro, censurar posteriormente é tão prejudicial quanto censurar previamente.

Fábio Leite reitera: os tribunais superiores precisam adotar uma visão mais generalista nas análises dos casos. Só desta forma, argumenta o professor, pode-se consolidar um entendimento sobre a questão:

– Enquanto os juízes e tribunais, sobretudo STJ e STF, não adotarem uma perspectiva mais generalista em seus julgados, olhando não apenas para o caso em julgamento, mas para o futuro, construindo alguma orientação, problemas como insegurança, arbitrariedade e quantidade elevada de ações e de condenações persistirão.